|
MAJOR MIGUEL GARCIA
|
TIPOLOGIAS DE GUERRA |
A violência global permanente |
O Congresso de Viena que instituiu o Sistema de Congressos marca o início de um longo período de hegemonia inglesa, em que os Estados vão estar sobretudo preocupados com a revolução industrial. Na primeira metade do século são poucos os conflitos entre os grandes poderes. Na segunda metade a grande preocupação vai para as inúmeras intervenções inglesas e francesas para conter ambições russas e austríacas em relação ao império Otomano, base originária da guerra da Crimeia (1853/1856) que provocou 270 mil baixas militares.
Com o emergir de novos poderes (EUA, da Itália, da Alemanha unificada e do Japão) o sistema internacional evolui de unipolar para multipolar. Com o novo sistema surge também um novo padrão de conflitos entre os grandes poderes; estes passam a ser mais frequentes, mais rápidos, mas com menos baixas. O conflito mais intenso neste período foi a guerra franco-prussiana, que provocou 180 mil baixas militares. Na segunda metade do séc. XIX os grandes poderes empenham-se nas guerras do império, com as campanhas de pacificação após Berlim. São guerras por norma, numerosas, curtas e pouco intensas. O século precedente iniciou-se com a guerra dos Boers (1899-1902), depois e no imediato, a russo-japonesa (1904-1905), seguida da guerra italo-turca (1911, ocupação da Tripolitânia na Líbia), e por fim as guerras balcânica. As rivalidades entre os grandes poderes, e o agudizar dessas rivalidades conduz a um novo período de guerras globais que se estende de 1914 a 1945. Neste período que marca a transição da hegemonia inglesa para a americana, surgem duas Grandes Guerras. A 1ª com 7,7 milhões de baixas militares em cinco anos, o triplo das napoleónicas (dez vezes mais em termos de média anual) e a 2ª com 12,9 milhões de baixas militares. No período de paz tensa entre as duas Grandes Guerras surgiram inúmeros pequenos conflitos. Em 1919, entre a Turquia e a Grécia, depois em 1926- 1937, a guerra civil chinesa, ano em que se inicia também a guerra com o Japão. Em 1936 a guerra na Etiópia ao mesmo tempo que a Espanha entra em guerra civil. O pós segunda Guerra Mundial é caracterizado pela rivalidade da guerra fria; rivalidade entre os grandes poderes no campo económico, ideológico e político, constituindo a força militar um dissuasor. Este período é caracterizado pelos inúmeros conflitos nas zonas de confluência dos interesses das grandes potências, que se enfrentavam por locução interposta. Era no fundo uma verdadeira Terceira Guerra Mundial . Guerra que começa na Coreia, e que continua com as guerras de “libertação” na Indochina, Argélia, Angola, etc.. No Médio-Oriente foram as guerras entre árabes e israelitas em 1948, 1956, 1967, 1973, 1982. Nesta região ainda hoje persiste a guerra entre palestinianos e israelitas. Os EUA enfrentaram a guerra do Vietname, de 1964 a 1973, e em 1979, a União Soviética invade o Afeganistão onde permanecerá 10 anos, favorecendo o emergir de um sentimento, mais tarde movimento islamista internacional de freedom fighters e/ou de terroristas anti-ocidentais, conforme se queira ver. Na América Latina foram sucessivos os Golpes de Estado bem como a instalação de um clima de violência quase generalizado. Nos anos oitenta (1982) a Argentina inclusivamente desafiou uma potência europeia (Reino Unido) na guerra das Malvinas/Falkland. Entre 1979 e 1989 iranianos e iraquianos enfrentaram-se na 1ª Guerra do Golfo; em 1990, é formada uma coligação internacional contra o Iraque. Em África não se evitam as inúmeras guerras civis (Angola, Chade, Libéria, Moçambique, Serra Leoa, Congo, Rwanda, Costa do Marfim, Guiné-Bissau); na Ásia a revolta Tamil no Sri-Lanka, os sucessivos conflitos entre a Índia e o Paquistão, onde existe a ameaça nuclear; as acções de afirmação/imposição de soberania na Indonésia (Timor Leste e Acheh), para novamente nos anos noventa a guerra voltar à Europa, nos Balcãs. No fundo, o séc. XX, foi um século repleto de violência com perto de 200 milhões de baixas provocadas por uma centena de guerras (1), sendo a arma mais mortífera a AK 47/74 Kalashnikov. Se após Vestefália, mas sobretudo após o Congresso de Viena, o Estado era o detentor do monopólio da utilização da violência legítima, a partir da década de noventa do séc. XX, as guerras surgem com outras características. Tornaram-se cada vez menos entre Estados (2) e mais internas, infra-Estado, verificando-se uma extrema plasticidade dos seus actuantes, assemelhando-se muitas vezes a uma luta de morte, pela sobrevivência, sem regras, sem objectivos claramente definidos, por vezes podemos mesmo dizer, totalmente irracional, considerando Alain Bauer e Xavier Raufer um novo tipo de guerra, a guerra caótica, poluída, penetrada pelo crime organizado, pelo terrorismo e pelo tribalismo (3). Este terceiro milénio continua cheio de incertezas. São evidentes as mudanças profundas da conjuntura internacional. Com a implosão a Leste, o Mundo deixou de ser bipolar; geopoliticamente falando, ficou privado de sentido, como sublinhou Zaki Laidi (4). A ameaça que estava bem definida desapareceu, dando lugar a um período de anormal instabilidade, com uma ampla série de focos de convulsão regionais e múltiplos radicalismos, riscos e perigos, uns novos, outros antigos que apenas subiram na hierarquia das preocupações dos Estados. A instabilidade é igualmente criada pelos novos tipos de ameaças e riscos, alguns já hoje manifestos, outros larvares. Já não é a “guerra irregular” típica do anterior sistema internacional; é a violência assimétrica permanente, sem uma origem clara, que pode surgir em qualquer lugar, típica do mundo tendencialmente unipolar do pós-guerra fria (5). Num mundo hoje marcado pela volatilidade identitária (6), as zonas de interesse estratégico fundamentais alteraram-se, e passaram a ser aquelas capazes de exportar a sua própria instabilidade (7), e as guerras passaram a ser uma mistura explosiva de aleatório e de determinismo (8). As novas guerras surgirão na procura de acesso a um recurso escasso, como a água ou mesmo a informação. Segundo Jacques Sapir (9) assistiremos a guerras que utilizarão vírus ou programas informáticos para bloquear os sistemas de comunicação e transmissão de dados; a guerras provocadas pela alteração de relação de forças entre actores não estaduais e os Estados; a guerras financeiras com o objectivo de desequilibrar o mercado e as guerras contra grupos criminosos, deixando o Estado de possuir o monopólio do uso da violência. |
(1) BOUVET, Beatrice e DENAUD, Patrick, Les guerres qui menacent les mondes, Paris, Editions de Félin, 2001. p. 11. (2) Kalevi Holsti na sua obra, The State, war, and the State of War, é esclarecedor com os seus dados estatísticos referentes ao número de Estados e a respectiva percentagem, que se envolveram em conflitos entre Estados de 1715 e 1995. A tabela indica uma média de 0,005 conflitos entre Estados de 1945 a 1995, em contraste com 0.019 por Estado e anualmente nos Estados europeus no século XVIII, º0014 no século XIX e 0,036 entre 1919 e 1939; de salientar que após 1945 não se registou nenhuma Guerra entre as grandes potências; in, HOLSTI, Kalevi, The State, war, and the State of War, Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 23. Michael O´Hanlon considera mesmo que as Guerras entre Estados se encontrão em vias de extinção; in O´HANLON, Michael, Coming conflicts,interstate war in the next milenium, Harvard International Review, Verão de 2001. (3) BAUER, Alain e RAUFER, Xavier, A Globalização do terrorismo , Lisboa, Prefácio, 2003. p. 165. (4) LAIDI, Zaki, Um mundo privado de sentido , in, Nação e Defesa n.º 87, Outono 98, 2ª Série, Lisboa, pp. 75 – 128. (5) TELO, António, Reflexões sobre a Revolução Militar em Curso; in, Nação e Defesa n.º 103, Outono -Inverno 2002, 2ª Série, Lisboa, p. 222. (6) BADIE, Bertrand, Le nouvel ordre mondial, in BOUVET, Beatrice e DENAUD, Patrick, Les guerres qui menacent les mondes, Paris, Editions de Félin, 2001. p. 71. (7) RAMONET, Ignacio, Des nouveaux intérêts stratégiques, in BOUVET, Beatrice e DENAUD, Patrick, Les guerres qui menacent les mondes, Paris, Editions de Félin, 2001. p. 56. (8) THUAL, François, Les lignes des fractures, in BOUVET, Beatrice e DENAUD, Patrick, Les guerres qui menacent les mondes, Paris, Editions de Félin, 2001. p. 69. (9) SAPIR, Jacques, Des guerres très privées, in BOUVET, Beatrice e DENAUD, Patrick, Les guerres qui menacent les mondes, Paris, Editions de Félin, 2001. pp. 115-117. |
|