MARIA JOSÉ CAMECELHA
Ambos os poemas patentes nesta comunicação: “Queixa das almas jovens censuradas” de Natália Correia (1956) e “Perfilados de medo” de Alexandre O’Neill (1960) encontram-se incluídos no primeiro álbum a solo de José Mário Branco “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, gravado em Paris em 1971. Em 1973 sai o LP ‘Improviso’, que inclui poemas “ditos e até cantados” de Natália Correia e música de António Vitorino de Almeida.
Nos dois poemas mencionados, o indivíduo é atirado para o vazio abissal da fantasmagoria, na memória paralisante de um imaginário comum – opressivo e asfixiante.
“| e não nos soa na memória | outra palavra que o medo. | Temos fantasmas tão educados | que adormecemos no seu ombro | somos vazios despovoados | de personagens de assombro. “
“Perfilados de medo, sem mais voz, | o coração nos dentes oprimido, | os loucos, os fantasmas somos nós.”
A interrogação no título parte de uma base mais recente: numa entrevista de Bob Woodward a Donald Trump, em 2016, este diz-lhe que “o verdadeiro poder era o medo”.
To be continued.
QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Natália Correia
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade.
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós.
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo.
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro.
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura.
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante.
Dão-nos um nome e um jornal,
um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino.
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte.
PERFILADOS DE MEDO
Alexandre O’Neill
Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.
Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.
Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.
Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido…
José Mário Branco
LP Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades: 1971
https://www.youtube.com/watch?v=B0KtBUDpEuA
LP Ser Solidário: 1982
https://www.youtube.com/watch?v=KLxJrkMpDSY
Poemas ditos (e até cantados) de Natália Correia; música, arranjos e direcção musical de António Victorino D’Almeida , LP Improviso: 1973
https://www.youtube.com/watch?v=2sVD-2nHPcU&start_radio=1&list=RD2sVD-2nHPcU&t=11
Natália Correia (poema in Dimensão Encontrada: 1957 – originalmente publicado na antologia “O Nosso Amargo Cancioneiro”, organizada por José Viale Moutinho)
Alexandre O’Neill (poema in Abandono Vigiado, Guimarães Editora, 1960)
Rui Miguel Abreu | Joana Beleza, A eterna inquietação de José Mário Branco (Blitz, Junho: 2018)
Bob Woodward Fear: Trump in the White House (Edição em Português: Dom Quixote, Novembro: 2018)
Bob Woodward’s book details Trump’s chaotic and dysfunctional White House
https://www.theguardian.com/us-news/2018/sep/04/bob-woodward-book-fear-donald-trump-white-house
Transcript: Donald Trump interview with Bob Woodward and Robert Costa
DT: Well, I think there’s a certain truth to that. I think there’s a certain truth to that. Real power is through respect. Real power is, I don’t even want to use the word, fear.
https://www.washingtonpost.com/news/post-politics/wp/2016/04/02/transcript-donald-trump-interview-with-bob-woodward-and-robert-costa/?noredirect=on&utm_term=.c0ad311fabad
Marta Miranda, “Numa entrevista a Bob Woodward, em 2016, quando ainda era apenas candidato a ocupante da Casa Branca, [Trump] disse-lhe que “o verdadeiro poder era o medo”. (TSF, 6 de Novembro de 2018)
SÉTIMO ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
Casa das Monjas Dominicanas . Lumiar . Lisboa
17 de novembro de 2018