A presença protestante em Moçambique é uma realidade sobretudo importada dos territórios vizinhos, muito produto de migrações. Pequenos núcleos de protestantes expandiram-se no território na mesma época da Conferência de Berlim, sendo a primeira instituição religiosa protestante a instalar-se em Moçambique a Igreja Metodista Episcopal, em 1883, seguida da Missão Metodista Livre e depois da Missão Suíça. Em 1893, surgem em Chamanculo e em Maciene os Anglicanos, e em 1935, os Adventistas do Sétimo Dia. O principal esforço catequético desenvolvido pelos missionários protestantes foi no Sul do território (1).
Segundo o Supintrep “Panorama religioso de Moçambique” datado de 1967, o número de protestantes em Moçambique estimava-se em 450.000, localizando-se o grosso dos seus adeptos no Sul do Save. Existiam ainda 24 Missões, na sua maioria situadas a Sul, mais propriamente em Gaza, Lourenço Marques e Inhambane (2).
Dos principais métodos catequéticos a que recorriam os Protestantes em África, destacam-se a crescente utilização da imprensa, o recurso permanente à acção médico-social, à distribuição de trajos e distintivos, ao hábil aproveitamento de certas fraquezas psicológicas do Africano, à superioridade tecnológica, à exploração de erros da Administração; através da compreensão e aproveitamento de alguns usos e costumes dos autóctones, à divulgação de um conhecimento simples mas útil; à actuação junto dos chefes tradicionais; ao recurso ao desporto; à usualmente pouca importância paga nos seus bons serviços hospitalares e escolares; à propaganda levada a cabo através de clubes e associações, bem organizadas segundo idade e sexo, o planeamento da celebração do culto sincronizado com os afazeres; à instalação de escolas em locais dominantes e à implantação destacada de símbolos religiosos (3).
Face aos progressos do Catolicismo e do Islamismo, o Protestantismo parecia contentar-se em sobreviver. Contudo, não podia subestimar-se a sua influência que, através de Missões preocupadas sobretudo com o aspecto prático e utilitário e, em geral, dispondo de recursos consideráveis, conduziam com facilidade o autóctone à conversão, o que não seria inconveniente para a Administração Portuguesa se os missionários (cujo número de portugueses brancos era muito reduzido) não fossem abertamente contrários aos interesses e à causa lusa (4); o clero protestante assumiu franca e hábil hostilidade para com a soberania portuguesa. As atitudes tidas por inconvenientes para aquela soberania, por parte de alguns missionários estrangeiros, podia ser explicada, segundo as Informações Militares Portuguesas, pelas linhas de articulação e dependências externas que esses missionários mantinham com os seus países de origem (5).
As Igrejas Protestantes, no desempenho das suas actuações sócio-económicas e de catequização, eram auxiliadas com fundos dos países de origem e por algumas organizações internacionais. Mas, no sistema político então vigente, em que era inviável uma tomada de posição aberta daquelas Igrejas para com a subversão, diversas delas, através do Conselho Mundial das Igrejas, apoiaram a FRELIMO com fundos para fins humanitários, como vimos em 3.3 do II capítulo; tal auxílio processava-se apenas para o Seminário de Ricatla. Acreditava-se ainda que a “Conférence des Églises de Toute L’Afrique” desempenhava em relação às confissões protestantes influência relevante que não seria apenas espiritual (6).
Ainda de acordo com a mesma fonte, algumas Missões protestantes apoiavam francamente todos os movimentos independentistas e desenvolviam violenta campanha contra Portugal e a sua política ultramarina; a missão civilizadora daquelas era por vezes, transformada em acção subversiva (7). Este documento, além de discriminar detalhadamente quais as Missões e sua localização, tece ainda considerações sobre as actividades das mesmas no território, incluindo as subversivas. Acerca da Missão Suíça de Lourenço Marques eram veiculadas notícias que aludiam a actividades hostis por parte de alguns pastores, nomeadamente Manganhele e Mathié (8). Da Missão de Chicumbane surgiram também rumores de actividade subversiva, bem como na de Maússe, onde estudara Eduardo Mondlane. Além deste, foram numerosos os líderes da FRELIMO que cresceram num pano de fundo protestante, a maioria “(...) coming from a generation of an elite educated by the Swiss Missionaires (...)”(9), sendo disso exemplo entre outros, Alexandre Guebuza, Pascoal Mocumbi e Sebastião Mabote (10).
O envolvimento de jovens protestantes na luta independentista, a atitude dos pastores africanos que condenavam a política colonial mas inicialmente não aceitavam a ideia de independência pela via armada, tendo depois aos poucos começado a simpatizar com o movimento (11), bem como o papel desempenhado por Mondlane na luta pela independência, combinados, enfatizam o papel anti-colonial das Igrejas Protestantes, nomeadamente da Presbiteriana Africana. Esta, através da Missão Suíça, participou na promoção do ensino a todos os níveis e na preparação de uma liderança clerical africana no período 1961-1974, fomentando ainda a fundação de uma elite educada; contribuíu assim, conscientemente, para o desenvolvimento de uma liderança sócio-política que, segundo Teresa Cruz e Silva, encorajou os Moçambicanos à luta pela independência (12).
Por forma a aumentarem a eficiência do seu proselitismo, as Missões protestantes de Moçambique (excepto Adventistas e Baptistas) uniram-se, formando o Conselho Cristão de Moçambique ou Aliança Evangélica, que constituíu, além de «alavanca missionária», um instrumento político incómodo para a Administração Portuguesa (13).
Nas populações negro - africanas sempre se verificou a propensão para a formação de movimentos do tipo associativo que desempenharam funções diversas na organização e direcção da vida social. Estas associações, produto das sociedades ou resultantes do contacto com o colonizador europeu, foram como que um movimento instintivo de reacção contra aquela cultura estranha ou de defesa da própria e, ao mesmo tempo, meio de superação das diferenças de situação social inerentes à situação colonial (14).
Fora da sua colectividade originária, o negro-africano, como já vimos, fica destribalizado, desamparado e inseguro. Restam-lhe complexas vias alternativas. Uma dessas vias pode integrar um “(...) processo de sublimação assumido através do carisma salvífico de uma seita cristã de anelos imediatistas (...)”(15).
As rivalidades missionárias do colonizador reflectiram-se na forma como a actividade missionária foi organizada. O negro-africano conheceu, assim, diversas realidades religiosas, tendo tido que optar por uma. Face às exigências das práticas religiosas católica, veio juntar-se o avigorado recrudescer das seitas, que se podiam qualificar de um cristianismo africanizado. Esta situação contribuiu para o enfraquecimento da acção missionária, conduzindo, em simultâneo, ao princípio do livre exame, comum a todas as seitas protestantes. Se o estudo livre e directo das Sagradas Escrituras era lícito para o Branco, também seria legítimo ao Negro procurar nelas a sua verdade. Daqui à estruturação de Igrejas separatistas, só de negros, foi um passo que se deu com facilidade (16).
As seitas, transigentes com o substrato mítico e mórfico do autóctone, oferecendo-lhe práticas que o fortalecem na convicção da sua promoção sócio-cultural, são “(...) sincretismos bizarros de crenças cristãs, caldeadas com animismos e feiticismos indígenas, pompas de hierarquia e ritos à mistura com feitiços e danças, que exerciam sobre o indígena um irresistível fascínio de conquista, atraindo os fiéis baptizados e desviando a muitos da catequese da missão (...)”(17). Entre 1964 e 1974, foi identificado em Moçambique um «núcleo duro» de 65 diversificações conhecidas, número que, pelos elementos disponíveis, consideramos ser maior na quantidade e mais difuso no espaço(18).
Silva Cunha considera três grandes tipos de associações religiosas: as de forma e conteúdo primitivos, as de forma primitiva e conteúdo novo e as de forma e conteúdo novos (19).
Das primeiras podemos identificar, em Moçambique, a Nhau, característica dos povos constituintes do antigo império Marave, contando com adeptos entre os Acheuas, os Azimbas e alguns Angonis. Encontrava-se estritamente associada à estrutura política tradicional e à vida social mágico-religiosa das sociedades em regime tribal (20). Segundo o Supintrep “Seitas Gentílicas da Província de Moçambique «Nhau»”, os dirigentes da FRELIMO, actuando no aproveitamento desta instituição tradicional em proveito próprio, abriram uma reunião política da Frente, em território do Malawi, com a apresentação da dança Nhau. Este relatório alertava para que, dado que se tratava de uma instituição que visava a conservação dos valores tradicionais e as prerrogativas deles decorrentes, facilitaria o movimento e controlo das autoridades, pelo que estas deveriam tolerar aquelas actividades exteriores, espectaculares, nas ocasiões de rituais, contribuindo, assim, para a manutenção da sua finalidade (21).
Nas associações de forma primitiva e conteúdo novo, distinguem-se os Mau-Mau, de carácter exclusivamente feiticista, que combatiam o Cristianismo como parte integrante da cultura europeia, tendo por finalidades, entre outras, obter o self-government e recuperar a terra espoliada pelos Brancos, indo deste modo ao encontro do sentimento das tendências das massas que pretendiam movimentar (22). Em Dezembro de 1964, foram referenciados em Moçambique 200 elementos armados deste movimento, provenientes do Quénia (23).
Dentro das associações de forma e conteúdo novos, Silva Cunha inclui as Igrejas separatistas e os movimentos profético-messiânicos, constituindo a sua formação e expansão uma das demonstrações mais características das mutações sócio-culturais produzidas pela colonização europeia em África (24).De carácter essencialmente religioso, passaram a movimentos com fins políticos, vestidos de um nacionalismo vigoroso mas rudimentar. Em Moçambique, entre 1964-1974, as áreas étnicas onde mais se fazia sentir a acção das igrejas cristãs nativas estavam extremamente identificadas com a subversão(25). Assim, para o Poder português era importante não só saber a localização das sedes, mas estabelecer a sua ligação com o factor étnico.
Na República da África do Sul, surgiu nos finais do século XIX a primeira iniciativa de criação de uma «Igreja» independente. Naquele país, estas estão distribuídas por dois grande grupos que expressam a Negritude: as seitas etiópicas e a seitas zionistas, que se identificam no carácter profético - messiânico da doutrina.
O Etiopismo e o Zionismo exprimiram-se num crescendo paralelo a partir da derrota italiana na Etiópia (Addua 1896), da revolta dos Zulus em 1906 e novamente da derrota italiana na guerra italo-abissínia (1935), sempre se conotando com o factor da superioridade rácica. O Etiopismo, era típico das áreas mais ruralizadas, clivado de Missões na quase totalidade de protestantes, ao passo que o Zionismo era mais frequente nas zonas urbanas e periféricas. Em Moçambique, segundo as estimativas oficiais de 1972, implicavam cerca de 20.000 pessoas. Esta expressão numérica, cremos, apresenta grandes lacunas. Para Amaro Monteiro, dado que o fenómeno foi estudado de uma forma incompleta, este número deverá ser multiplicado por dez (26).
Movimento político-religioso que pretende basear toda a sua doutrina na Bíblia, o Etiopismo é introduzido em 1892 na África do Sul por Magena Makone, estabelecendo um programa de reacção autonomista em relação às Igrejas dos missionários brancos. O termo etiópico é sinónimo de africano, defendendo o Etiopismo que a raça negra remonta aos primórdios da Humanidade e que a África foi destinada por Deus aos negros.
Procurando manter a ortodoxia das igrejas protestantes, ao mesmo tempo que interpretam a Bíblia à maneira de ser dos Africanos, os cultos etiópicos não transigem com as religiões tradicionais e reclamam, numa forma de racismo que diríamos anti-racista, a “África para os Africanos Negros”, representando, assim, o nacionalismo africano. Estes cultos, que encontravam campo favorável à sua propagação no ambiente de segregação racial sul-africano, formam outros tantos organismos separatistas, que repetem na sua estrutura o carácter aristocrático das sociedades bantas sul-africanas, com um chefe político e religioso. No entanto, todas estas igrejas separatistas estavam ligadas a uma ideologia comum profético-messiânica, apoiada na esperança de uma inversão da ordem existente e da expulsão dos Brancos.
O chefe da igreja etiópica procura copiar as técnicas das missões de que se separou, tentando, no entanto e em simultâneo, integrar-se na tradição africana, aproveitando o prestígio das chefias tribais como uma afirmação da independência e de rebeldia contra o Branco. Por outro lado, o chefe zionista procura a independência do negro-africano de outra forma, regressando à religião tradicional transformada à luz da doutrina cristã, aparecendo os cristos negros (27).
As seitas zionistas diferenciam-se das etiópicas pelas particularidades dos ritos e pela importância que atribuem aos exorcismos médico-mágicos. A Igreja mãe é a Christian Catholic Apostolic Church in Zion, fundada nos EUA por John Alexander Dowie em 1886. A primeira Igreja do tipo zionista criada na África do Sul, no ano de 1908, denominava-se Zion Apostolic Church.
Estas seitas eram consideradas como drasticamente adversas ao Branco (28), procurando fazer a síntese do Cristianismo com as religiões tradicionais, repudiando o ensino recebido nas missões.
A subversão procurava explorar as tendências mítico-religiosas do negro-africano, introduzindo nas suas crenças um sentido xenófobo, sendo mesmo referenciada uma influência nefasta de certas seitas religiosas, nomeadamente da “Zion Apostolic Church in South Africa” e da Igreja “Zion Apóstola em Moçambique”(29). Estas, com um número crescente de adeptos, especialmente nos Distritos de Tete, Manica e Sofala, Barué, Chimoio e Mussurize (30) foram introduzidas no território por indivíduos vindos do Transval.
Na Zambézia, também se verificou a proliferação de adeptos de diversas seitas religiosas, especialmente da “Santa Igreja Fé dos Apóstolos”, que, segundo se pensava, recebia comandamento de um nativo residente no Malawi, o qual instigava uma acção de carácter terrorista contra os Brancos da região. No Distrito de Inhambane, as seitas protestantes incrementaram a sua actividade considerada suspeita e, em Lourenço Marques, as seitas zionistas e a “Igreja Etiópica Luso-Africana”, faziam a apologia da emancipação do Negro pela eliminação do Branco, efectuando reuniões clandestinas na região de Sabié (31).
Destacamos ainda a seita “Watch Tower” ou “Testemunhas de Jeová”, fundada em 1872 por Charles Russel, nos EUA, que, contudo, não é gentílica, mas sim internacional. Apesar de não estar autorizada no território, foram detectadas actividades dela, nomeadamente, nas regiões fronteiriças. Para os seus adeptos só existe uma verdadeira religião, estando os respectivos preceitos expressos na Bíblia. Reclamam-se a isenção de prestar serviço militar em Forças Armadas, pois já servem um Exército, o de Jesus Cristo (32). Segundo Afonso Ivens Ferraz de Freitas, no seu estudo “Seitas Religiosas Gentílicas — Província de Moçambique”, a influência fazia-se sentir nas margens do Niassa e na Angónia, mas não se limitava a esses territórios. De acordo com aquele Administrador, a sua rede devia ser vastíssima, tendo sido contactados elementos mais ou menos isolados, tanto a Sul como na zona central do território; além disso as suas posições eram do mais subversivo e lesivo dos interesses da soberania portuguesa (33).
Sublinhe-se o facto de algumas confissões protestantes, nomeadamente as Metodistas (sobretudo a Metodista Livre), apoiarem e controlarem diversas das referidas seitas, imprimindo-lhes uma orientação nitidamente contrária aos interesses da soberania portuguesa (34).
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