JOSÉ PASCOAL
O MUNDO FECHADO
Não sei o que faço aqui,
Neste bocado de chão
Comido pelas formigas,
Nesta hora cinzenta
Como o asfalto gasto da estrada,
Nesta página atravessada
Por soluços e relâmpagos.
Não me interessam
As notícias do desengano
E do desempenho,
Não me interessam as vozes
Que clamam por doses bem servidas
De raiva,
Não me interessam os interesses.
Mas ainda não sei o que faço aqui,
A fazer de eu mesmo,
Porque sou eu mesmo
E o meu medo
De não ser reconhecido por ti
Na rua dos teus passos.
UCRATE
Em Ucrate,
A sombra duma oliveira
Ilumina as nossas sombras
Vindas de longe,
Da selva dos crustáceos
E dos bois de trabalho,
E um sino chama para a missa
Os mais incautos
Dos mais desesperados,
E uma alvéola brinca
Num pátio de terra batida
Pelo calor do céu,
E duas cabras dão uma corrida
A ver quem ganha a erva,
E os canitos de pedra ladram
Contra a secura que os atormenta,
E eu recordo-me de um mar
Maior do que uma ermida,
E tudo me parece vago e vivo
Como o rosto duma virgem de calcário.
A PAZ E O SOSSEGO
Não me tirem
A cafeína dos versos
Nem a alegria
Das primeiras impressões.
Houve um tempo
Quente e frio,
A nortada dos desejos,
Revoada de estorninhos.
Houve um espaço
Aberto à luz
Da cal
E da palha face à bruma.
Não me tirem
O sono leve
Das noites férteis
Em sonhos meridianos.
APARELHO AUDITIVO
Falamos muito do silêncio
E não nos damos conta do ruído
Das cidades em chamas.
Cantamos de cabeça descoberta
Canções antigas como a terra
Do fogo e do diabo.
Só ouvimos a música dos poços
E dos pântanos secos na memória,
Depósito de sombra.
Até que a Ceifeira nos seque a palavra.
À MARGEM DE VERBO ESCURO
Desde que me conheço
Nenhuma graça me acontece:
O silêncio é o meu ruído,
O passado, futuro que anoitece.
José Pascoal