JOÃO PEREIRA DE MATOS
1.
A nave dos loucos pára em cada porto e recolhe gente, aos centos e centos. Dentro em pouco, não logrará navegar, vergada ao peso da multidão coesa que se aglutina numa massa informe de corpos e gritos, mas continua a parar em cada porto e a recolher essas legiões ululantes pois, ainda que acabe no fundo do mar, essa é a sua missão e esse o seu destino.
2.
Um anjo-da-estética-vã poisa no ombro do artista e segreda-lhe ideias impossíveis, improváveis ou já muito gastas de modo a que o infeliz, julgando-se agraciado pelo favor divino, não entende que todo o seu labor é inútil e acaba por enlouquecer ante o cansaço de tanta derrisão e errância.
O anjo, tão ingénuo quanto imperecível, jamais compreenderá o engano pois os anjos são incapazes de mudança e irá, no decorrer dos séculos, atormentar tantos outros pobres artistas. Para grande gozo do demo.
3.
Nos escombros dourados daquela civilização arruinada, o derradeiro sobrevivente, por ser optimista e imaginoso, gozava da autonomia e da melancólica bem-aventurança de um deus.
4.
Naquele infausto & árido deserto a presença, benevolente, desses ferocíssimos carnívoros assegura que não têm de sofrer durante muito tempo os que ficam para trás.
5.
A tempestade aproxima-se e eu devo apressar-me. Porém, quanto mais quero correr mais os meus pés se enterram na terra e na lama e o vento já é tão forte que sou empurrado para trás, para mais longe do refúgio que antes, quando tudo era bonança, parecia estar perto e à-mão.
6.
Um homem que grita. Um homem que grita na noite. Um homem que grita na noite de uma cidade pacificada pelo sono, pelo cansaço, pela pobreza e pela necessidade, pelo mando de quem gosta das coisas assim. E que grita ele senão impropérios? Colérico contra inimigos talvez reais, talvez imaginários, talvez exumados de memórias antigas, ressentimentos quase esquecidos. Relembramos menos pela sua memória ébria, pois ele não é só disfuncional pelo álcool, há também raízes fundas para a ira na sua triste e sofrida biografia. O que quereis? Pobre de miséria, só e sem tecto, o que lhe resta para além do grito?
Um homem sem nome grita na noite. E, na cidade funérea, não é ouvido.
7.
Vem, tu, pequena criatura, que de todas entre nós és a escolhida e indicada para enfrentar a tremenda provação que é a luta final com o horrendo titã que, desde há incontáveis eras, assola o nosso povo, temperado pela dureza da chacina, tornado corajoso pela força do infortúnio, sagaz no apego à vida.
E mesmo os muitos e aramados guerreiros que abundam em nossas fileiras, de aço e osso revestidos, seleccionados pela alta bitola da sobrevivência, não se comparam em força e violência ao nosso colectivo algoz, que se deleita em dizimar as nossas forças, embora, onda após onda, as enviemos para o combate na vã tentativa de uma libertação.
Assim sendo, só nos resta a longínqua ténue esperança d’encontrar a mais frágil e insignificante cidadã para que, por um desígnio cuja lógica nos escapa mas que, ainda assim, poderá ser aquela, no incerto porvir, a conseguir quebrar as defesas de gigante, baixar-lhe a guarda e , no momento oportuno — com a ajuda dos deuses e dos anjos — lograr, finalmente, desferir-lhe o golpe fatal.