Muros de papelão

DAVID AUGUSTO BENE
David Augusto Bene (Moçambique, 1994). Escritor e performer. Estuda Geologia numa universidade do Japão.


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Duas vidas. A minha estranha mania de ser gente. Nos dias que correm. Despeço-me numa. Abraço-me noutra. Numa perene ritmicidade. Parto-me como se a despedida fosse reencontros. Vejo-me amanhã, realidade. A parede é mais pura e real que  os mundos. A obviedade é abstracta. Os meus mundos são palpáveis dependendo da raça das mãos que os fazem. São superficiais, as mãos do homem do sol. São complexas e cautelosas, as mãos da lua. Os meus mundos são profundos e densos. Eternos admiradores da lua.


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You’re a fucking loser! Os teus lábios não mentem. Respiram fracassos. A pior parte dessa dura verdade te é bem familiar. Sabes como ninguém que o és. O lado sombrio arraiga-nos à razão. Conhecemo-lo pela sua textura maciez imiscibilidade autenticidade. Não entendo as razões que levam as mocinhas a se enganarem com tamanha facilidade. Escolhem um fracassado por caprichos, eu acho. São mimadas e gananciosas. Talvez seja por medo da desacreditação do óbvio do palpável do simples. Amamos complexidades. Somos complexas, têm dito em quaisquer mercados dos salões das igrejas. Talvez seja o medo. Todas sabemos estremar o fraco do mais fraco. Algumas fazem-no por experiência. Outras por faro. Não interessam os meios. No final de tudo caímos na mesma sorte na mesma estrada no mesmo ponto final. Tiramos sempre a carapuça dos medrosos dos fracos através do medo. Quanta ironia! Difere-nos o timing. Algumas são ventanias. Outras são o ódio. Camaleões do tempo. Lentas e eficientes. Algumas o fazem na puberdade e outras naufragando no leito da morte. Os fracassados não choram. Detestam lágrimas. Uma lágrima acima da prescrição médica. Uma baralhada à vista. O homem fracassado chora como boi quando perde o controlo. Ranhos por todo lado, disse-me uma estranha num desses famosos funerais. As outras são iguais a mim. São do outro lado da parede do colchão. Engana-se o tipo que as manipula. Dizem por aí que são vocês. A outra parte vossa. Vossas individualidades. Talvez estejam correctos. Ontem a noite, discutíamos sobre o assunto com a vizinhança. Te lembras da Marta? Aquela tua amante que fuzilaste há duas horas. Não merecia tamanho desrespeito. Por mim, matava-lhe com amor piedade. Com elegância acima de tudo. Punhas-lhe num carro luxuoso a caminho de um motel de quinta. Davas-lhe um celular. Escrevias nele o quanto ela te amava me odiava e outras duras palavras e deixavas que enviasse para mim. Ela morreria de ciúmes. Vindos de mim. Teria tido graça. Nunca fiquei tão triste em toda minha vida, sabias? Claro que sabes. Marta seria a energia de activação. Esqueceste-me e foste egoísta. Uma Makarov e cinco balas nas tetas dela. Balas de chumbo percorrendo aquelas dunas. Lambendo aquelas suculentos mamilos. Quanto egocentrismo! Muitos pagariam milhões para serem as balas. Faltou arte. Faltou glamour. Faltou sal. Faltou poesia. Matavas com um verso. Um monólogo. Ou o fazias de maneira mais crua possível. Plagiavas Mario Benedetti. Enviavas “o amor de tarde” num desses buquês de bardanas. Com certeza morreria de raiva. Mulheres inteligentes odeiam poetas de meia tigela. Vês? Existem n maneiras de matar aquele puta de salto alto. Uma Makarov e cinco balas nas tuas tetas flácidas. Quem tu és? Achas que levaria o teu segredinho para o outro lado do muro? Achas mesmo que contaria a toda freguesia que não a comias como homem? Julgas mesmo que diria na tua cara, na aurora das despedidas, que nem sempre a grandeza o dinheiro satisfazem uma mulher? Que merda! Ela era tu. Era parte tua. Era você seu palerma! Achas que dirias toda essa tua merda ao mundo? Não sejas hipócrita! Te lembras da Marta? Aquela que fuzilaste há duas horas. Conversamos dias atrás. Os homens fracassados são como carne podre. Apodrecem todos becos por onde passam, dizíamos nas gargalhadas. You’re a fucking loser Dave. Cheira rato podre aqui. Cheiras tu. Nós somos o teu asilo. Tua esperança. É uma pena que não nos possa levar para o outro lado do colchão. Aqui consertas e reconsertas tudo. Ao teu jeito. Deixa-me te dizer algo. Não consertas porra nenhuma. Tudo isso não existe Dave. Serão apenas uma ou três horas e essa conversa não terá valido a pena. Não terás existido. Talvez uma AK-47 esteja a minha espera nas tuas algibeiras. Talvez seja eu a tua próxima Marta. Talvez já tenhas construído um Zambeze e pronto para me naufragar. Todos conhecemos as tuas capacidades. Podes fazer-me esquecer de nadar a qualquer momento. Talvez esteja prestes a chover no teu mundo. Conheces as chapas da tua casa mais que ninguém. São barulhentas e esburacadas. Talvez a tua esposa tesuda esteja a implorar por mais uma rapidinha daquelas. Um vizinho embriagado fazendo serenata na vossa rua. Tudo pode acontecer Dave! Não podes controlar os factores externos. Essa é a tua vida. Não podes controlar a tua vida Dave! É aqui que começa o teu fracasso. Quando voltares, tenho a certeza que não serei a personagem principal. Provavelmente serei aquela senhora sabetuda do teu bairro de infância. Odiavas a tipa, não é? Fazia-se de intelectual. Fazia-te perguntas desnecessárias. Queria saber tudo a teu respeito. Aquilo enervava-te. Enchia-te o saco e não podias fazer nada a respeito. Eras humano e fraco Dave. Eras a vida. Agora tens tudo. Podes trazê-la para cá. Deixá-la num desses mercadinhos, a vender plásticos e pedras de gelo. Ria a vontade mas não me mostra os dentes. Não confio neles. Podem simplesmente trocar-me de funções. Quando voltares, tenho certeza que não estarei aqui. Não voltaremos a falar dos teus fracassos. Essa descoberta é daqui e não de lá. Nenhuma coisa daqui atravessa o muro. O que nasce aqui morre aqui. Por isso não mudas. Não aprendes. Aqui falamos verdades na sua forma mais crua. Não interessa o quão amargas podem vir a ser. Somos sinceros para com todos e para connosco. Do outro lado da parede, mentes para ti próprio. Mentes que és bonito e ainda chamas isso de autoestima. Mentes que te esqueces das merdas dos que te desapontam e chamas isso de perdão. Odeias política e tens que dar opiniões no bar só para justificar a validade dos teus diplomas de engenharia. Ainda chamas isso de civismo. Escreves memórias e chamas de inspiração. Dave, imagina tua esposa teus filhos teus irmãos tuas amantes teus vizinhos teus colegas teus políticos teu cão. Todos mentem. Entendes? Tua vida é uma mentira. A mentira é um fracasso. O teu mundo pode até ser real mas o meu é verdadeiro. Que fique bem claro. Não estou a pedir que me resgaste durante a tua próxima estadia. Odeio essa ideia de envelhecer ao teu lado. É muito rudimentar. Em mim uma vida pode durar segundos mas deve ser eterna. Amo-te como ninguém. Por mais estranho que pareça, não suporto despedidas. Não sei porquê. Talvez por não ter presenciado uma. Estou com medo Dave! Não quero que voltes para o teu mundinho de papelão. Quero que fique aqui ao meu lado. Aqui és deus Dave, lembras? Controlas tudo. Essa esfera é tua. Gira em torno do teu eixo. Não me abandones. Peça que te fuzilem no outro lado do muro. Peça que ateiem fogo no teu colchão. Que a madrugada continue eterna. You’re such a loser Dave!

Foi com lágrimas que a abandonei. Não se leva trochas ao regresso da normalidade. Sinceridade numa palavra. A maior alma de tudo. Ela era sincera. Dizia o que sentia. Sinceridades não carregam ninguém para o meu mundo. Cada vez que as lágrimas dela caiam era a minha razão que dilacerava. Explodia tudo. Abria-se tudo. Ao menos merecia um outro tratamento. Outro fim. Outra maneira de se despedir. Despedir-se é ficar, dizem os poetas. Prometi-lhe que jamais esqueceria aqueles lábios carnudos. Aquele sorriso. Aquele quadril. Aquelas lágrimas. Aquele tudo. Por isso, escrevo esse capítulo no silêncio da cidade. No outro lado do colchão. Sinto tudo. Orgulho e culpa. Escrever mulheres ao lado da minha esposa. Definição exacta de traição. Mas ela merece tudo. É madrugada. Sou a única alma acesa e queimo-me em cada frase que me assalta. Chove escuridão lá fora. Escrevo essas palavras sem travões. Lembranças dela vão se apartando como uma tocha de fogo a caminho do além na calada da noite. Cada palavra nesta folha é uma batalha vencida. Uma meia-vida salva. Uma ressurreição. Este capítulo pertence-nos. Aqui, ela é real e verdadeira. O nosso amor é infinito! As palavras e a folha não esquecem. Enquanto elas existirem a minha promessa estará cumprida. Amo-me.