Em Moçambique, o conceito de Nação encontrava-se em causa. Portugal procurava assegurar o maior número de lealdades políticas, reduzindo a adesão das populações à ideia-força da independência; daí a necessidade da Administração intensificar a sua movimentação em redor da ideia-força Nação Portuguesa. A acção da subversão procurava obviamente a integração das populações numa independência rejeitadora de Portugal (1).
O projecto do Poder português só seria viável se este conseguisse dividir as forças tradicionais. As divergências que opunham uns grupos etno-linguísticos aos outros, naquela conjuntura, eram passíveis de facilitar a manutenção da liderança da Administração, assim como, inversamente, a sua coesão podia dificultá-la; aliás bem compreendia a subversão, que se esforçava por promovê-la, dado o tribalismo ser um dos maiores obstáculos com que se deparava (2).
Ferraz de Freitas expunha os conceitos–base do controlo das populações, que assentava na noção de “comandamento” e “accionamento”, referindo que o conhecimento adequado das “forças sociais” que impulsionam os indivíduos envolvidos num determinado processo social, aliado à adequada compreensão da maneira como aquelas forças interagem, possibilitava o controlo das populações e a sequente condução da evolução do processo no sentido desejado. Além do mais, sabia-se também que o menosprezo dos usos e costumes essenciais à vida grupal podia originar choque, indignação e revolta, pelo que o respeito das mesmas era fundamental. Nesta ordem de ideias, Ferraz de Freitas exortava ao estudo das populações no território (3).
No entanto, note-se que esta opinião, perfilhada em toda a documentação militar ou da comunidade de Intelligence, não era coincidente com a de algumas autoridades administrativas. Podemos mesmo dizer que havia uma forma oposta de encarar o problema. No documento “Protecção e controlo das populações”, do Governo do Distrito de Cabo Delgado, datado de 1966, considerava-se que o poder exercido através de uma personalidade capaz de comandamento e accionamento se tornava muito débil; pois, a qualquer momento, a ordem instituída poderia ser alterada, bastando para tal a morte desse elemento. Assim sendo, em face das influências tribais e da potencialidade do perigo da sua utilização no comandamento subversivo, o mais conveniente para o Poder português seria o progressivo desaparecimento dessas influências de estrutura clânica e fundamento mítico, que constituíam um substrato social capaz de aglutinar populações fora da ordem cívica em que se pretendia integrá-las. O termo deste processo seria a completa emancipação das cegas e fatalistas sujeições tribais, deixando o indivíduo liberto e disponível para a sua qualidade de cidadão e, assim, accionável apenas por motivações racionais e pelo funcionamento do aparelho legal que enquadrava e articulava a sociedade (4).
Era neste sentido que se vinha actuando em Montepuez, desde que, em Agosto e Setembro de 1965, as autoridades administrativas se convenceram de que o uso em proveito próprio dos autênticos poderios tribais seria sempre demasiado aleatório para se contar com eles no esforço anti-subversivo, podendo os mesmos a todo o momento ser manipulados contra o Poder português, por tipos e linhas de comando que acabavam por fugir ao controlo nacional. Numa aceitação da realidade de os poderes tribais de facto existirem, pretendia-se utilizá-los, se possível; mas, por outro lado, havia também empenho em anulá-los, quando essa utilização se mostrasse impossível ou mesmo incerta (5). Com este critério do “seguro”, a PIDE desenvolveu um “cordão sanitário” na área de Montepuez e noutras, efectuando centenas de prisões, sobretudo de apwiyamwenes; “(...) objectivo que perdurou até a pesquisa dos SCCIM apurar que cabia à linha de comandamento muçulmano Mecúfi / Montepuez / Balama / Nungo / Marrupa / Maúa / Mecula o apoio essencial da progressão dos grupos armados sobre Montepuez e daí para Macomia (...)”(6).
A análise das diferentes interpretações do como actuar sobre/utilizar as populações em proveito do Poder vem confirmar a interacção dos factores negativos já referidos em 4.4.3., II capítulo: a dualidade civil/militar, mas sobretudo a disfunção na análise global. Contudo, na concepção de defesa adoptada pelo Poder português, havia unanimidade quanto à importância vital do papel desempenhado pelas populações. Assim, a preparação e informação dos quadros acerca das estruturas clânicas, tribais e sócio-religiosas das sociedades negras foram necessárias por ser forçoso um conhecimento do terreno, do humano, claro está, e no detalhe (situação que a subversão detinha e utilizou). Sem aquele estudo e preparação, não seria possível empreender com êxito a conquista da adesão das populações. Porém, esta situação era reconhecida sobretudo como axioma, pois o estudo ao nível adequado só frouxamente se pôs em prática. A tendência era mais para uma actuação convencional, conducente à posição de contabilizar armas e documentos capturados ou a população recuperada ou apresentada.... Facto que, dramático no contexto, se compreendia facilmente se pensarmos que um determinado tipo de concepção castrense não muda só porque uma cúpula a formula como norma. A instituição militar contém, natural e forçosamente, ingredientes conservadores, atinentes a uma “Ordem”; e o espírito de uma Ordem ou a sua aptidão/vocação específica não mudam em alguns anos, nem mesmo face a experiência de outras Forças Armadas (casos da Indochina e da Argélia, por exemplo). Ela transporta, como tudo o que é humano, a necessidade indirimível de sofrer a própria experiência em que, por vezes, naufraga. Lembremos, por exemplo, o comportamento do Estado-Maior francês perante os blindados em 1939/45: foi o General Guderian quem (muito tarde já!) o convenceu com o seu fulminante avanço Panzer, embora o General De Gaulle viesse, desde Coronel, repisando a imperativa necessidade de nova fisionomia da Cavalaria.
Ao nível do Comando da RMM, decidiu-se compilar esses estudos no Supintrep N.º 22 “Populações de Moçambique”(7). Pretendia-se com este documento reunir elementos de História, características étnicas, ligações e dependências de países vizinhos, relações de interdependência e a atitude das populações face à subversão, procurando assim facilitar aos escalões subordinados o conhecimento sumário do factor humano e a orientação de estudos de situação e do meio humano que fossem necessários elaborar (8). Estes estudos, feitos de forma atenta e cuidadosa, tinham pouco impacte e ressonância na rendibilidade das Operações (portanto ao nível táctico); parece que a Informação se perdia no trajecto das cúpulas para os Sectores e destes para os escalões inferiores (9).
Para o Negro, na maioria das vezes a fidelidade política era tida como relacionada com o parentesco, pelo que se estudavam as genealogias clânicas para se definir a afinidade potencial dos seus membros e o respectivo lugar na sociedade; no conhecimento dessas estruturas e dos seus elementos dominantes residia muitas vezes a chave da luta subversiva e contra-subversiva.
Na documentação oficial, a etnia aparece-nos associada a uma concepção taxionómica, que impregna também uma concepção estatística; logo, uma visão para-convencional. A etnicidade era remetida para a reformulação conflitual, estratégica e táctica (10), sendo que a questão central desses conceitos residia no actor A condicionar, vantajosamente, a actuação do actor B, com vista à obtenção daquilo que desejava.
Por um lado Portugal procurava “portugalizar” o território, não promovendo de forma sistemática a exploração de diferenças étnicas, nomeadamente devido ao carácter unitário do Estado, acrescido à natureza da acção colonial; por outro, a fragmentação étnica servia-lhe como tampão às exigências independentistas, particularmente da FRELIMO (11). Os grupos étnicos existentes não facilitavam a ideia de coesão nacional procurada pelos dirigentes daquela Frente. Esta ideia não existia para diversas etnias que, na prática, apenas experimentavam afectação ao clã e à tribo.
Hierarquizavam-se as sociedades africanas em família, clã, tribo, subgrupo e grupo étnico ou ainda complexo étnico, diferenciando-se pelos caracteres históricos, biofísicos, psíquicos, sociais, políticos e linguísticos. Estes caracteres, indicativos de alteridades da organização social da população do território de Moçambique, permitiam inserir elementos numa etnia, povo, entre outras e, assim, caracterizá-los. A análise de documentação classificada da PIDE/DGS, SCCIM e 2ª Repartição do QG/RMM, mostra-nos essa preocupação pela etnometria, procedendo-se por diversos métodos a uma «arrumação» das chefaturas tradicionais, da classificação etno-linguística das populações e dos grupos permeáveis ou aderentes à subversão. As cartas étnicas elaboradas pelas diversas instâncias do Estado reflectem, por conseguinte, essa necessidade de «arrumação» para posterior tomada de decisões políticas, definições estratégicas e actuação sobre as populações.
O clã (nihimo), unidade fundamental das sociedades bantas, funciona como elemento mítico-espiritual, social e mesmo juridicamente solidário, congregando as linhagens patrilineares ou matrilineares que identifiquem uma cadeia unilinear de parentesco (12). Em Moçambique, o Zambeze no seu baixo curso separa populações matrilineares a Norte, de patrilineares a Sul, não se incluindo aqui os hibridismos dos “Povos do Baixo Zambeze”.
A tribo era entendida como um grupo de indivíduos unidos pela fidelidade territorial e não pela ascendência, sendo tida como uma comunidade política composta por diferentes linhagens ocupando um território comum. As tribos eram agrupadas, do aspecto de estrutura social, em matrilineares, patrilineares e intermédias. No respeitante a comandamento, dividiam-se nas de comandamento interno e nas de além–fronteiras, uma vez que nos territórios africanos coexistem e convivem grupos social, cultural e etnicamente diferenciados, dentro dos limites políticos definidos por tratados e acordos entre as potências colonizadoras (13).
Era imperioso para a subversão (como deveria tê-lo sido para a contra-subversão) envolver toda a população na guerra, pelo que a guerrilha teria, necessariamente, de desempenhar um papel de destaque na sua politização (14). O aliciamento na FRELIMO estava a cargo do Departamento de Organização do Interior. No interior do território, que a subversão conhecia com detalhe e a coberto de laços clânicos, do prestígio de autoridades tradicionais e ainda da protecção de estruturas religiosas, a FRELIMO infiltrava os seus agentes, que, explorando ressentimentos e fazendo promessas de melhoria de condições de vida e benefícios, predispunham à aceitação e ao apoio dos grupos armados (15). Estes preparavam a agitação e recrutavam militantes (16).
A FRELIMO desenvolvia o esforço de aliciamento tendente à conquista da adesão das populações em todo o território da Província. A necessidade de apoio popular — numa linha de actuação tipicamente maoista, de recurso à imagem do peixe na água — era transmitida aos guerrilheiros, que referiam como uma das suas principais preocupações o estabelecimento e manutenção de boas relações com o povo, na linha das palavras de ordem da FRELIMO: “(...) respeitar o povo; ajudar o povo; defender o povo (...)”(17). Porém, os comprometimentos subversivos nem sempre correspondiam a uma “consciência de causa” e a uma “determinação de nela agir” por todos os meios; eram muitas vezes resultantes de situações fortuitas.
Por outro lado, as adesões pelo comandamento dentro da solidariedade familiar, servindo-se das inabaláveis ligações aos espíritos dos antepassados e de invencíveis receios correlacionados com a potência do sobrenatural, não representavam o acatamento submisso perante a ordem do dominador, mas sim uma perfeita e fatal integração de todos os abrangidos pelos mesmos laços míticos da ancestralidade clânica nos comportamentos que as lideranças adoptassem como os mais convenientes. Nestas adesões operava uma disciplina interior, com a força e a autenticidade que lhe advinha de corresponder a um processo de consciência, o qual, por natureza, dispensa fiscalizações e coacções externas. O indivíduo cede à sua vinculação tribal quando esta é invocada no complexo e actuante comandamento familiar (18).
Além do aliciamento na clandestinidade, foram típicas as execuções selectivas aos elementos renitentes em aderir à subversão (19). Em Moçambique, estas incidiam, como vimos, sobre os chefes tradicionais que mantinham a sua fidelidade ao Poder português. Esta actuação sobre as populações procurava “(...) ao mesmo tempo destruir o seu enquadramento e torná-las portanto mais permeáveis a todos os aliciamentos (...)”(20).
A parca e não raro qualitativamente fraca ocupação administrativa e as forças militares existentes no Norte do território em 1964, de maneira nenhuma preparadas para o tipo de hostilidades a surgir, permitiram, com relativa facilidade, que a FRELIMO desenvolvesse uma apreciável actividade de guerrilha e, simultaneamente, conseguisse o aliciamento das populações. Favorecia ainda a actividade frelimista a reduzida presença de população de origem europeia naquela área.
Ao nível político, em resultado das guerras de ocupação de territórios, surgiu o enfraquecimento ou destruição de unidades políticas mais fortes, seguindo-se uma fase de organização da administração territorial na qual se procuravam integrar as autoridades nativas tradicionais na nova ordem colonial. Como resultado, alterou-se substancialmente a posição dessas autoridades, que deixaram de exercer um poder em nome próprio para o fazerem por delegação, conferida pelos colonizadores. Sendo, por vezes, a situação agravada por desprestígios causados aos chefes legítimos e contribuindo isso mais ainda para o processo de desagregação, remanesceu à margem da hierarquia formal, constituída pelos chefes legais, uma hierarquia paralela com real poder actuante: era a legitimidade em actuação.
Nos Macuas, o muene (chefe natural) passou a ser conhecido por régulo. Propositadamente, ou por desconhecimento das autoridades administrativas face às estruturas políticas tradicionais, em numerosos casos correspondia à posição de muene a do régulo. Em Cabo Delgado, face à necessidade portuguesa de neutralizar a actividade subversiva, a substituição desses poderes tribais legítimos por poderes formalmente legais atingiu uma enorme amplitude. Tal era passível de causar o “vazio” do comandamento político tradicional, situação que a FRELIMO, por antecipação, podia aproveitar, preenchendo esses espaços e restabelecendo os comandamentos convenientes se de seu interesse; integrava com isso nas suas fileiras os descontentes e os vencidos, sem todavia deixar de definir-se como anti-tribalista.
Para Samora Machel, o processo libertador necessitava também de atingir a sociedade tradicional, pois esta exibia igualmente atributos opressivos e discriminatórios, sobretudo em relação à mulher e à juventude; assim, a linha política integrou a substituição das solidariedades tribais, linguísticas, religiosas e culturais na unidade que se queria nacional, pela consciência de pertença a uma classe explorada (21).
No entanto, na prática, o recurso à utilização das autoridades tradicionais foi imprescindível para as partes em confronto, porque, em princípio, aquelas asseguravam o apoio popular. Não era crível que tais autoridades, por si só, representassem uma solução adequada para as partes, pois surgiam indivíduos decorrentes do processo de aculturação que aspiravam a participar na liderança, forçando a um ajustar das estruturas políticas tradicionais onde os mesmos fossem admitidos (22).
Como as populações não absorveram (salvo raras excepções) a noção de espaço definido pelas fronteiras traçadas pós-Conferência de Berlim, mais de meio século passado sobre a delimitação, a migração clandestina era assegurada pelas ligações étnicas, clânicas e familiares, aquém e além-fronteiras; esses “canais” garantiam, no período de 1964-74, o escoamento de centenas de indivíduos para as minas do Rand (os Magaíças) por razões económicas, ou para os centros de recrutamento e preparação subversiva, na Tanzânia e na Zâmbia (23).
Apesar do conhecimento dos movimentos independentistas e da sua doutrina, a reacção portuguesa, a despeito do grande e dilatado esforço, foi lenta nas aplicações adequadas à guerra revolucionária; confinou-se predominantemente à vertente armada da resposta (que, mau grado as formulações doutrinais em contrário nunca deixou de tratar como convencional). Atraíu com isso pesado ónus para a instituição militar, a qual, por sua vez, não o declinou de forma que abrangesse também todo o aparelho civil, pois responsável. Assumindo-se ingénua e imprudentemente sozinha no conflito, entrou na preocupação de não adquirir um desastre como o da Índia, não estimando que este último nada tinha a ver com os teatros de Angola, Guiné e Moçambique. No entanto, procurou sempre, na disputa pela população, preservar a que tinha sob seu controlo, dissociar o binómio população/inimigo e captar população sob duplo controlo, através de uma manobra global em que as acções social e psicológica desempenharam papel de certo relevo, embora muito insuficiente. Assim, o permanente contacto com as populações, por forma a exercer-se uma profunda acção psicológica e social e, quando necessário fosse, medidas de controlo, era especificado nas directivas portuguesas (24), sem embargo de faltas no “conhecimento de causa” e dos meios. Em Moçambique, no ano de 1967, o Poder considerava que cerca de 50% da população lhe era tradicionalmente fiel, que 4% estava sob controlo da FRELIMO, e 40% era indiferente (25).
Como vimos em 4.4.1., II capítulo, a população branca radicada em Moçambique não estava consciente da situação, normalmente porque mal informada por uns media reflectores da posição oficial do Regime (não havia “guerra”), usufruindo de uma vida diária fácil para os estratos médios e de alta qualidade para as elites urbanas. Para muitos, o esforço militar era desnecessário e contribuía para agravar o custo de vida (26); para a maioria da população, a guerra era entre os militares vindos da Metrópole e os Negros das regiões fronteiriças do Norte. No fundo, sem exactamente o perceber ou muito menos o saber exprimir, o Branco achava que a guerra convencional dominava a mentalidade dos militares e que a solução (?) teria de ser outra (?). Daí, a enorme simpatia civil pelos líderes de milícias, como o famoso Daniel Roxo, o qual, com algumas dezenas de Negros, obtinha resultados espectaculares, muito ultrapassando os da média de um Batalhão metropolitano.
Outras situações fora do habitual aconteceram também, com resultados extraordinários, mas todavia desconhecidos por um conjunto de circunstâncias não ter permitido que se lhes desse publicidade. É o caso do regresso ao território de Moçambique do Xehe Abudo Michongué, que Fernando Amaro Monteiro, ao tempo Adjunto dos SCCIM, me narrou ter conseguido trazer do Malawi, onde aquele dignitário islâmico (apurado como o mais importante do Niassa) se encontrava refugiado, nisso tendo arrastado um número considerável de Moçambicanos. Uma série de diligências efectuadas junto das lideranças islâmicas naquele Distrito durante uma semana, culminada por uma conversa de cerca de 5 horas numa mesquita em Vila-Cabral, desencadeou uma mensagem para o Xehe Abudo Michongué, através dos canais de articulação da comunidade muçulmana, instando para o mesmo regressar a território nacional com todas as garantias (obtidas via rádio por Fernando Amaro Monteiro, junto da PIDE e do Governador-Geral). O Xehe regressou efectivamente, com acompanhamento vultoso das populações que o tinham seguido para o Malawi. Tratou-se apenas, depois, de receber, alojar e alimentar essa gente.... Esta “operação” de recuperação, sem dúvida das mais rentáveis de toda a guerra em Moçambique, custaria ao Estado a passagem via aérea de Fernando Amaro Monteiro no trajecto Lourenço Marques - Vila Cabral - Lourenço Marques, algumas deslocações de taxi aéreo no Distrito e um “sinal de boa vontade” expresso em presente pecuniário de valor completamente derisório (mil escudos, único dinheiro que Amaro Monteiro tinha de momento no bolso e pediu fosse enviado ao Xehe). Se dividirmos os custos do conjunto destas diligências, cada regressado (válido) custou ao Estado Português um montante ridículo (27). E as garantias foram 100% cumpridas.
A aproximação da guerra aos centros urbanos levou a uma “culpabilização” das Forças Armadas pelos civis e a um afastamento progressivo do apoio das comunidades brancas, conduzindo aos incidentes da Beira, em 17 Janeiro de 1974 (28). Os militares aceitavam e proclamavam, sem hesitar, o óbvio: que a guerra era revolucionária. Mas dominando pouco as matérias afins, frustravam-se... e encerravam-se na auto–constatação das suas impossibilidades, incorrendo numa culpa que era colectiva, mas cuja exclusividade pareciam querer reclamar, sempre presos a conceitos convencionais. Todo o “complexo” tem de “resolver-se”; o problema estava em se desconhecer como iria o Oficialato fazê-lo neste caso. Por seu turno, as autoridades administrativas pouco ou nada mais sabiam do que a “tropa”, mas procuravam apontá-la como “bode expiatório”, tal agravando a situação de fissura.
O Poder português actuava, assim, ciente de que a FRELIMO dispunha da aceitação tácita de um sector da população africana (29). Era no interior das áreas onde a subversão se manifestava violentamente que a FRELIMO contava com a adesão de grande parte da população (30). Fora daquela zona, a FRELIMO exercia pressão sobre o grupo Macua-Lomué, especialmente nos Metos, esforçando-se por conseguir a sua adesão, no mínimo, pelo silêncio das autoridades tradicionais. Este grupo era considerado um alvo fácil em regiões de fronteira étnica ou onde havia miscigenação, revelando-se, nas regiões do interior, leais ao Poder português e mesmo resistentes à subversão (31).
Os Macua-Lomué, que constituem o grupo mais significativo, representavam em 1960 42% da população moçambicana. A sua sociedade é constituída por justaposição de unidades familiares que interpretam a vida, à semelhança aliás da generalidade dos Bantos, como um processo dinâmico, a abranger os vivos, os mortos, as coisas inanimadas e os elementos da Natureza, tudo percorrido pelo fluido vital. Segundo a tradição, a unidade macua provém dos montes Namuli (32).
Dentro do grupo Macua-Lomué, os elementos da tribo Lomué mostravam-se extremamente colaborantes com as autoridades, constituindo uma nítida barreira à penetração subversiva; por outro lado, os Achirrima, tidos como possuidores de personalidade própria e elevada coesão, eram encarados como um eventual tampão das influências e pressões vindas do Malawi ou do Niassa, podendo no entanto vulnerabilizar-se à subversão (33). Sabia-se ainda que algumas ligações clânicas Meto e, até 1967, certas hierarquias islâmicas na área de Maúa / Marrupa / Balama / Montepuez/ Mecúfi (34) se permeabilizavam à FRELIMO e que a subversão alastrava no litoral, exercendo por exemplo constante pressão sobre os Suaíli, a Norte do Rio Messalo.
Segundo o Supintrep “Populações de Moçambique”(35), foram consideradas 15 tribos marave, distribuídas em dois subgrupos, os Nianjas e os Acheuas, e 4 tribos diferenciadas, os Senga, os Sereros, os Pimbe e os Agoa. Situados nos Distritos de Tete, Zambézia e Niassa, o seu comandamento era tido como localizado na Zâmbia (dinastia Hundi). Historicamente constituíram a Confederação Marave, pelo que ainda hoje mantêm uma certa coesão. Os Nianjas da circunscrição do Lago foram completamente subvertidos. Sendo sobretudo Malawianos, eram muito atreitos ao fenómeno subversivo (36). Em Tete, foi nos Acheuas que a subversão encontrou terreno fértil para se expandir. Assim, podemos considerar que a maioria dos Maraves se mostrava receptiva à FRELIMO.
Sobre o eixo do Rio Zambeze, como vimos, confluem as organizações sócio-culturais patriarcal e matriarcal, pois aquele constituíu uma excelente via de penetração e difusão cultural de diversos povos. A miscigenação resultante de migrações, invasões, incursões ou simples comércio torna de difícil interpretação a origem e os mecanismos de comandamento de alguns destes povos. A FRELIMO exercia grande esforço sobre Senas e Sengas, contando além–Zambeze com apoio nos grupos transfronteiriços de comandamento externo, nomeadamente Vandaus e Barués (37).
Os Ajaua ou Yao em Moçambique estão distribuídos por duas tribos, a Amasaninga e a Amacinga, tendo por potentados Mataka e Metarika, respectivamente (38), ambos representados no Malawi e na Tanzânia. A sua cultura não diverge muito da dos outros povos matrilineares dispersos ao Norte do Zambeze. São considerados um grupo muito coeso, com forte espírito tribal e profundo sentimento de união, resultante do controlo social e familiar a que estão sujeitos, da autoridade política e religiosa dos chefes e da absoluta subordinação dos régulos vassalos aos chefes das tribos. A não aceitação ajaua de comandamento estranho levou a FRELIMO a acompanhar o seu esforço de aliciamento sobre os Ajauas com acções de intimidação (39).
Este grupo etno-linguístico, quer pelas posições assumidas por alguns régulos, como o Mataca, quer porque “(...) influenciados, impulsionados e até compelidos pelos Nianjas e elementos Macondes neles imiscuídos (...)”(40), aderiu em parte à FRELIMO. A Administração Portuguesa ainda tentou, através da captura daquele régulo, inverter a situação (41). Enquanto o Mataca esteve detido pelo Poder português, verificou-se um acentuado recrudescer das actividades subversivas dos Ajauas, demonstrativo da real importância do seu ascendente sobre as populações daquele grupo etno-linguístico (42). Após a sua guarda ser confiada às autoridades administrativas, o régulo foi resgatado novamente pela FRELIMO, sendo o comandante da força que efectuou a operação o próprio Samora Machel (43). Em 1969, segundo fontes do QG/RMM, os Ajauas acomodavam-se, pendendo já para o Poder português (44).
Os Macondes (2,6% da população em 1960), que têm o seu centro de cultura no planalto de Mueda e na serra do Mapé, por motivos de condicionalismo étnico e geográfico, mantiveram-se desde sempre, de certo modo, isolados dos grupos vizinhos.
A respectiva organização sócio-familiar, semelhante à de outros grupos de estrutura matrilinear, não implicava reconhecimento da chefia política. A ausência de organização política que ligue as diferentes povoações macondes segundo uma determinada hierarquia terá impedido o desenvolvimento de uma consciência colectiva e da noção de destino histórico comum. A unidade maconde é sobretudo cultural.
As suas aspirações, e o facto de terem sido dos primeiros a cristianizar-se, consolidou a posição isolada. Na busca de melhores condições de vida, os Macondes durante décadas procuraram serviço nas plantações do Tanganica (depois Tanzânia). Aí surgem os primeiros contactos com elementos ideologicamente preparados para a mentalização subversiva, apresentando a partir de 1956 organizações do tipo inter-ajuda, caracterizadas por feição estritamente tribal (45).
Cada aldeia, dotada de mobilidade, é uma unidade independente e obedece ao seu chefe, o qual não tem autoridade política absoluta; nas decisões é sempre ajudado pelo conselho de anciãos. A sociedade maconde, sem estratificação social, é governada por homens, sendo os únicos líderes políticos os chefes de povoação (mwene kaya), independentes entre si, com poder não absoluto e limitado à sua aldeia (46). Os humu são as personagens mais categorizadas dentro da sociedade maconde por desempenharem um papel de conselheiros/medianeiros de conflitos, ou mesmo de conselheiros de guerra do seu likola (linhagem da mãe). O mwene lidera o grupo; mas é o humu que detém as prerrogativas religiosas e mágicas, dá conselhos e administra a justiça. É ele que detém a liderança efectiva, e não o régulo.
À unidade da harmonia interna opõe-se um antagonismo externo nas relações intergrupos (47). A guerra, substituta de um poder central, era tida como a força de que os Macondes dispunham para fazer respeitar a lei, com o inconveniente de criar um permanente estado de tensão (48). Os Macuas são encarados por aqueles com sobranceria, tendo o seu território nos séculos XVIII e XIX sido pasto de razias e incursões para captura de escravos (49).
A falta de organização política centralizada não permitiu aos Macondes formar um grande exército, combatendo sempre em grupos isolados, o que entretanto tornou difícil à Administração Portuguesa a sua submissão, pois cada chefe de aldeia era responsável apenas pela sua gente. Só em 1917 o Major Neutel de Abreu conseguiu submeter os “rebeldes”, completando-se a pacificação apenas em 1920, altura em que a região maconde foi entregue à Companhia do Niassa (cujo poder nunca tinham reconhecido) (50).
Apesar de os objectivos gerais da FRELIMO não se identificarem com as aspirações macondes, que apenas pretendiam a independência da região do planalto, Mondlane aproveitou as suas tradicionais características guerreiras, investindo-os em funções de enquadramento. O comandamento deste grupo só poderia vir de um elemento nele integrado, sendo no entanto apenas aceitável quando circunstâncias especiais o exigissem; a influência de Mondlane sobre eles exercia-se por intermédio de Lázaro Nkavandame (51). Os Macondes foram subvertidos quase na totalidade.
O panorama religioso de Moçambique apresentava, nos seus aspectos fundamentais, sintomas de ansiedade messiânica e libertadora. No sentido da necessidade de alertar os Quadros para a importância do problema, que tendia a ser subestimado, para servir de apoio e orientação na tarefa do conhecimento do meio humano onde a luta se desenrolava, e tendo em vista o estabelecimento de processos válidos na conquista da adesão das populações (enquanto a atitude religiosa fosse desfavorável a Portugal as populações dificilmente adeririam à causa portuguesa), o QG/RMM, em Outubro de 1967, difunde o Supintrep N.º 23, “Panorama religioso de Moçambique”(52).
Por seu lado, e na perspectiva da subversão técnica, também se procurava a manipulação do campo das crenças e mitos tradicionais para conduzir as populações e obter a sua colaboração (activa e passiva). Não se podia prescindir, para movimentar as massas, de “(...) tudo quanto tais crenças enquadravam ou veiculavam, mesmo se transpirando um tribalismo que a guerra arvorava querer destruir (...)”(53).
O campo religioso moçambicano compõe-se de uma pluralidade de opções religiosas; estatisticamente, em 1960, 67% da população (54) professava religião tradicional. Esta será “(...) uma expressão religiosa difusa na sociedade e, portanto desprovida de uma organização institucional (...)”(55).
As religiões tradicionais em Moçambique, embora com diferenças consoante os grupos étnicos e os lugares, apresentam um certo número de características comuns. A noção de um Deus único, Supremo e Criador, quase generalizada, é geralmente considerada demasiado distante dos homens, como que inacessível. Por este motivo, o culto é orientado para tutelas secundárias, intermediárias entre os homens e o Ser Supremo (56). No caso dos Macuas, os viventes invisíveis estão unidos aos visíveis e intervêm, indispensáveis, a seu favor numa outra dimensão da Vida; a sociedade é auxiliada a sobreviver na unidade e permanência pela função fundamentalmente medianeira entre a força vital originária (Deus) e os restantes seres (57).
Os cultos tradicionais de maior projecção no território são o dos antepassados, o zoolátrico, o totémico e a demonolatria. No entanto, a principal crença é a ancestrolatria ou adoração dos manes. Os Africanos não os adoram verdadeiramente; prestam-lhes, sim, um culto associado a práticas mágicas (58). O oficiante é geralmente um autóctone, por todos respeitado e que pode conversar com os antepassados (59). Falando aos mortos, ouve os seus conselhos, que depois transmite à multidão. Em caso de grande calamidade, dirige-se directamente a Deus, identificado com o conjunto de ancestrais.
A força vital é o valor supremo da Vida, e os espíritos dos mortos ocupam lugar de relevo nas tutelas secundárias (60). Para se proteger da perda ou diminuição da força vital, o nativo recorre ao culto dos antepassados, culto que faz daquelas sociedades uma comunidade de vivos e de mortos; os antepassados são hierarquicamente concebidos, tendo por centro a linhagem unilinear que regula as relações entre os membros do grupo, também eles escalonados.
O sacrifício era, na generalidade, entre as etnias ajaua e macua, obrigatório nas principais fases do ciclo vital (nascimento, iniciação, casamento, doença e morte) e opcional ou aconselhável noutras circunstâncias colectivas (no princípio da caça, perante uma desgraça) (61). O Mwene Mutokwene (chefe) preside aos ritos comunitários macuas, competindo à apwiyamwene, que representa a origem da família e, simbólica e espiritualmente, a essência mítica de um antepassado comum, o papel de medianeira. Assim, os apelos a poderes intermédios exercem-se, independentemente das variantes, em situações de grau de risco mais ou menos intenso ou de tensão comunitária, como foram os casos do alastrar da subversão violenta, constituindo indício técnico, praticamente seguro, da passagem de uma determinada área à fase de envolvimento na subversão armada, como ocorreu diversas vezes no território (62).
Num sistema matrilinear, a apwiyamwene é a irmã mais velha do chefe ou régulo. Autoridade mítica, ela aconselha e é sempre ouvida e acatada por imperativo transcendente. Independentemente de um elemento do sistema ter outra religião, a autoridade da apwiyamwene sobre ele mantém-se. Em caso de desobediência, pode atraír sobre si todas as iras dos antepassados, não tendo descanso mesmo depois de morto. Apesar de os chefes macuas deterem os poderes militar, jurídico e religioso (63), submetem as suas decisões aos conselheiros, nomeadamente às apwiyamwene. Assim, nada se passará sem o conhecimento dos conselheiros, pois são eles que influenciam o régulo e o conduzem à decisão, podendo dizer-se que os conselheiros detinham um papel de relevo na aceitação ou não da subversão. Averiguações no Sul de Cabo Delgado confirmaram a influência que as apwiyamwene tinham na aceitação da subversão e na promoção das redes de apoio à FRELIMO (64). O seu papel chegou a ser interpretado como a “solução única” para o accionamento e controlo das populações e, logicamente, para o não comprometimento subversivo; isso determinaria à PIDE a concentração daquelas nas sedes administrativas (65).
Com o domínio europeu as crenças tradicionais foram questionadas, o que provocou a sua decadência, vendo feiticeiros e chefes religiosos perigar o seu prestígio. A subversão, ao prometer “liberdade”, era identificada pelo nativo tribal como um regresso à forma de vida original, com a restauração dos costumes. Esta situação constituía uma vulnerabilidade para o Poder português e seria aproveitada ao nível da Apsic pela FRELIMO.
Era neste mesmo terreno de religião tradicional que a missionação cristã, se realizada de forma superficial e apenas em extensão, não conseguia conduzir à conversão real dos nativos; fazia-os, sim, perder ou enfraquecer as crenças tradicionais, apressando a desagregação da tribo (66).
Em Moçambique, como nas sociedades africanas típicas, a unidade fundamental das sociedades é a família extensa, que funciona como elemento mítico-espiritual, social e até juridicamente solidário. Aquelas estruturas possuem um carácter intensamente comunitário; desempenhando o indivíduo funções com importância colectiva, o seu interesse é subordinado ao geral. O comunitarismo faz ainda parte da religião, das formas de vida económica e da existência de inúmeras sociedades especiais (no espaço entre família e tribo) (67).
Os efeitos que transformam a religião articulam-se com os efeitos operados no sistema económico, reforçando-os e ampliando-os, pois operam a sua extensão ao lado moral da vida e, consequentemente, repercutem-se nas estruturas das sociedades negras, atingindo inicialmente a estrutura familiar, e sequentemente, a política. As características familiares não se mantêm, pois o interesse individual passa a sobrepor-se ao do grupo, comprometendo-se a autoridade do chefe, gerando tendências divisionistas em famílias mais pequenas, com base no casamento, no concubinato ou na consanguinidade e reflectindo-se na organização clânica e tribal, assim como na disciplina social (68).
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