PAULO JORGE BRITO E ABREU
MOVIMENTO PSICANALÍTICO:
DISSENÇÕES, AS LIÇÕES E AS APROXIMAÇÕES
«Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos, e a nossa
vida breve está rodeada por um sono.» William Shakespeare
Carl Gustav Jung ( ou diríamos, em vez disso, o Carl Gustav Young??? ) foi nado em Kesswill, cantão de Thurgau, na Suíça, a 26/ 07/ 1875. Se falámos do complexo, falemos, agora, da constelação familiar do nosso psicanalista. Jung foi o filho, figadal, de um Pastor protestante: se na família de seu Pai havia dois Pastores, havia seis, selectamente, na família da Mãe. E agora, meus Amigos, um caso curioso: se firmavam, latinos, «nomina numina», cada nome, em si, um Nume comporta: seu avô paterno, famigerado e homónimo, Carl Gustav Jung ( 1794 – 1864 ), era médico afecto à psiquiatria. Sendo Reitor da Universidade de Basileia e Grão-Mestre da Loja Maçónica suíça, o romance familiar o presentava, ou representava, como filho natural de Johann Wolfgang von Goethe ( 1749 – 1832 ), o afamado feitor do «Fausto». Uma nótula, aqui, para o estreme estudioso: o avô materno de Jung, Samuel Preiswerk ( 1799 – 1871 ), além de Pastor, era adepto, e arauto, do chamado espiritismo. A Mãe de Jung, Émilie Preiswerk, ( 1848 – 1923 ), conjuntamente com a prima deste último, Hélène Preiswerk ( 1880 – 1911 ), dedicava-se, outrossim, ao culto, cardinal, do afamado Allan Kardec. Sabe-se, por exemplo, do fascínio, ou da paixão, que a escrita automática e a mediunidade despertaram em génios como William James, Victor Hugo, Pierre Janet e Fernando Pessoa. E compreende-se, assim, que a tese de doutoramento de Carl Gustav Jung, em 1902, tenha sido, dessarte, a seguinte: «Psicologia e Patologia dos Fenómenos Ditos Ocultos». Façamos, agora, uma adenda formidável: a tese de doutoramento do jovem Carl, ela tinha, como tema, o estudo nosográfico de Hélène, sua prima – e eis aqui o proémio, aqui eis o primórdio da junguiana, e soberana, psicoterapia. E pra que conste, aqui: em 1900, com 25 anos, se torna Carl o assistente de Bleuler ( 1857 – 1939 ) na clínica, cardeal, do Hospital Burgholzli. Pioneiro e precursor, foi Eugen Bleuler, enquanto psiquiatra, o criador dos termos «ambivalência», «esquizofrenia» e «autismo» – e ele presentificou, ele presentou, a Jung, a Psicanálise de Freud. O mesmo Carl que, já Doutor, no Inverno de 1902 – 1903, segue, em Paris, os cursos, caroáveis, de Pierre Janet. Artífice, artesão, da segunda, ou sagrada, psiquiatria dinâmica, discípulo, de Charcot, como o fora também Freud, Janet inventou, a catarse, sensivelmente ao mesmo tempo que o Pai da Psicanálise, e renomado professor no Collège de France, ele fazia passar Freud por um excêntrico e mitómano, imitador, ou plagiário, das suas teorias. Como quer que seja, àquilo a que Freud chama «catarse» chama, o parisino, «desinfecção moral». Não tenhamos, agora, medo das palavras: se o mister de Janet é a análise psicológica, o de Jung é a psicologia analítica, e o de Freud, alfim, é a Psicanálise. E esclareçamos, agora, os tópicos e tropos. Não foi Freud quem descobriu o inconsciente, e não foi ele, alfim, quem criou a Psicanálise. Tomando, como mestres, os Poetas, os filósofos, e também os romancistas, eis o que asserta o Autor de «Moisés e o Monoteísmo»: «Os poetas e os filósofos descobriram o inconsciente antes de mim. O que eu descobri foi o método científico que nos permite estudar o inconsciente.» Ou melhor: o complexo edipiano retira a sua fonte de «O Édipo Rei», do dramaturgo Sófocles; divisa Freud, portanto, a Psicanálise, retomando o caminho da Poética antiga. Como afirma o Autor de «Totem e Tabu»: «Os poetas e os romancistas são aliados preciosos, e o seu testemunho merece a mais alta consideração, porque eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas que a nossa sabedoria escolar nem sequer sonha ainda. São, no conhecimento da alma, nossos mestres, que somos homens vulgares, pois bebem de fontes que não se tornaram ainda acessíveis à ciência.» E sobre o seu mister, declara o próprio Freud, é dele, desta sorte, a voz e a vez: «Não é a mim que pertence o mérito, se nisso há algum, de ter descoberto a psicanálise. Não participei nos seus primeiros começos… Era ainda estudante quando o Dr. Josef Breuer aplicou, pela primeira vez, este processo de tratamento a uma jovem histérica ( o que remonta aos anos 1880 a 1882 )». A «jovem histérica» é Anna O. ( de verdadeiro nome a Bertha Pappenheim ), o caso «princeps», ou primordial, das origens do freudismo. Que chamava, concretamente, à análise de Breuer, a «cura pela palavra» ou «limpeza de chaminé». Ou como quem diz: etimologicamente, «Psicologia» é deveras, com todas as veras, a «fala da alma» – e analisando, com arte, as fantasias e fantasmas, é, o analista, um novo Champollion perante os hieróglifos: se o dolente, desse modo, é doente, o exprimir é espremer o pus e o fel da ferida narcísica – e as palavras são por isso a prima matéria do Psicanalista. Fazendo, no trovar, um trabalho, não trivial, de hermenêutica da Psique, o que Freud descobriu, no parecer de Lacan, é que «o inconsciente está estruturado como uma linguagem», e que os sonhos são a «via régia» para a exploração, dessarte, desse mesmo inconsciente. Desse mesmo inconsciente que é o Outro, afinal. E nos sonhos, como na vida, é tudo uma questão de metáforas, metonímias, e de lautas litotes, o sintoma é qual metáfora e o desejo a metonímia. Com Freud e com Lacan nós aprendemos, outrossim: a instância da letra é soberana e suserana, e realiza-se, o gramatical, no imo e no seio do individual. Pois à guisa, agora, de apostilha: foi num artigo dado a lume a 30 de Março de 1896 que, em lugar de «método catártico», Freud empregou, por a prima vez, o termo «psico-análise»; não diríamos, então, com Giorgio Abraham, que essa análise é alfim «o sonho do século»??? Que a histeria, de feito, que a histeria é dessarte o começo da História??? Nós nunca olvidaremos, «verbi gratia», que a Psicanálise deu origem ao Surrealismo, que, no verdor da juventa, o grande André Breton foi médico interno de Joseph Babinski ( 1857 – 1932 ). Exactamente, Amigo ledor: Joseph Babinski, o aluno predilecto do magíster Charcot. A talho, dessarte, de foice, citemos, com a vénia devida, o Jacques Mousseau: «Foi um psicólogo alemão, Gustav Theodor Fechner ( 1801 – 1887 ), e não Freud, como por vezes se afirma, o autor da célebre metáfora que compara a psique a um icebergue, do qual um oitavo está visível ( a consciência ) e sete oitavos estão escondidos ( o inconsciente )» – e eis, aqui, os «Vasos Comunicantes», e por isso nós falamos das aproximações. Que além de Breuer, e de Fechner, a duas fontes, no afã, foi beber o próprio Freud: à escola da Salpêtrière e, também, ao escol, e à escola de Nancy. Em lhaneza de chão plano: depois de ter seguido, durante 17 semanas ( 1885 – 1886 ) as lições de Charcot ( chamavam-lhe, na frente, o «Napoleão das neuroses» ), em 1889, em pleno Verão, Freud visita, em Nancy, o Hippolyte Bernheim ( 1840 – 1919 ), e ele visita, desta sorte, Ambroise Auguste Liébeault ( 1823 – 1904 ). Considerado, este último, o «pater», confesso, da escola de Nancy. Relevemos, ainda, o Marquês Armand de Puységur ( 1751 – 1825 ), que abandonou, de Mesmer, o idear, ou ideia, do fluido magnético. Que foi Mestre, sabem de quem??? De uma exótica mistura de Padre, cientista e revolucionário – e falamos, e alçamos, o Abade, luso-goês, José Custódio de Faria ( 1756 – 1819 ). Ordenado, em Roma, sacerdote, a 12 de Março, dessarte, de 1780, e Magíster, em França, de Filosofia – e apoiante, entusiástico, da Revolução Francesa. Professando, o Professor Egas Moniz, um livro curioso: «O Abade Faria na História do Hipnotismo». Como Armand de Puységur, Faria abriu caminho para o tratamento, psicológico, por sugestão hipnótica. Tendo aberto em Paris, em 1813, um gabinete, historial, de magnetizador. Sendo certo, e sabido, o sagrado e o seguinte: o motor da terapia, aqui, já não é, fartamente, o fluido magnético – é, sim, relação dual e especular, baptizada, por Freud, como o «transfert». Sendo pois, a transferência, aquilo que se passa entre médico e cliente, entre o mestre e o discípulo, entre o repeso, alfim, e o reitor ou Padre-Cura. Em termos junguianos é a mística, ou pítica, participação – ou, se vós quiserdes, o pitiatismo, de Joseph Babinski. Que é o alfa, e o ómega, do tratamento, ou valimento, psicanalítico – e não topas, aqui, a «imago» parental??? E não sentes, aqui, o complexo do Pai??? Para usarmos um termo de Pierre Janet, entre o facultativo e o preste paciente é precisa, e preciosa, a função do «rapport», e doutra maneira, nada se consegue. Aqui trazemos, à colação, a «compreensão empática», do americano Carl Rogers: a empatia, de feito, sana, ela sara e ela cura a patologia. Explica-se, portanto, o funcionamento da electricidade, mas compreende-se, em preensão, o ser humano, ele se enlaça e se prende ao nosso coração. Aqui vem, a talho de foice, a «análise existencial» de Viktor Frankl, é grande o mérito, quanto a nós, da lauta e dilecta Logoterapia. Que é a par da Psicanálise, de Freud, e da Psicologia Individual Comparada, de Adler, a tércia escola vienense de Psicoterapia. Para esta forma de «Sophia», que abarca e abraça o espiritual, a neurose não é só frustração sexual, ela é, sobremaneira, um vazio existencial, ela carece, e requer, o sentido da vida. Se a vida tem, para Frankl, a marca do problema, tem, a existência, o carisma, o carácter da resposta. Ou melhor: num mundo dominado por o esquizoidismo, a tecnocracia, a cousificação do ser humano, o que há, na maioria dos indivíduos, é recalcamento, dessarte, da religiosidade. E por isso nós diremos: no decaído, na dejecção, na multidão do anonimato, o importante, quanto a Rogers, é tornar-se pessoa: não falava, sem falácia, a Françoise Dolto, de «A Psicanálise dos Evangelhos»??? À guisa de escólio: Viktor Frankl fez, como Bruno Bettelheim, a experiência, tormentosa, dos campos de concentração. Mas ainda, ainda, sobre a hipnose: se ela era, pra Charcot, um estado patológico próprio dos histéricos, ela era, pra Bernheim, um estado normal efectivado por a sugestão; sugestão, no mentar de Hippolyte, é a «capacidade de transformar uma ideia em acto». «Verbi gratia»: com a imposição das mãos, na Idade Média, os Reis de França sanavam, saravam, curavam as escrófulas. E sabem todos os Psicólogos da eficácia, fabulosa, e da força do placebo. Que ao novo método praticado através e por meio da sugestibilidade, deu a escola de Nancy o nome, numinoso, de «psicoterapia». Outra forma de sugestão, para nós, é a força da Fé. Ela é, segundo a «Carta aos Hebreus», «o fundamento das coisas que se esperam e a certeza das que não se vêem». Caso curioso na História das Ideias: um dos últimos artigos de Jean Martin Charcot se referia, razoável, à cura pela Fé, e dava o clínico, como exemplo, a Senhora de Lourdes. Pois como aduz, dessarte, e diz a Escritura, a cada homem é feito de acordo com sua Fé. E era grande a Fé de Freud na teoria, dessarte, da sexualidade. Não olvidemos, aqui, um feito e um facto fundamentais: a 14 de Novembro de 1911, Pierre Morichau-Beauchant, médico em Poitiers, dá a lume, na «Gazeta dos Hospitais», o primeiro artigo consagrado, no país de Victor Hugo, ao escol e à escola psicanalítica. Morichau-Beauchant ( 1873 – 1951 ) foi o primeiro francês a aderir, abertamente, ao caso e à causa da preste Psicanálise. Num dos seus artigos, traduziu, pela vez a primeira, para a língua do Galo, a transferência de Freud, pela expressão «rapport affectif». A propósito, no lance, a propósito, agora, do Psicólogo Émile Coué ( 1857 – 1926 ), também magíster de Nancy: afirmar, forte e fértil, é firme tornar, o enfermo é o indivíduo que carece de firmeza. O homem que aprendeu hipnose com Ambroise Auguste Liébeault, o promotor, em 1913, da Sociedade Lorraine de Psicologia Aplicada, ele escreveu um volume ditoso deveras: «Automaestria por Auto-Sugestão Consciente» – e nele explana, e nele descreve, o condicionamento aplicado, o estímulo do Self pela auto-sugestão consciente. Quando se concentra, o filho do homem, num pensamento, o Logos se faz carne, o corpo transforma a palavra em acção. O que ele propõe, no seu livro, é um misto de mantra, de emblema e ritual: no início do dia, ao despertar, e no final do dia, antes de adormecer, afirmar, repetir, salmodiar: «Todos os dias, sob todos os pontos de vista, eu vou cada vez melhor» – e mais tarde ou mais cedo, o vapor solidifica, e o Verbo avigora a vida do enfermo. Mas revertendo, agora, e voltando a Sigmund Freud. Para ele, a religião não passa de uma «neurose obsessiva universal da humanidade», de uma «grande ilusão», de um «delírio colectivo». O «ópio do povo», como diria Karl Marx. Mas abramos, aqui, um parêntesis: fazendo partilhar, os fiéis, de um «delírio colectivo» e loucura delirante, a religião poupa, ao ser humano, a neurastenia meramente pessoal. A religião tem suas raízes no complexo edipiano, e o nosso Pai Celestial é projecção, no mundo dos desejos, do nosso progenitor e da «imago» paternal. Já para Jung, de que trataremos a seguir, a religião tem sua fonte nos arquétipos, esses arquétipos existem, ou insistem, no âmbito milenar, ou milenarista, do inconsciente colectivo. Não esqueçamos, aqui: o suíço foi filho e neto, figadal, de pastores protestantes. Falando, por exemplo, de Escoto Eriúgena, ouçamos, de Jung, um comento, ou pensamento, veramente teológico: «Ele pensava também que a comunhão não passava duma lembrança da última ceia que Jesus fez com seus discípulos, assim como o pensará o homem razoável de todas as épocas» – e estamos longe, bem longe, muito longe de Freud. Datada de 11 de Maio de 1911, em missiva, selecta e dilecta, a Sandor Ferenczi ( 1873 – 1933 ), eis o que asserta o Pai da Psicanálise: «Jung escreve-me que devíamos conquistar o domínio do ocultismo e pede o meu acordo para uma cruzada que se propõe travar na esfera do misticismo. Dou-me conta de que é impossível deter-vos aos dois por mais tempo. Que ao menos avancem em colaboração; trata-se de uma expedição perigosa e eu não posso acompanhar-vos nela.» Fazendo, pois, um pouco de História: o que apartou Freud do Adler, primeiro, e do Jung, depois, foi o pansexualismo do discípulo, discente, de Jean Martin Charcot. Como conta Jung na sua Autobiografia ( «Ma vie, souvenirs, rêves et pensées» ), lhe pedia, caroável, o Pai adoptivo: que era forçoso transformar a psicanálise em «um dogma, um bastião inabalável», «contra a onda de vasa negra do ocultismo». Revertendo à juventa de Carl Gustav Jung: em contacto com Bleuler, aquilo que o levou à Psicanálise foi o teste, e o trabalho, da associação verbal. Novamente o psiquiatra como uma sorte, e uma guisa, de crítico literário. O pensamento, aqui, é movimento: em Abril de 1906, Jung remete, com todas as veras, ao Mestre de Viena, os seus «Estudos Diagnósticos de Associação»; foi o primeiro contacto entre os dois psicanalistas. Inaugurou-se, assim, uma longa, leve e lauta correspondência, um total, em távola redonda, de 359 missivas. Em carta datada de 17 de Janeiro de 1909, eis o que afirma, o Freud, ao seu filho figadal: «Vós sereis aquele que como Josué, se eu for Moisés, se apoderará da terra prometida da psiquiatria, que eu apenas de longe posso vislumbrar.» Levou, o delfim, muito a sério o seu papel: lançar a ponte entre as escolas de Viena e de Zurique, abrir com arte, a logia da Psique, ao estudo, historial, da esquizofrenia. Uma nótula, aqui, para o extremo, e o estreme estudioso: o «opus magnum» de Eugen Bleuler foi, em 1911, a «Dementia Praecox ou Grupo das Esquizofrenias», o Bleuler foi, para o século XX, aquilo que foi, o Josef Breuer, para o fim do século XIX. E não é por acaso que nada é por acaso: no fim de Fevereiro de 1907, Carl e Emma Jung, na companhia de Binswanger, partiram em viagem pela Europa Oriental – e Viena, dessarte, foi a primeira, a prima escala. Às 13 horas de domingo, 3 de Março de 1907, chegam, os Jung, a casa de Freud; ela era sita na Berggasse, número 19. E como foi ladino, e foi lauto o «transfert»!!! Os dous homens encetam, o simpósio socrático, à uma da tarde, e foi falar ininterrupto até às duas da manhã. Ouçamos, levemente, o dilecto suíço: «Freud era a primeira personalidade importante que eu encontrava. Nenhuma das pessoas que eu conhecia naquela época podia medir-se com ele. Na sua atitude não havia nada de trivial. Achei-o extraordinariamente inteligente, penetrante, notável sob todos os pontos de vista.» E foi grande o «coup de foudre», para Freud era Jung o seu filho mais velho. E em Setembro de 1907, funda o herdeiro, em Zurique, a Sociedade Sigmund Freud. É inda Jung quem organiza, em Salzburgo, em finais de Abril de 1908, o Primeiro Congresso Internacional de Psicanálise, sob o nome, jovial, de «Encontro dos Psicólogos Freudianos» – e nele tomaram parte 44 analistas. Até que, em 1909, uma prenda, preciosa, do destino: por ocasião do vigésimo aniversário da Universidade Clark, de Worcester, Massachusetts, o seu presidente, Stanley Hall, invita Sigmund Freud a fazer, nessa escola, colações e conferências – e os seus dous principais discípulos, Jung e Ferenczi, também foram convidados. A bordo, então, do «George Washington», em 1909, os três psicanalistas deixam Bremen, com destino a Nova Iorque, em dia doce do mês de Agosto. Ao aportarem na cidade estadunidense, a 27 de Agosto de 1909, a emoção era muita. Seguindo e segundo Jacques Lacan, que o ouviu, deveras, da boca do suíço, ao chegarem, os três, à plaga da quimera, Freud segreda, desta sorte, ao seu discípulo e discente: «Eles não sabem que lhes trazemos a peste.» Esta frase carece, e merece, uma atempada hermenêutica. Se a Psicanálise, no início, não foi afecta, nem aceite, pela comunidade científica, é porque ela é, depois de Copérnico e de Darwin, a «terceira ferida narcísica» da Humanidade. Ou melhor: se com Copérnico deixa de habitar, o homem, no centro do universo, se com Darwin o homem, como ser biológico, deixa de ser feito à imagem de Deus, deixa o homem, com Freud de ser «senhor de si mesmo», «rei no interior da sua própria casa». E fica em destroços a imagem do homem como ser racional; a partir de Freud, e de Rimbaud, o homem não pensa, o homem é pensado por o seu inconsciente. E para um biógrafo do quilate de Roger Dadoun, o pensamento de Sigmund Freud é «a anárquica Afrodite». Mas voltemos, agora, ao selecto simpósio norte-americano: o programa de palestras, na Clark University, decorreu, desta sorte, lindamente. As palestras, professoras, que Freud proferiu, foram reunidas, em volume, sob o título: «Cinq Leçons sur la Psychanalyse», mas primeiro publicadas, em inglês, em 1910, no «American Journal of Psychology». E quer o Freud, quer o delfim, foram recebidos, deveras, como homens de prol, sendo o Freud nomeado doutor «honoris causa». E uma nótula, aqui, de Cultura Comparada: William James, que assistiu às conferências, William James, que deixou, a Sigmund Freud, «uma impressão durável», à laia de despedida afirmou a Ernest Jones: «O futuro da psicologia depende do vosso trabalho.» O discurso de agradecimento do Pai da Psicanálise começava, selecto, por estas palavras: «É o primeiro reconhecimento oficial dos nossos esforços…» Uma nótula nitente: mais tarde Stanley Hall acabaria por aderir às ideias, com «adresse», do Alfred Adler ( 1870 – 1937 ). Na história do movimento psicanalítico, ele foi, dessarte, o primeiro dissidente. Austríaco como Freud, ele o conheceu em 1902 e, juntamente com Max Kahane ( 1866 – 1923 ), Wilhelm Stekel ( 1868 – 1940 ) e Rudolf Reitler ( 1865 – 1917 ), ele criou, no carisma, a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, o simpósio, na senda, socrático, o banquete novel da amada Psicanálise. Ou seja, todas as noites de quarta-feira, às nove horas, em casa do Mestre, na rua Berggasse, um grupo de homens abarcava, e abraçava, a cultura nascente, e, sentados ao derredor da mesa oval, formavam um cenáculo em torno do Pai. A Sociedade foi dissolvida, por Freud, a 22/ 09/ 1907, quando ela contava, caroal, com 22 membros – e renasceu novamente, em 1908, com o nome, simbólico, de Sociedade Psicanalítica de Viena. Da qual foi feito, o Adler, Presidente, no ano, figadal, de 1910. Mas a flama das ideias permanece, continua, e, em 30 de Março desse ano, em Nuremberga, por ocasião do Segundo Congresso Internacional de Psicanálise, Freud e Ferenczi fundam, prestes e prontos, a Associação Psicanalítica Internacional. Da qual seria, o delfim, eleito, na láurea, o primeiro Presidente. Até que, em 1911, Adler se demite, bem duro, e bem dolente, da Sociedade Psicanalítica de Viena – para fundar, então, a Sociedade para a Psicanálise Livre, que se tornará, no ano seguinte, a Sociedade de Psicologia Individual; a palavra «psicanálise» é excluída, doravante, das ideias de Adler. Examinemos, analisemos, a Psicologia Individual Comparada. No Congresso de Nuremberga, em 1910, impõe-se, dissidente, a rotura. O corte final se deu, em 1911, quando Adler apresentou, no seio do círculo freudiano, duas conferências sobre o tema: «Crítica da teoria sexual freudiana da vida psíquica». Pois «ser homem», para Adler, «é sentir-se inferior». A neurose radica, não em frustrações de origem sexual, mas sim no complexo de inferioridade. E todo aquele que se sente inferior tende a encontrar, no psiquismo, a função vicariante, um mecanismo, natural, de compensação. Essa superestrutura vai ser, como em Nietzsche, a vontade de poder. Se Demóstenes era gago, «verbi gratia», Beethoven era surdo, era míope Meissonier, o ouvido de Mozart apresentava sinais de degenerescência. E era cego, entre nós, o António Feliciano de Castilho. E também, na Argentina, o Jorge Luís Borges. Mas atenção, aqui: essa inferioridade não é somente orgânica, pode ser familiar, social, ou económica, deveras. É que intervém, de feito, a constelação familiar, na formação do carácter do bípede implume. Não esqueçamos, aqui, que Adler professava no Instituto Pedagógico de Viena, que ele criou, forte e firme, as primeiras consultas psicopedagógicas. É força, aqui, é força dizê-lo: Doutor em Medicina, pela Faculdade de Viena, em 1895, haveria o Adler de ser Professor da Universidade de Columbia e no Long Island Medical College, de Nova Iorque. Mas ponderemos, pensemos, e matutemos, dessarte. O que está, agora, por detrás, do «Estudo sobre a Compensação Psíquica do Estado de Inferioridade dos Órgãos»??? É que Adler, em criança, era raquítico, franzino, ele sofria, deveras, de espasmos da glote. E contraiu, aos quatro anos, uma forte pneumonia, aos quatro anos ouve o médico declarar a seu Pai – que a criança era decerto um caso perdido. É que, na Psicologia Individual Comparada, não existe, portanto, fatalidade; existe, porém, uma lauta liberdade. Quero eu dizer: uma ideia directriz, um movimento, em si, que se dirige para um fim. Para a formação, e o forjar, do nosso estilo de vida, nem o passado, nem o meio, nem a hereditariedade, são determinantes, limitativos, decisivos por completo, pois aqui, como em Carl Rogers, a pessoa é criadora, e o limite se transforma em preste liminar. Como Obras, agora, de alto coturno, citemos, de Adler: «Conhecimento do Homem», «O Sentido da Vida» e «O Temperamento Nervoso». Remembremos, aqui, o amável legente: no dia 7 de Novembro de 1906, a primeira comunicação de Alfred na Sociedade das Quartas-Feiras tinha, desta sorte, como lema e emblema: «As Bases Orgânicas da Neurose». Finalmente e historicamente, a Psicologia Individual Comparada influenciou, muito e muito, a Psicanálise Culturalista americana, de que são representantes, e expoentes, H. S. Sullivan, Karen Horney e Erich Fromm; a ênfase é posta, aqui, no sentido social e na força criadora do Eu. Não esqueçamos, aqui, que o vienense Viktor Frankl foi, na juventa, um aluno de Adler, que foi grande, o Verbo do Adler, na análise existencial de Ludwig Binswanger. Louvando, na cita, Friedrich Nietzsche, revertamos, agora, a Carl Gustav Jung: recompensa-se, muito mal, um grande mestre, ficando, para sempre, seu discípulo. Ou melhor: se o termo «catarse» é colhido na «Poética» aristotélica, o termo «arquétipo» provém da Teoria das Ideias, do preclaro Platão. Mas deixemos falar o selecto suíço, é dele, portanto, a voz e a vez: «A possibilidade de uma outra realidade, existente por detrás das aparências, com outras referências, torna-se um problema inelutável e somos obrigados a abrir os olhos para o facto de o nosso mundo de tempo, espaço e causalidade estar em relação com uma outra ordem de coisas, atrás ou sob a primeira, ordem na qual «aqui e ali», «antes e depois» não são essenciais.» Não palpita, nesta passagem, a referência ao «déjà-vu» e, outrossim, à sincronicidade? Não sentimos, aqui, o discípulo de Sócrates, pra quem era, o tempo, a imagem móvel duma terna eternidade??? O que é, para o mundo da Física, o «Logos» e lei da causalidade, é, para o mundo da Psique, o sonho e a lei da sincronicidade. Asserta, certeiro, o analista: «Aquando da produção de um fenómeno de sincronia, assiste-se a uma simultaneidade de acontecimentos com idêntico significado na psique e na matéria e isto sem causalidade aparente», e é, como aduzem surrealistas, o acaso objectivo, e são as coincidências significativas. Que uma coisa é o «Logos», outra cousa, bem diferente, é a analogia, quer dizer, a harmonia, dessarte, preestabelecida. Ou no preste Firmamento: por essência e por excelência, «homo religiosus», pra Jung é o símbolo uma necessidade fundamental. Por que é que, para ele, o «século das luzes», conduziu aos massacres da revolução??? Porque as ideias de Deus, da religião e da mitologia, foram, fortemente, abandonadas. É que o Eu, afinal, é um Outro – e o homem civilizado inda arrasta, atrás de si, a cauda de um sáurio. O que é que, por isso, a História nos diz??? Que em 7 e 8 de Setembro de 1913, durante o IV Congresso de Psicanálise, em Munique, surdem deveras, entre Jung e Freud, as fortes dissidências. Que, em Outubro de 1913, se dá, dessarte, a ruptura com Freud. O clarim foi cauto e claro, o toque de alvorada foi, em 1912, as «Metamorfoses e Símbolos da Libido». Uma vez aqui chegado, já infere o ledor: se a libido, para Freud, é pulsão sexual, a libido, em Jung, é uma forma de energia, é como «élan vital», que se exprime, ou se expressa, por meio e através da simbologia. Quero eu dizer: se do lado de Freud nós temos, deveras, a arqueologia do Ser, nós temos em Jung, bem clara e manifesta, a teleologia da Psique. Ou melhor: se temos, de um lado, a lição retrospectiva, nós temos, do outro lado, a prospectiva visão. Não basta escrutar o de onde e o ontem, esquadrinhemos, em vez disso, o para onde e amanhã. Não basta perguntar, por isso, o porquê, é preciso demandar, como em Jung, o para quê. Em resumo e em suma: se o Freud era herdeiro, e aficionado, do mentar materialista do século XIX, Jung era afecto, e afeito, à Astrologia, ao Tarot, ao fantástico I – Ching. Quando Jung foi entrevistado, em 1959, no programa «Face a Face», da BBC, e John Freeman lhe perguntou se ele acreditava, de facto, em Deus, o psicoterapeuta redarguiu, sem rodeios: «Não acredito, eu sei». Ora isso coloca, a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, no imo e no seio do movimento gnóstico. O nobre zuriquense não é só um cientista, ele é, forte e firme, um pensador místico, mistagogo, e portanto misterioso. O caso e a causa é dessarte a seguinte: a história da vida de Jung foi a história de um inconsciente que cumpriu, desta sorte, a sua missão. Assim, meditemos: sobre a porta de entrada da casa de Jung em Kusnacht, próximo de Zurique ( foi nessa casa, cordial, que ele veio a falecer ), existe, lilial, uma inscrição latina: «Vocatus atque non vocatus Deus aderit», o que significa, em Português vernáculo: «Invocado ou não, Deus está presente». Quem quiser ter acesso ao oráculo, e orago, do inconsciente colectivo, que labute, que matute, que medite nesta frase. Aquilo que Jung sublinhou, ao longo da vida sua, é que o imaginário se desdobra num espelho, é que «a vida é um sonho» seguindo, e segundo, Calderón de la Barca. Aquilo que Jung praticava, nas consultas, caroais, de Psicologia Analítica, não era só a associação livre, era, ademais e outrossim, aquilo a que ele chamou de «imaginação activa». A fantasia criadora, ou melhor, criacionista, é utilizada como técnica psicoterápica para tomada de consciência das imagens, arquétipas, do inconsciente. Esta movimentação das imagens interiores é símile, se assemelha, à «meditatio» dos cristãos e ao Ioga dos budistas. Remembremos ao legente que o inconsciente se exprime através das imagens, que a «imago», i-magista, mitifica, que Lacan associa a «imago» ao complexo. Um pouco mais longe e o feitiço, de feito, se torna em fantasma, um pouco mais longe e falaríamos, alfim, do «rêve éveillé» de Robert Desoille ( 1890 – 1966 ). Mas ainda, ainda, quanto ao gnosticismo: a vida de Jung está ligada, intimamente, aos Evangelhos Gnósticos. Esses mesmos Evangelhos foram descobertos, em 1945, perto da região de Nag Hammadi, no Alto Egipto, por um camponês árabe, Muhammad Ali. Dentro de um pote com quase um metro de altura, estavam guardados, religiosamente, 13 livros de papiro encadernados em couro, contendo escritos, ou escrituras, dos primeiros tempos da era cristã. Lá estavam, «verbi gratia», 52 evangelhos gnósticos, uma tradução parcial da «República» de Platão, e 3 livros pertencentes ao «Corpus Hermeticum». Através da mediação de Gilles Quisper, um desses códices foi adquirido, certeiramente, por o Instituto Carl Gustav Jung, em 1951 – e oferendado, com oblação, ao zuriquense, no seu 76.º aniversário. Relatemos agora um caso, pouco propagado ou pouco propalado, da vida mística, dessarte, do nosso querido Autor. Certo dia de 1916, logo, logo pela manhã, Jung sente, o seu lar, oprimido, e opresso, por entidades espectrais. E inesperada, estridente, toca, desta sorte, a campainha. O analista, então, abre a porta, e não vê ninguém lá fora. Ele demanda, ansioso: «Quem está aí???» E ele ouve, logo, logo, uma voz: «Voltamos de Jerusalém, onde não encontrámos o que procurávamos.» As vozes, em seguida, pedem para entrar, e o analista anuiu. Consequência e resultado deste acontecimento: o nosso Professor escreve um texto a que deu o nome de «Sete Sermões aos Mortos». Mas o verídico Autor desse texto, ele já não era o Jung, era um gnóstico, deveras, chamado Basilides, que viveu em Alexandria e aí leccionou entre 117 e 138. Coincidência, quiçá, significativa, notemos a semelhança entre a palavra «Basilides» e a palavra «Basileia». Quero eu, portanto, aqui dizer: o Professor foi mero meio, canal ou instrumento, nas mãos de forças e poderes que em muito o ultrapassavam. Ao longo de toda a vida sua, ele foi medianeiro, ou o médium, entre os Numes e os homens. Que o génio, para os antigos, é um deus pessoal, é um ser e entidade sobrenatural. Trata-se, aqui, do funcionamento espontâneo da vida psicológica, fora do controlo da consciência e da vontade. É que «o automatismo psicológico» de que fala Janet é muito próximo da noção de escrita automática, criada, na lida, por William James, e retomada, com vida, por o pensamento, ou movimento, do supra-real. É que todo o génio, etimologicamente, é um entusiasmado, ou «en theo», ele alberga, em si mesmo, um deus interior. Se esse génio, dessarte, é aquele que gera, temos falado, ao longo do nosso esquisso, do jogo oposto ao jugo. Porque escola, para os greco-latinos, era o ócio, recreio, era o sítio do lazer. Porque toda a criação se escora, se esteia, na recreação. O jogo é um bem que se basta a si mesmo, é acção livre e gratuita, desprovida de interesse ou utilidade material. O homem, na sua essência, ele não é o funcionário unidimensional, o homem é, desta sorte, um animal que joga. Como forma, forte e fértil, de Ludoterapia, nós temos, aqui no lance, a terapia pela Arte. Desenhar, por isso, os próprios sonhos, planear recitais, encetar uma Obra de epistolografia – e eis, aqui, «o sentido da vida», eis a ponte de ligação do Eu com o Tu. É o que se começa já a ver nos cursos, caroais, de Escrita Criativa; na Arterapia, como em Binswanger, aqui eis uma Análise existencial. Um pouco como o fazia, no século transacto, o Movimento do Potencial Humano, do qual William James foi um dos precursores. Que latente e patente em toda a doença do foro psiquiátrico, lateja, e viceja, o dilema e problema da comunicação. Num mundo dominado por o ter e nanja o Ser, nós cremos que a linguagem é aquilo que nos liga, que devíamos retomar o Ágape, agora. E num mundo empobrecido pela massificação, a escola, e o escopo do homem, será, como em Rogers, o tornar-se pessoa. Não forjemos, nós outros, a contracultura, mas forcejemos, e lutemos, por a cultura de encontros. A magia foi criada, o passo foi dado, gigântico e solene, por Jacob Levy Moreno ( Bucareste, 18/ 05/ 1889 – Beacon, Nova Iorque, 14/ 05/ 1974 ). Ora eis, aqui, o promotor do Psicodrama. Eis, em 1921, eis, aqui, o fundador – do Teatro, figadal, da espontaneidade. Mas abramos, aqui, um parêntesis, agora. Seguindo e segundo a «catarse», de Aristóteles, o teatro permite, ao filho do homem, o liberar-se, libertar-se, das suas paixões, vendo-as, no palco, representadas – e «quem canta, seu mal espanta», e a catarse é pois a purga, ela é qual trama e a forma de evacuação. E destramente, e rectamente: de expulsar a exprimir a diferença não é muita. Mas escrutando, e esquadrinhando, o termo «catarse» provém do misticismo, era a catarse, entre os gregos, a participação nos Mistérios de Elêusis. E essa alegoria é de homeopatia, quer dizer, o semelhante sana, ele sara e cura o similar. E na «participação mística», do afamado Lévy-Bruhl: se a «persona», por isso, é de alteridade, se o herói é de alter-ego, aqui eis o segredo, a fonte, formal, da identificação. E vamos, novamente, à História das Ideias: a 1 de Abril de 1921, num teatro próximo da Ópera de Viena, teve lugar, forte e firme, a primeira sessão de psicodrama, ou melhor: aconteceu, o psicodrama, no «dia dos loucos». Assinalado, entre nós, como o «dia das mentiras»: é que o sonho é uma mentira que se transmuda, pouco a pouco, em verdade promissora. Seguindo, portanto, e segundo Lord Byron: a mentira é a verdade duma grande mascarada. E o teatro, desta sorte, é a força do fantasma, um jogo, patético, de luzes e de espelhos. Para Jacob Levy Moreno, se trata, o psicodrama, da «terceira via» da psicanálise; ela suplanta, e ultrapassa, a psicanálise «de confissão» (como em Freud), e a psicanálise «maquiavélica» ( à base de cirurgia cerebral, de electrochoques, da catábase e cadente quimioterapia ). Mas ouçamos, agora, o psicodramista: em 1912, na clínica psiquiátrica da Universidade de Viena, num encontro não sabemos se fantasiado, se vivido concretamente, Moreno asserta, desta sorte, ao Pai da Psicanálise: «Ora bem, doutor Freud, começo no ponto onde o senhor pára. O senhor encontra os outros no meio artificial do seu consultório; eu encontro-os na rua, ou em casa deles, no seu meio habitual. O senhor analisa-lhes os sonhos. Eu tento incutir-lhes a coragem de sonhar ainda mais. Ensino às pessoas como representar o papel de Deus.» Entenda-se: representar o papel de Deus é ser, como Deus, criador, é colaborar, com Deus Pai, no projecto criacionista – e formar, e forjar a vida nova, assente, e presente, em três postulados: o encontro, a catarse e a espontaneidade. Quer ele dizer: em lugar de reprimi-los, recalcá-los e resolvê-los, devem ser, os sintomas, fortemente exteriorizados. Com toda a justeza, e com toda a justiça, o Psiquiatra, aqui, é director de cena – e no cenáculo encenas as tuas imagens. E é pois, o moderno psicodrama, a transmutação, ou trans-mundação – da suserana, italiana, «commedia dell’arte». Ouçamos, novamente, este iatra libertário: «Os métodos utilizados pelo psicodrama já se encontravam presentes nas obras-primas da literatura universal.» «Verbi gratia», na verve: se o método de «O Duplo» pertence a Dostoievski, o método do espelho se afirma, no «Hamlet», com Shakespeare – e como já vimos, o método do sonho ( in «A Vida é Um Sonho» ) se abraça, e abarca, em Calderón de la Barca. A «persona», aqui, é personalidade. Ou melhor: se estás opresso, e oprimido, se estás encerrado no teu próprio papel, tu muda, então, de máscara e de artefacto, e representa o papel de criança criadora. «O homem», pra Moreno, «é um actor de Deus no palco do Universo» – e essa criança insiste, ou resiste, nos sonhos, no teatro, nas imagens, magistas, da imaginação. O psicodrama, por isso, é acontecimento, ele é «fôrma», e é forma, dessa nova magia. No teatro, então, da espontaneidade, há que ser, aqui, um feitor de milagres – e há, no canto, que desenvolver, a «megalomania existencial». Que insuflando e aflando, inflamando o paciente, joga, o terapeuta, um tríplice papel: ele é médico, pesquisador, ele é co-paciente. Ele toma muito a sério o duplo e a mania, o papel e a lição da Ludoterapia. Ou nas palavras, dilectas, do dramaturgo João Belo: «Entre o fortuito e o acaso, um passo: não é por acaso que nada é por acaso.»
Que Luz, 14/04/ 2021
VERBA VOLANT, SCRIPTA MANENT
PAULO JORGE BRITO E ABREU