Na espessura do fulgor

CARLA CARBATTI


Carla Carbatti  (Brasil) é doutora em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela (USC). Possui textos poéticos, ensaísticos e resenhas publicados em revistas e antologias. Autora do poemário ‘Na cadência do caos’ editado pela Urutau, 2016.


Na espessura do fulgor

e o que se sente é ao mesmo tempo que imaterial tão objetivo que acontece como fora do corpo, faiscante no alto, alegria, alegria é matéria de tempo e é por excelência o instante.  
Clarice Lispector

 


13-11-2019, 20:18h.

Começo a ler Brilha quando foge

 

13-11-2019, 20:50h.

Termino a leitura de Brilha quando foge

Durante pouco mais que 40 minutos tateio meus dedos e pupilas pelas suas páginas. Sorrio. Não sei como parar, não sei aonde estou indo. O livro “acaba” e algo segue alheio a minha leitura, algo segue como um corpo autônomo, mínimo, fluido que impõe sua passagem

14-11-2019, 12:44h.

Releio Brilha quando foge. Não sei a que horas termino. Quando afasto os dedos e as pupilas das páginas sinto nos ossos e músculos os latejos e as distâncias de uma travessia. Mas, veja, uma travessia não é o espaço que liga as duas margens do rio, do mar; uma travessia é a força que faz possível o desenho de um desequilíbrio. Barthes diz que a escritura não tem nada a ver com a comunicação, com uma via aberta que transmitiria a intenção da autora à leitora; ao contrário, é toda uma desordem que desliza através da palavra e lhe concede um inquieto movimento que a mantém em estado de constante deslocamento. E não falo aqui dos artíficios do sentido, da palavra que muda de casa, de cidade, de idioma, de boca, de vestido; digo da exigência do risco, da exigência de não escapar do perigo. E qual o risco que se corre ao ler um livro? Pois justo o de se lançar ao mar, ao rio, ler sem garantias, desconectar as margens, os sentidos, sentir o corpo que se trans-formar no confronto com os códigos, com o império do significado dado como inscrição e juízo. O sentido (não mais sensato, mas vivido), em tal caso, seria o que diz Nietzsche: uma centelha que brota do choque entre duas espadas. Um estalo, um instante. Apresenta-se, portanto, como uma borda móvel entre o sussurro da linguagem (seu pulsar, que não permite nenhuma conformação) e a formação de um dis-curso que, uma vez vislumbrada a faísca de um entendimento, se joga em outro curso, no fluxo de um espaço germinal. Ou, como dirá nossa poeta, brilha quando foge.

Perceba gente amiga, que ainda não fui capaz de falar do livro; o que faço é criar uma espessura (um entre, a travessia), para que tudo o que eu diga seja um ritmo que continuamente desafina seu próprio discurso, para não interiorizar nem exteriorizar-se como significação. Em outras palavras, antes que falar do livro, quero participar do livro; ou seja, participar dos afetos, forças, tensões e plexos de relações que tornaram e tornam possível sua incessante materialização (não esquecer que a matéria é um universo de luz em movimento de turbilhão, como nos lembra Ulpiano); assim como tatear os vestígios de sua destruição, o pó, a falha, a mancha, a palidez. Desse modo, participar do livro é assumir uma posição ótica distinta, frágil, não mais o sujeito que vê-lê o objeto, mas um fragmento de mundo (pele, cílios, olhos, ossos, ritmos: fluxofluxofluxofluxofluxo: palavras) que é afetado por outro fragmento de mundo (palavras: fluxofluxofluxofluxofluxo: pele, papiro, tinta, respiro, ritmos). Participar do livro é emaranhar-se no pensar-sentir que o anima, criar um campo de ação comum: tocar-e-ser-tocada: é aceitar ser ferida.

14-11-2019, 13h.

Estou diante do Acaiaca. Sei, mineira que sou, que se trata de um enorme edifício localizado no centro de Belo Horizonte. Acaiaca, em línguas Aruák e Karíb, é cedro. Me encontro ao abrigo de uma árvore, de um arbusto gráfico, ao abrigo do poema. Há uma mulher de unhas vermelhas, música mexicana, telefonemas que não encontraram seu interlocutor, sombrinha, um dente de cão, planta, plant; outra mulher, situada num ponto cego, constrói o poema; o poema não está construído, o poema vai construindo-se andar por andar. Esse com-passo não traduz uma grandeza precisa, estável, ele se dá como indeterminação: uma plan-ta quase cai para linha debaixo dando origem a outras línguas (inglês e espanhol), a um plan, rudimento-ruína, espaço sem marcas, descampado; a mulher é vista, se expõe e afirma: o poema não é a construção mais sólida do mundo. Balançam-me os cabelos e os pensamentos, perco o chão, o equilíbrio, me ponho em movimento.

O Acaiaca

o Acaiaca

o mariachi

a sombrinha

o dente do cão

a planta subaquática

os telefonemas não dados

as unhas vermelhas da mulher

e as construções mais resistentes do mundo

estão todas empilhadas umas por cima das outras

nessa folha de papel sem nenhuma ordem lógica

até pode ser que a primeira a tombar seja a planta subaquática

se construirmos um poema utilizando a estrutura abaixo

unhas vermelhas da mulher mariachi sombrinha plant

sim a plan-ta quase caiu

para a linha seguinte

foi preciso cortar um arbusto

um arbusto gráfico

plan

poema-plano

um poema não é a construção mais sólida do mundo

e só uma construção

falível como todas as outras ´

o poema nem sempre

cumpre aquilo que promete

14-11-2019, quase às 13:36h.

Um cheiro me arranca do Acaiaca. O feijão queima no fogo. La fuego, o fogo é mulher e se pronuncia confundindo os sexos, as fronteiras? O cedro é uma árvore hermafrodita, ou seja, possui flores masculinas e femininas num mesmo exemplar, a cedro. Me levanto apressada, vou à cozinha, tento resgatar os pobres grãos sobreviventes. Não, o fogo não é mulher, a mulher é as cinzas, o calor, a luz e a água liberados da combustão; o resto que abriga o sonho de uma nova germinação

14-11-2019, depois das 13: 36h.

Cada grão morto parece ter se erguido como cavalos de fogo em arrastão pela cozinha. Meu coração dispara. Não sei o que fazer, vou de um lado para outro, atontada. Me vem à memória (memória involuntária) os belos cavalos de Zuza, que não conhecem fantasmas. A intensidade é a força do impoder, diz Lyotard. Então aceito essas visitas inesperadas. Deixo todos passarem, os da Zuza e os meus, em debandada, em sua autoridade de corrente, de presente. Reconcilio com o imprevisto. Aproveito o pouco de feijão restante da queimada, cozinho arroz, brócolis, abobrinha e comemos com tomate, tofu e beterraba

Os cavalos não conhecem fantasmas

um cavalo

vai galopar

tão forte

e tão rápido

que irá cortar

os parênteses

rasgar

os limites da folha

romper a tela

e me atravessar

e depois de tudo

depois de ele partir

eu vou me perguntar

quantos cavalos

eu precisei

deixar passar

para poder

seguir caminho

14-11-2019, antes das 18:05h.

Volto para o cômodo da casa que chamamos biblioteca. Há uma grande janela que dá para o monte Viso. Diviso o voo elegante de uma pega. Lyotard, num de tantos, tantíssimos trechos de extraordinária beleza, nos fala da força (força sobre a qual se articulam visível e vidente, geratriz de sua junção na medida em que é de sua distância. Dobra, como chama Merleau-Ponty) dos quadros de Cézanne ou de Picasso que nos dão a ver de que modo um objeto se afunda diante de nós em sua essencial elisão de visível, de que modo o quadro nos mostra o mundo em via de se formar. Um quadro é a exposição de seu engendramento, da desordem e tremores do seu nascimento e das reverberações e vibrações que o mantém vivo. Um poema também. Coloco a mão no punho da poeta e sinto as agitações e delicadezas da composição do Tiê-sangue. Um pássaro carmim feito de 13 dias e 8 horas, 42 páginas lidas de Sagarana, 26 copos de águas tomados e 55.757 passos dados, 72 palavras, um olhar-bordas, um olhar-letras em repetidas batidas de asa, de dedos, na toalha de mesa, na desmesura do papel. Sinto ternura por esse pássaro aprisionado; e não posso deixar de pensar que seu canto (ou suas penas) coloriu as unhas vermelhas da mulher do Acaiaca

Tiê-sangue

minha mãe

demorou exatamente

13 dias e 8 horas

tempo que pode

ser traduzido

como 55.757 passos dados

42 páginas de leitura do Sagarana

26 litros de copos de água tomados

para bordar

o exato momento

em que

o pequeno pássaro

voou do galho

ato feito

em cerca

de dois segundos

ou menos

e que agora

voa sempre

em repetidas

batidas de asa

na toalha de mesa

da sala de jantar

14-11-2019, depois das 18:05h.

Construir uma imagem, um corpo visível, um poema, supõe, necessariamente, a coragem de perdê-los. E tudo que temos é essa perda, esse ponto de partida onde as coisas-palavras, as palavras-coisas nos balbuciam sua força de relâmpago: a duração extraordinariamente breve do fenômeno. Assim, um Ilustre desconhecido, um felino, um gato, se roça com Drummond, na Rosa do Povo. A poeta atenta encara sua mirada e vê mais ouro que as minas de Itabira. Mas deve saber, como eu tive que aprender, que voltará para casa de mãos vazias; só assim o poema atinge seu limite, deslimita, e se forma uma Primavera em Tenerife

14-11-2019, quase às 20:19h.

A pega retorna. Modifica o céu cinzento com os reflexos azuis de sua plumagem. Cochicha com as árvores. Dedica-me um mapa sonoro e cromático. O mapa, diz o escritor mexicano Salvador Gallardo Cabrera, emerge sempre de um ponto cego, onde os nomes e as coisas se eclodem. Por isso um mapa vai muito além do que sabemos. O mapa é o grafismo das fulgurações e fugas que inventamos para inflar a travessia, traçar um rio e nos perdermos no infinito.  Volto a olhar pela janela, a pega já não mais está. Que alegria! há uma coisa que me escapa do tempo todo, mas Brilha quando foge.

Com sorte, o mapa dessa leitura, chegue a ti, querida Júlia, como vento com cheiro de alfazema, como bolinhas de gude rolando pelas ladeiras da nossa infância, como o sim que nasce dos bons encontros

JÚLIA ZUZA
Brilha quando foge
Editora Urutau, São Paulo / Pontevedra
2019


CARLA CARBATTI