Não a um Deus de mortos, mas de ressuscitados

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. O ser humano não é apenas muito complexo. É misterioso. Como escreveu Anselmo Borges, para tentar reconhecê-lo, em todas as suas dimensões,seria preciso convocar todos os saberes. «Não é ele, de facto, como bem viram Aristóteles e Tomás de Aquino, de algum modo todas as coisas? Quando questionamos: “O que é que eu sou? quem sou?”, é necessário apelar para o concurso das ciências da natureza, da cosmologia, da física, da química, da paleontologia, da embriologia, da neurologia, da etologia, da medicina, da linguística, da sociologia, da sociobiologia, da história, das artes, da economia, das ciências políticas e jurídicas, da filosofia, da teologia…»[1].

Depois de tentar responder a todas as perguntas, de todas as ciências, de todas as filosofias e de todas as teologias, ficamos sobretudo com uma maior consciência dos limites do nosso conhecimento. É sempre infinitamente mais o que ignoramos do que aquilo que conhecemos. Mesmo as pessoas que chegam aos 100 anos, e os ultrapassam, são confrontadas com a morte que suscita, em familiares e amigos, mais perguntas e, sobretudo, a pergunta das perguntas: qual o sentido da vida de cada um e da história humana?

As celebrações dominicais da fé cristã não deveriam separar o cultual do cultural sempre em mudança. Devem ajudar-nos a descobrir a significação das três dimensões essenciais da vida humana, em processo de conversão permanente, para não sermos escravos nem do passado, nas suas diferentes expressões, nem da actualidade evanescente, nem dos sonhos do futuro sem raízes. De todas as dimensões devemos colher aquilo que ajuda a viver, em profundidade e abertura, o nosso presente.

Há formas e fórmulas de celebração que hoje não dizem nada, não interpelam ninguém, sofreram uma tal banalização que já não se encontra nelas uma motivação e uma fonte para alimentar a esperança do nosso dia-a-dia.

No passado dia 1 deste mês, fomos confrontados com o Apocalipse, o livro da revelação dos motivos da esperança, atribuído a S. João. É um poema fantástico, um poema de consolação para todos os que na história humana foram humilhados e perseguidos. Desse imenso poema, foi escolhido um fragmento para a celebração de Todos os Santos, não apenas dos santos canonizados, mas dos santos de toda a humanidade, de todas as épocas, de todas as religiões e sem religião, que ignoramos e com os quais nos cruzámos sem saber o mistério que os habita. A vida tem sentido porque a última palavra não é a morte, é a vitória sobre a morte. Vale a pena ler esse fragmento:

«Eu, João, vi um Anjo que subia do Nascente, trazendo o selo do Deus vivo. Ele clamou em alta voz aos quatro Anjos, a quem foi dado o poder de causar dano à terra e ao mar. Não causeis dano à terra nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus. E ouvi o número dos que foram marcados: cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel. Depois disto, vi uma multidão imensa que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro, vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão. E clamavam em alta voz: A salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro.

«Todos os Anjos formavam círculos em volta do trono, dos Anciãos e dos quatro Seres Vivos. Prostraram-se diante do trono, de rosto por terra, e adoraram a Deus, dizendo: Ámen! A bênção e a glória, a sabedoria e a acção de graças, a honra, o poder e a força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Ámen! Um dos Anciãos tomou a palavra e disse-me: Esses que estão vestidos de túnicas brancas, quem são e donde vieram? Eu respondi-lhe: Meu Senhor, vós é que o sabeis. Ele disse-me: São os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro»[2].

Um poema não explica nem se explica. Sugere e liberta a imaginação para viver e sonhar os nossos desejos de felicidade.

  1. Fala-se muito, e com muita razão, da dignidade do ser humano e observamos, todos os dias, essa dignidade espezinhada nas formas mais horríveis. Os cristãos têm novos motivos para lutar contra essas violações. A Primeira Carta de S. João, convocada para essa mesma celebração, realça a teologia dessa dignidade: «Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e realmente o somos! Caríssimos, agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é»[3].

Não existe situação nenhuma que justifique o abandono desta esperança. S. Mateus e S. Lucas contam que, perante as multidões que o seguiam, Jesus resolveu evangelizar os seus discípulos, sequiosos de poder, revelando-lhes, contra todas aparências, quem são aqueles e aquelas que serão coroados de felicidade, de bem-aventuranças. São os pobres, os desprendidos dos desejos de riqueza, os mansos, os aflitos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a paz, os que são perseguidos por causa da justiça. Bem-aventurados quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e regozijai-vos porque será grande a vossa recompensa nos céus. Foi também assim que perseguiram os profetas que vieram antes de vós[4].

  1. Neste Domingo, continua a insistência na esperança semeada pela festa de Todos os Santos e de todos os que nos precederam de toda a humanidade. A surpresa deste dia é uma pergunta – nascida de uma história cultural – para atrapalhar Jesus. Uma mulher casou, sucessivamente, com sete irmãos que foram morrendo sem deixar descendência. Por fim, morreu também a mulher. E veio a pergunta: «De qual deles será ela esposa na ressurreição, uma vez que os sete a tiveram por mulher?».

Resposta de Jesus: não transportemos para a vida futura costumes deste nosso mundo. Os que nasceram da ressurreição também são filhos de Deus e não podemos negar a ressurreição, pois até Moisés a deu a entender no episódio da sarça ardente, quando chama ao Senhor, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob. Não é um Deus de mortos, mas de vivos, porque para Ele todos estão vivos[5].

No Dia dos Fiéis Defuntos, não se deveria esquecer a grande revelação deste dia. Deus não morreu. É e será sempre o Deus da Vida.


[1] Padre Anselmo Borges, 1 e 2 de Novembro: a pergunta pelo sentido, in DN, 29.10.2022

[2] Ap 7, 2-4.9-14

[3] Cf. 1Jo 3, 1-3 – A Deus nunca ninguém o viu!

[4] Cf. Mt 5, 1-12; Lc 6, 20-23

[5] Cf. Lc 20, 27-38


Público, 06 Novembro 2022