ANTÍMIO DAMIÃO
Monólogo de um Personagem Embriagado (Excerto)
[…] Finda a empreitada, fechei-me no gabinete. Queria emborrachar-me, perder-me no tempo da vida. Depois de muito álcool e coca, fui acometido de uma embriaguez de perdição, uma pedrada de caixão à cova com tal amargor a melancolia que me deu para chorar e, uma vez metido o turbo da memória, recordar a vertigem da juventude como fotos de um álbum fotográfico que eu hesitava folhear. Dantes, quando jovem, perdera-me na minha vida e na dos outros. Dantes, o vício da rebeldia era uma canção da adolescência em jukebox roufenha a abarrotar de sucessos datados. Dantes, queria algo novo, imediato, um já sempre renovado, uma folia de horas perdidas e momentos gastos num repente. Muitas princesas e putas vi avançar para mim de rostos e azos deturpados. Beijei todas e no fim todas se foram, uma por uma. Bem hajas, consciência, por me teres martirizado no silêncio e na falta. Mas tanto faz. Que se dane. Longe de mim desancar-te ou pedir satisfações. Estás em mim, maças-me, corriges-me, sobrepesas neste sítio estranho a que não descubro lar e donde extraio, em menor ou maior grau, o minério de reflexões e ideias. Custa a crer que fôssemos um só quando era apenas eu e os amigos, o pessoal, a malta. Uns ainda o são, mas outros, a bem ou a mal, à força da vida ou da morte, deixaram de o ser. Embora os não entendesse e não entenda ainda, tudo tinha razão de ser. Dantes, dava luta à timidez, queria acabar com ela, devassá-la, devastá-la, dissolvê-la de vez num gesto polémico, saltar como um cão raivoso para cima do desgraçado na primeira fila, até cair. Esforçava-me por ser alguém, a ponto de cuspir o melhor de mim para cima do público que vinha ver-me tocar. Fui um artista falhado, quer em cima do palco, quer no meio dos outros, vivendo o excesso e oferecendo-o a outros. Dias de baixo, guitarra e bateria; juventude de acordes, batidas e compassos rítmicos; pulsões graves, pedais de efeitos, amplificadores, emoções; fúria e vida no limite e a diluição do ser no maelström sonoro como um murro no espírito, no estômago e no coração; estado puro; travo a libertação. Custava-me ser quem era e havia o medo do futuro e os rostos na noite e as paixões de passagem e o êxtase puro e narcotizado. No gabinete, esforcei-me por ordenar visões passadas e limpar os borrões da memória como gatafunhos de película antiga; guardar a fragilidade da vida em caixa de cristal ósseo. No fim da juventude, tudo se foi e partiu, tudo se derramou e caiu. Por minha culpa, por minha tão grande culpa, vivi atido aos defeitos dessa condição. Bêbado, ouvi então como que um grito do fundo do tempo, solto e rasgo de frustração no peito como a morte adiada que à esquina espreita em desamparo e se expande como ondas vibratórias de colunas de som. Avivou-se-me a voz da emoção e já só falava, mal me calava, tudo dizia. “Agarra aqui, ó tempo!, agarra aqui, ó vida!”, declamei, na maior ebriedade, “atenta bem quem vos mantém e não me fodam o juízo, não me macem com promessas ou lérias trogloditas, hermafroditas, de voltar lá atrás onde tudo era perfeito sob a égide do amor imortal que nunca veio para ficar ou serviu para amar. Jovem Franco, cala e ouve com atenção o respirar-arfar deste pulmão cansado, coração petrificado com a estâmina desgastada desta vida dolorosa, normalizada, suplício que os ossos carregam para no fim se entregarem à fábrica da gelatina, hemoglobina, vã sanidade atirada pela janela e pelo cano, daqui a um ano, talvez, ainda esteja aqui, sob o fumo dos carros e o medo invisível que grassa como pão à boca, que penetra, cerca e sitia, aqui e agora, a sós, só nós, em mundo gasto, no adeus à juventude que já era, pobre e única, sã mocidade… E eu, rei dos mundanos, jazo neste vil covil desta porca cidade. Nas minhas peludas barbas crescem vozes ao de leve até aos ouvidos, rumores ajavardados, gritos de homens torturados e já mortos à nascença, criaturas que ninguém quer ou pediu mas que aqui estão e nascem todos os dias, sujos de olhos, de nariz e boca como pinturas de guerra… Ai de ti se deixas passar os anos sem nada fazeres! Ai que já é tarde o que te faz velho e o que dantes te fazia cedo quando dantes eras o cedo da vida! E, ui!, vê lá tu, Franco, como tudo pica e corta; a tua mãe: morta; o teu pai: morto; o cão e o gato e a porra da vida que fazem de ti gato-sapato!… E era uma vez um menino de dentes grandes e pernas de arame, que gostava da escola toda, de chocolate quente com azeitona e salame. Que feio e grosseiro disparate, homem de pobre quilate!… Além de tudo, tinha-te perto de mim, ó consciência sem rosto! Contigo o desgosto, a praga das horas que passam e passam, o solavanco dos corpos, a imundície dos festivais, os tais, repletos de índios banais, a cara borrada de esquecimento e a fome de viver tudo, tudo, tudo!… De ti preciso, ó consciência, só a ti, nada mais, enterrada neste corpo-farripa de meia-idade, neste melhor pano de carne e osso onde cai a nódoa do mundo e da vida florida com rosas cinzas e negras, de escarlate molhada, como bela ruiva de raça e beldade, de passos leves na cidade, a trazer mocidade à vida malvada que salta sobre os canastros dos outros e a memória que carrega para sempre, ardente, qual montra de olhos a que a natureza se verga mas que não, não enxerga ou se verga como devia. Mas que azia, a vida!… Já agora, desisto de mim e esqueço-me aqui, pese embora o que disto faço, com embaraço, sempre que me emborracho e volto à vida que levo neste enleio saturante. Mas, sim, sou o amante, o viajante, o tratante que tarda, que não desiste, o triste, o maltrapilho que de maldade veste a saudade, que conhece a fundo a vertigem do jovem que, todos os dias, quer ontem ou hoje, na loucura latente das horas, bate com a mão na testa e recorda o bom de antanho, o tal, lá detrás, o dantes que disto fazia paraíso e que agora, no inferno das horas a passar e a passar, recorda a colecta dos risos e da beleza do mar, o menino sem tempo e do carinho da mãe, também. Contudo, sempre que a luz se apaga, quer antes, quer agora, quer doravante, o rapaz reaparece, triunfante… Ó juventude perdida!, ó emperro da falta de ti e de todos!, da malta, de sempre, a querida, a ida, a morta, na mente que recorda esta vida torta que jamais se engrila e que, tida e ida, em linhas de parafina a queimar, se deixa estar na memória, pois é ela outra história que não esta mas a do corpo que empesta e fede como dantes, patético e velho como o triste cavaleiro do Cervantes, em luta com moinhos e gigantes, perdido de amores pela Dulcineia, mulher sem-par entre outras, como a Madalena, espinho de amor-gangrena, mulher de armas, camarada, de quem tudo espero e nada senão paixão e desprezo, certeza distante, de mão em mão, qual pássaro em desditosa borralha! Ah, perversa canalha!… Esta, a má; a outra, a boa: que falsidade, que logro, a deste engodo sem loa! E perdão ninguém mo dá, pois não há boca que me escarre verdade, sentença ou conselho… Estou acima de todos, ouviram?! De todos! Acima do que não sei e conheço, do que não vejo ruir diante dos olhos, da ralé que formiga nas ruas e indústrias, que move engrenagens e alavancas, que traja o hábito da rotina e esmorece sem dó nem piedade, que morre, morre, morre! Um desfile de mortos e vivos, a sofrer, a correr, a saltar, cavalinhos que não saem do lugar, carrossel que gira e gira sem parar, com piças moles e conas secas, toalhas ao chão, o KO, e eu desisto, ouviram? Eu desisto! Isto já não se aguenta, não, senhor! Ai, mãe, o medo! Ai a dor, senhor doutor! Ai o degredo, senhor Alfredo, e o mal que tudo cobre! E eu a delirar, na paz do Senhor! É o delírio, deliro! É a asfixia, asfixio! E tudo me cansa e canso-me, e tudo cala e calo-me, e todos falam sem escutar porque falo e falo, e eu… eu…”
Silenciei-me. Estava parvo, bêbado que nem um cacho, espojado no chão, a desvairar. Perdera o norte naquela bebedeira, naquele elenco de palavras doravante esquecidas nas intricadas brumas da memória. No fundo, acabava comigo aos poucos e sumia-me como memória que se eclipsa. Tinha pensamentos ruins que tão depressa se iam como voltavam sem reparo. Pior do que isso, esquecia as causas prováveis desse mal-estar. Por cada tipo que enfrenta o seu mal, há sempre outro que deixa outros fazê-lo por ele. Eu não. Eu vivia sem medo. O medo é uma perda de tempo. Um absurdo. A certa altura, deixei de pensar. Por fim, vomitei. Um vómito repugnante, fétido. Aliviado, sentei-me na cadeira, à secretária, e assim fiquei o resto da noite. Tinha motivos para isso. Em boa hora, se vos não estivesse narrando isto, já tinha enlouquecido ou batido a bota. Peço-vos, pois, que me escutem com atenção e vontade. Só assim se entende a mensagem.