Na morte adormeci e acordou-me Deus

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


A morte de um amigo é também a morte de algo em nós.
No mais fundo do amor humano existe o desejo de eternidade.

  1. As atitudes perante a morte foram e são muito diferentes de pessoa para pessoa, mesmo dentro da mesma época e da mesma cultura, religiosa ou não. No primeiro escrito cristão, é-nos dado a ler: «não queremos, irmãos, que fiqueis na ignorância a respeito dos que morreram, para não andardes tristes como os outros, que não têm esperança»[i].

Mesmo quem julga que depois da morte não há mais nada, pode não dispensar algum ritual que exprima o amor, o vazio, a saudade, o reconhecimento. A morte de um amigo é também a morte de algo em nós. No mais fundo do amor humano existe o desejo de eternidade: tu não me morrerás!

Os elogios fúnebres perdem-se, muitas vezes, a destacar o legado deixado por quem partiu. A obra passa a ser mais importante do que o seu autor: é esquecer que a grande obra de um ser humano é a de se tornar cada vez mais humano, em todas as suas relações.

Durante a pandemia, sobretudo nos momentos em que era mais difícil acompanhar os rituais da morte – velório, enterro, cremação –, muitas pessoas pediram-me para celebrar, mesmo à distância, a Eucaristia, na qual, por vezes, também não podiam participar. Esses pedidos, da parte de quem os faz, significam que a morte não é a última palavra sobre a existência humana. As orações e as liturgias são obra dos vivos que exprimem um paradoxo: já não podem viver nas formas de contacto e de comunicação com as pessoas que nos deixaram, mas também não aceitam que tudo tenha acabado. A morte é o impensável, mas faz-nos sentir a perda do outro em nós. Sabemos que a linguagem em torno da morte é sempre inadequada.

Nas diferentes religiões, os rituais ligados à morte são desejos da vida. No caso católico, as celebrações da missa de corpo presente, do funeral, do 7º dia e do 30º dia, as mandadas celebrar todos os anos não tiveram sempre, nem para todos, a mesma significação.

Na crença do purgatório – que não é nenhum dogma de fé – e nas Alminhas que o figuram, li pedidos urgentes de socorro: «vós que ides passando rezai por nós que estamos penando». Essa crença supõe que esses pedidos são de pessoas que não estão nem definitivamente condenadas nem no reino da alegria. No panorama dessas e de outras representações, nota-se a transposição atrevida e enganosa, para o além, de sentenças dos tribunais e dos esquemas prisionais do aquém. Estão longe do inabarcável Mistério do puro amor, do Deus da infindável misericórdia.

Sei que existe outro cenário: pessoas que morreram tão santas que foram logo para o céu. São candidatas à canonização, decretada pelas autoridades da Igreja, depois de um processo humano que averigua os sinais de uma heróica santidade, manifestada na sua existência terrestre. Há quem não deixe de sorrir perante esse quadro de honra. Na casa de Deus há muitos lugares, mas a grande festa é para os filhos pródigos.

  1. Com o advento da Modernidade, muitas dessas representações tornaram-se insustentáveis, porque as representações do mundo e do ser humano estão em profunda e constante alteração. O céu, o inferno, o purgatório, o juízo final são metáforas dos desejos e dos medos humanos. São representações engrandecidas doalém à imagem do que há de melhor e de pior neste mundo.

Quando se pensa, hoje, a fé cristã e o que ela implica, nascem várias tentativas de repensar tudo isso. Para citar apenas obras muito acessíveis, recomendo de Hans Küng, Credo – A Profissão de Fé Apostólica Explicada ao Homem Contemporâneo[ii], assim como, Aquilo em que acredito, de Jean Delumeau[iii]. Este grande historiador desejava acolher a hora derradeira em condições de poder dizer de novo a palavra do Salvador: «Pai, nas tuas mãos entrego a minha vida». Morreu em 2020, aos 96 anos. Segundo o diário La Croix, o próprio historiador preparou o seguinte texto para ser lido no seu funeral: «A minha vida teve as suas dores e as suas alegrias, os seus fracassos e os seus sucessos, as suas sombras e as suas luzes, os seus defeitos, os erros e as inadequações, mas também os seus impulsos e as suas esperanças. Terminei a minha corrida. Possa eu adormecer-me na tua paz e no teu perdão! Sê o meu refúgio e a minha luz. Rendo-me a ti. Entrarei na terra. Mas que o meu último pensamento seja o da confiança».

  1. É, no entanto, nos textos de Fr. José Augusto Mourão, O.P. (1947-2011), dispersos pela sua numerosa obra não académica[iv], que encontro as sugestões mais fascinantes, para viver e pensar um itinerário cristão que deixa Deus e os seres humanos à solta, na invenção da vida que resiste ao niilismo e alimenta o desejo da «terra da alegria». Como ele próprio vincou, o desejo de Deus é o sucesso da Sua criação, um apelo à liberdade dos filhos do Seu amor. Sacrificar o humano para melhor encontrar o espiritual é ilusório, tanto do ponto vista humano – «quem faz o anjo faz a besta» – como do ponto de vista cristão: Deus incarnou.

Onde situa ele a sedução do cristianismo? Na pessoa do Cristo ressuscitado. Aquilo que Cristo promete não é a sobrevida sob forma de um fragmento anónimo do cosmo impessoal e cego, mas garante-nos que, pela fé, podemos reviver e reencontrar o rosto do amor, a voz e o sorriso que amámos.

O título desta crónica – na morte adormeci e acordou-me Deus – pertence-lhe. O CRC acaba de homenagear, da melhor forma, J. A. Mourão, lendo, gravando e lembrando alguns dos seus belos textos.

Este dominicano foi atraído, no Porto, à Ordem dos Pregadores por Frei Bernardo Domingues que foi seu professor e, também, o seu Mestre no Noviciado, um mestre de liberdade.

Frei Bernardo, meu irmão, nasceu em Travassos, uma aldeia situada num cenário espantosamente belo, atravessada pela estrada romana, a Geira (Terras de Bouro).

Não foi na família em que nasceu que viveu a maior parte da sua vida.  Ao entrar para os dominicanos, descobriu que o caminho de Jesus Cristo consiste em fazer família com quem não é da família biológica ou religiosa. O seu novo mundo é o de todos os que precisarem dele.

Não vou falar da brilhante vida académica de Frei Bernardo nem dos muitíssimos livros que publicou. Seria fastidioso referir todos os movimentos e organismos, tanto educativos como apostólicos, que suscitou, apoiou e aconselhou. Para o meu irmão, o que contava era a relação afectiva com as pessoas, desde as crianças aos mais velhos.

Não entrou no mundo dos chamados directores espirituais que tendem a governar a consciência dos outros, a dizer-lhes o que devem pensar, desejar e fazer. Descobriu que a virtude da prudência verdadeira, uma herança aristotélica que Tomás de Aquino acolheu na orientação da vida cristã[v], exige a plena liberdade do sujeito que pode e deve recorrer ao conselho de outros. Não é a virtude da cautela, das infinitas hesitações, mas a virtude da decisão concreta, situada, inalienável, de cada pessoa. Frei Bernardo era o homem do bom conselho e, por isso, tanta gente recorria a ele. Nunca acorrentava a consciência de ninguém. Promovia a sua liberdade.

No próximo dia 13 de Maio, faria 90 anos (1931-2019). Os amigos de sempre não querem deixar passar essa data sem a festa possível, em tempo de pandemia, no Convento de Cristo Rei (Porto).


[i] 1Ts 4, 13

[ii] Ed. Instituto Piaget; cf. também, Aquilo em que creio, Temas e Debates, 2014

[iii] Círculos de Leitores, 1994

[iv] Vazio Verde (1985), Dizer Deus (1991), A Palavra e o Espelho (2000), Luz desarmada (2006), O Nome e a Forma (2009), Quem vigia o vento não semeia (2011); cf. também Obra selecta de José Augusto Mourão, Imprensa Nacional, 2017.

[v] Cf. Michel Labourdette, O.P., La Prudence, Parole et Silence, 2016.


in Público 09.05.21