Já muito antes do inicio das hostilidades, o Poder português tinha a noção da necessidade de desenvolvimento social, económico e político dos territórios ultramarinos, pelo que o esforço de promoção do desenvolvimento do Ultramar teve origem nos finais da década de 1930, sistematizando-se e continuando essa política, com melhores técnicas, a partir de 1953, altura em que se lançaram os Planos de Fomento, fundamentais para a criação de infra-estruturas. O resultado desse trabalho prévio foi um acentuado processo de desenvolvimento da década de sessenta. O investimento público, intensificado com o início da luta armada, continuaria até 1974, tendo introduzido profundas alterações no tecido produtivo dos territórios africanos, nomeadamente de Angola e de Moçambique.
Podemos considerar que as características dominantes da evolução do “período glorioso” do crescimento económico português (1960-1973) foram a aceleração do desenvolvimento económico, traduzido num crescimento médio anual do Produto Interno Bruto, de 6,9%, a abertura crescente ao exterior e a ausência de grandes desequilíbrios económicos (1). Esta situação beneficiou da conjuntura expansionista do comércio mundial, nomeadamente do comércio externo dos países da Europa Ocidental.
Nas décadas de 1930 a 1950 a economia da África portuguesa era regida pelo Acto Colonial. O comércio estava vocacionado para África e assentava na troca de matérias-primas por produtos manufacturados. Porém, logo no pós –II Guerra e à medida que se processava a reconstrução económica europeia e a progressiva integração económica de Portugal naquele espaço, as transacções comerciais com os territórios africanos, foram perdendo importância. A sua participação nas importações totais metropolitanas entre 1960 e 1973 baixou de 14,4 % para 10%, e nas exportações, de 25,6% para 14,8% do total (2).
A abertura económica de Portugal ao exterior foi gradual. Desde 1948 que participava na OECE (Organização Europeia de Cooperação Económica), o que influenciou as políticas económicas internas e promoveu a liberalização das relações externas. Apesar da natureza do seu regime político e do subdesenvolvimento económico, Portugal foi admitido à EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre) em 1960, o que conduziu a um desmantelar progressivo dos direitos aduaneiros, à renúncia ao proteccionismo e à implantação de um modelo desenvolvimentista assente na industrialização. A adesão a esta organização e o posterior acordo preferencial concluído com a Comunidade Europeia em 1972 podem ser encarados como a prioridade da opção europeia sobre a ultramarina, isto no plano económico. Em 1961 Portugal entra no GATT (Acordo Geral sobre Comércio e Pautas Aduaneiras). Assim, o despoletar da subversão activa em Angola coincidiu com um período de reestruturação das instituições económicas internacionais a que Portugal aderira.
Com a adesão ao GATT, que levou a algumas reduções de barreiras às trocas com os países exteriores à EFTA colocou-se o problema da manutenção do sistema de preferências em que estava estruturado o comércio das Províncias Ultramarinas com a Metrópole, pelo que o regime optou pela criação de uma zona de comércio livre, que veio a ser o “Espaço Económico Português”, cujo modelo era inspirado na EFTA, e que assentava numa zona de comércio livre e num sistema de pagamentos interterritoriais. Assim, procurava-se criar condições para o advento de economias fortes, capazes de a médio/longo prazo aliviar o esforço financeiro da Metrópole, como a constituição de estruturas económicas com capacidade para concorrerem favoravelmente com a economia portuguesa metropolitana (3). O principal dinamizador da abertura ao exterior foi o então Ministro da Economia, Correia de Oliveira.
O chamado “Espaço Económico Português” foi institucionalizado pelo Decreto-Lei N.º 44016, de 8 de Novembro de 1961. Ali constavam disposições tendentes a assegurar a livre circulação de mercadorias, pessoas e capitais em todo o espaço político português, tendo sido ainda previsto um “Fundo Monetário da Zona do Escudo”, por forma a suprir dificuldades de pagamentos resultantes de desequilíbrios transitórios das balanças externas de qualquer dos territórios.
A criação do novo sistema de pagamentos interterritoriais em 17 de Novembro de 1962 (4), surgido devido à verificação da necessidade de assegurar a liquidação das transacções sucessivamente liberalizadas, vigorou de 1963 a 1971. Este sistema estabelecia as condições necessárias ao funcionamento uniforme dos regimes cambiais dos diversos territórios integrados na Zona Monetária do Escudo. Baseava-se num regime de compensação multilateral e visava regularizar as transferências, assegurar a transacção interna das moedas integrantes do espaço português e facilitar a diminuição dos desequilíbrios monetários e cambiais; isto, segundo o princípio da estabilidade financeira e solvabilidade externa da moeda portuguesa. Por forma a apoiar a regularidade dos pagamentos por parte dos territórios ultramarinos, criou-se o Fundo Monetário da Zona do Escudo, dotado de 1,5 milhões de contos.
Os efeitos foram pouco significativos, e rapidamente surgiu o bloqueio no sistema de pagamentos interterritoriais pelo esgotamento das disponibilidades do Fundo Monetário da Zona do Escudo e o consequente cessar de empréstimos aos fundos cambiais das Províncias. Esta situação ocorreu devido ao facto de as economias africanas serem mais fracas do que a da Metrópole, originando a preferência pelo dinheiro metropolitano.
A solução desejada era uma moeda única em todo o território português, pois o papel moeda de cada Província, emitido pelo Banco Nacional Ultramarino (5), só era pagável na mesma, e nela não podia circular qualquer outra moeda fiduciária. A rejeição dessa solução era justificada pelas dificuldades técnicas e pelo facto de poder pôr em causa a segurança do crescimento, na medida em que, por exemplo, facilitaria a propagação de uma região a outras dos desequilíbrios económicos produzidos em determinado momento em certa região, que mesmo sendo próprios do seu processo de crescimento, seriam mais fácil e prontamente dominados se circunscritos a essa região (6).
O processo de liberalização das relações externas implicou a adopção de um modelo de industrialização orientado para as exportações e para uma abertura do mercado interno à concorrência internacional.
Podemos considerar o ano de 1965 como fulcral para a liberalização económica. A abertura ao investimento estrangeiro acabou por ser facilitada nesse mesmo ano com a publicação do Decreto-Lei N.º 46312, de 28 de Abril. Todavia, este apresentava ainda limitações nas possibilidades de aplicação na generalidade das actividades produtivas. Com a aprovação e aplicação do novo regime de condicionamento industrial através do Decreto-Lei N.º 46666, de 21 de Novembro, criaram-se novos espaços de expansão de empresas e grupos económicos nos territórios ultramarinos, pelo que se verificaram importantes investimentos, pois a regra geral passou a ser a liberdade de instalação em clima de concorrência, em que cada um dos territórios produzisse segundo as suas vantagens comparativas. Com a liberalização económica verificaram-se ainda importantes investimentos em sectores de actividade como a banca, os seguros, e a agricultura.
A remessa das poupanças dos portugueses europeus para a Metrópole contribuiu também para o desenvolvimento económico do país. Esta situação diminui de importância a partir do momento (segunda metade da década de sessenta) em que a emigração se orientou para outras paragens (França, Alemanha e outros países da Europa Ocidental).
A vida económica de Moçambique concentrava-se sobretudo na Beira e em Lourenço Marques. Em 1968, 88% da população activa residente exercia a sua actividade no sector primário, 3% na indústria transformadora e electricidade, e os restantes 9% nos outros sectores (7).
Dada a sua inserção no espaço económico do Índico, e as fronteiras com a influência da anglofonia, Moçambique era das Províncias cuja economia tinha maior abertura ao exterior. Exportava essencialmente produtos do sector primário: algodão, açúcar em cana, castanha de caju, chá e copra. A indústria, virada fundamentalmente para o mercado externo, centrava-se na transformação desses produtos. A sua dependência do exterior era essencialmente em matéria de comércio externo e balança de pagamentos, bens de equipamento, pessoal técnico e formação de capitais para investimento público. Assegurava ainda uma prestação de serviços aos países do hinterland que, por forma a assegurarem as suas exportações, utilizavam os corredores rodoviário e ferroviário para os Portos de Nacala, Beira e Lourenço Marques.
Nem sequer a guerra perturbou muito o crescimento da economia: o seu efeito económico negativo foi o acréscimo das despesas do Estado com as operações militares, não sendo, no entanto, as finanças públicas seriamente abaladas (8).
O esforço financeiro da guerra traduziu-se num suplemento de 13,3% (97 de 732 milhares de contos) nas despesas públicas globais do Portugal europeu, sendo que as despesas com as Forças Armadas constituíram também fonte de diversificados investimentos, entre outros, em sectores como a saúde, educação, abastecimentos, infra-estruturas e equipamento diverso (9).
De todo o orçamento dispensado para o esforço de guerra — em 1961 era 5.385 milhares de contos, dos 21.716 milhares de contos das despesas públicas, e em 1974 eram 20.238 milhares de contos de 87.850 milhares de contos das despesas públicas — devemos ter em atenção que grande parte “(...) foi atribuído a programas sociais que beneficiavam a população na área da saúde, educação e agricultura, que contribuíam directamente para a expansão económica planeada para a África portuguesa (...)”(10).
Segundo Gomes Bessa (11), em actuações contra-subversivas, apenas 10% a 20% do esforço deverá ser despendido em operações militares, ao passo que os programas sociais e políticos, compreendendo actividades diversificadas, representarão mais de 80%, não devendo estas despesas ser suportadas em exclusivo pela Metrópole. No final da guerra, aqueles territórios tinham contribuído com 16% (28 de 180 milhares de contos) das despesa com as Forças Armadas (12).
A resposta geral portuguesa, em qualquer Teatro de Operações, consistia na afirmação da soberania, também através de acções sócio-económicas sobre as populações afectadas. Como vimos, o Poder português procurava proporcionar uma melhoria das condições de vida daquelas pela prática de reordenamento e do consequente aldeamento.
A base do esforço português, que estava já contida nas experiências francesa e britânica, visava não só a actuação militar pela atrição, isto é, pelo desgaste do “In”, mas também uma actuação psicológica, no sentido de conquistar os corações. Era fundamental conquistar a adesão plena das populações, pelo que a criação de um ambiente propício seria conseguido por uma acção social visando a elevação do nível de vida das mesmas, satisfazendo as suas necessidades mais urgentes (13), procurando anular a ideia-força “independência” e substituí-la pela ideia-força “integração”(14). Além do mais, “(...) acreditava-se que uma população cada vez mais contente e próspera teria a tendência para apoiar o governo português, em vez de se revoltar (...)”(15).
O Poder português acreditava ainda que com o apoio de uma acção social e educativa se podia realizar uma Acção Psicológica que arrastasse os autóctones ainda não “contaminados”, ou os pouco seguros, para a causa portuguesa, fazendo que não temessem a tropa, pois ela estava em Moçambique para os proteger dos inimigos de Portugal, que eram também inimigos deles (16). Competiu, assim, aos militares, nomeadamente ao exército, com o emprego da sua capacidade militar sobrante, através da estrutura administrativa, arcar com uma responsabilidade significativa na promoção sócio-económica das populações e efectuar algumas mudanças nas diversas áreas. Assim, será sobretudo na sua actuação e estratégia que nos debruçaremos neste estudo. De acordo com o Regulamento “O Exército na guerra Subversiva III – Acção Psicológica”, os campos de acção social abertos às Forças Armadas, são as assistências sanitária, religiosa, educativa e económica (17).
A execução da manobra contra-subversiva, preconizada pelo Comando-Chefe e enquadrada nas quatro acções da resposta possível, visava o sector da manobra militar, o da promoção sócio-económica e o da manobra psicológica, estando a manobra militar e a sócio-económica interpenetradas, embora se desenvolvessem em esferas de acção diferenciadas — fomento e segurança —, correspondendo-lhes também acções diferenciadas.
A promoção sócio-económica destinava-se a sustentar a fidelidade das populações ao poder constituído. Essa fidelidade era desafiada pelos movimentos independentistas, os quais em certas regiões, penetradas pela subversão, podiam colocar as populações sob uma das seguintes situações:
– controlo da contra-subversão;
– controlo da subversão;
– controlo duplo, ou seja, controlo diurno da contra–subversão e nocturno da subversão ou o inverso,
conforme a evolução da estabilidade desses grupos infiltrados em relação às áreas controladas pelas unidades de quadrícula ou pelas autoridades administrativas; ou seja, esta manobra visava conseguir a adesão das populações e impedir a FRELIMO da realização dos seus objectivos psicológicos, tendo a manobra militar que garantir o espaço e o tempo necessários para a consecução desse objectivo. Parece-nos evidente a inutilidade do esforço militar se os objectivos sócio-económicos, que estavam na base da contra-subversão, não se concretizassem. A actuação psicológica era facilitada pela manobra social, e da conjugação destas surgiu o termo psico-social, que ficou designado na gíria militar por Apsic. Esta foi exercida sobre as populações em duplo controlo ou controladas pelo Poder português. Naquelas que se encontravam sob controlo da FRELIMO, apenas podia exercer-se Acção Psicológica através das diversas técnicas de propaganda (onde se podiam incluir os “pólos de atracção”), procurando recuperá-las.
Em Moçambique, tal como na Guiné, as pedras-base da actuação sócio–económica foram o reordenamento populacional e a construção de aldeamentos e colonatos e, de uma maneira geral, a promoção escolar e sanitária, a assistência religiosa e o progresso económico, com o desenvolvimento de infra-estruturas de apoio.
Desde 1961 que as brigadas do Serviço de Acção Psico-Social visitavam as povoações, procurando promover melhores condições sócio-económicas para as populações. Antecipando-se ao confronto, recolhiam informações e preparavam as populações para aquilo que se designava por defesa civil (18). No ano em que se iniciou a guerra (1964), a acção psico-social visou uma intensificação do tratamento das populações, no sentido da sua total adesão à causa portuguesa e, naturalmente, o repúdio ao aliciamento subversivo. Foram visitadas populações que há mais de 40 anos não tinham contacto com o europeu, levando-lhes medicamentos, roupas e instrução, através de palestras, reuniões, actividades e festividades, tendo, assim, o autóctone oportunidade — segundo o Relatório anual de Comando (1964), da Região Militar de Moçambique — de avaliar o interesse demonstrado pelo Poder português em auscultar os anseios e defender os interesses daquelas gentes (19).
A política do colonato visava, numa estratégia demográfica, proporcionar condições de fixação a militares desmobilizados (à boa maneira de Sá da Bandeira) e cativar portugueses europeus para os territórios africanos. Esta política, vivamente contestada pela FRELIMO, nomeadamente quanto à fixação de um milhão de colonos no vale do Zambeze, não foi muito profícua. Foram poucos aqueles que quiseram ser os pioneiros. Até 1973 apenas se instalaram algumas centenas de imigrantes de origem madeirense e transmontana, mas com fraca formação técnica (20).
Em Moçambique, como em toda a África tropical, os problemas de saúde eram idênticos: a carência de infra-estruturas e de pessoal especializado, a falta de medicamentos, de higiene e de água, o baixo nível sócio-económico e uma alimentação deficitária. Para suprir estas lacunas, o Exército criou unidades móveis de saúde, sendo ainda os doentes assistidos nas unidades, em instalações sanitárias e hospitais militares. Esperava-se a adesão em troca destes préstimos, que deveriam restabelecer/transmitir confiança e serem demonstrativos da boa vontade da Administração.
A acção de assistência sanitária, desenvolvida nas sedes de Unidades e por equipas itinerantes, continuava a revelar-se o mais poderoso meio de cativar populações (21). Esta acção era realizada com “(...) a compreensão e esforço de todas as unidades (...) a eles se devendo, sem dúvida, o não alastramento da subversão para Sul (...)”(22) materializava-se entre outras sob a forma de assistência medicamentosa e materno-infantil e de campanhas de vacinação (23).
Todavia, esta acção esbarrava com a carência de meios, dada a escassez de verba, que chegava a ser de 125$00/mês por unidade tipo companhia, pelo que, em muitos casos, funcionava devido à cooperação civil-militar ou a donativos (24).
Na assistência religiosa, porém, nem sempre os resultados eram vantajosos, uma vez que as populações viviam arreigadas aos seus cultos tradicionais; “(...) raramente se extirpa do pensamento africano o animismo original, pois ele, em boa verdade, não abandona as suas crenças, o que faz, por vezes, é adicionar as dos outros às suas (...)”(25).
A nível educacional, procurou-se que o maior número de indivíduos tivesse acesso à educação em moldes europeus — ler e escrever português, bem como conhecimentos básicos de aritmética. Assim, a rede escolar cresceu, e nas unidades militares funcionavam escolas para adultos e crianças. A nível central, foram criados os estudos superiores em Lourenço Marques. A assistência educativa e a instrução obtiveram resultados francamente favoráveis, dado o interesse real pela aprendizagem. A título de exemplo, no plano educativo, de 1 de Julho a 31 de Dezembro de 1965, a Região Militar foi responsável por ministrar 9.314 horas de aulas a crianças e 2.058 a adultos, num total de 1.884 e 406 alunos, respectivamente, e ministrou ainda ginástica a 3.525 crianças (26).
A assistência económica compreendia a aquisição de produtos a autóctones, a distribuição das sobras de rancho e o emprego em serviços diários, entre outros. Esta assistência, apesar de pouco expressiva em termos macro-económicos, tinha contudo efeitos locais, designadamente na melhoria das condições sócio-económicas.
Nas áreas não afectadas pela guerra, o Poder português procurou intensificar a acção de presença, estreitar o contacto com as populações e obter um melhor conhecimento do meio humano, dando-se nas áreas afectadas particular interesse aos regressados.
Os Distritos do Norte conheceram grandes movimentos de população, comuns a quaisquer operações militares de grande envergadura. Numa tentativa de procurar corrigir a dispersão das populações, as autoridades iniciaram uma extensa campanha de promoção sócio-económica e de Acção Psicológica, assente numa filosofia preventiva, procurando reunir as populações em aldeamentos que viabilizassem o progresso social e, em simultâneo, e esta é a questão de fundo, evitassem o contacto com a subversão, para que não fossem "contaminadas" (27). Além do mais, o reordenamento deixava livre espaço entre aldeamentos para operações militares de segurança, correctivas e punitivas.
A concentração das populações em aldeamentos representava uma alternativa sócio-política portuguesa às áreas libertadas da FRELIMO, e para Thomas Henriksen constituía mesmo uma espécie de microrevolução branca (28).
A reinstalação em aldeamentos em estilo de “cordão sanitário”, ao longo da fronteira com a Tanzânia e Malawi surgiu para o Poder português como um esforço principal na sua estratégia de contenção da actividade subversiva. O discurso de convencimento da sua aceitação era um discurso de desenvolvimento e de bem estar sócio-económico.
Só em 1966 se construíram os primeiros aldeamentos em Moçambique. Mas só em finais de 1968 é que a política começou a tomar forma concreta, estando em Outubro de 1973 perto de um milhão de moçambicanos reagrupados em 895 aldeamentos e 125 pólos de atracção — estes situados nos Distritos da Zambézia e da Beira. Para o programa de 1974, estavam previstos 150 mil contos para infra-estruturas sócio-económicas, e a política seria a de consolidar os aldeamentos existentes e prosseguir o desenvolvimento ao longo da linha de energia proveniente de Cahora-Bassa, bem como transformar os pólos de atracção em aldeamentos (29).
A responsabilidade primária da acção social competia às autoridades civis, mas, naquele pano de fundo, as Forças Armadas eram, já em 1962 e mesmo depois (segundo os inquéritos em que a nível da administração do posto se relatava a acção desenvolvida no domínio psico-social), a instituição que melhor se podia incumbir daquela acção (30), pois, em termos de Administração, as brigadas dos Serviços de Acção Psico-Social actuavam já como correctivas e não como preventivas. Depois, apesar de a construção dos aldeamentos ser da responsabilidade dos Governadores e não dos Comandantes Militares, nas reuniões mensais dos Conselhos de Defesa, as discussões entre o Comandante-Chefe e o Governador-Geral eram por vezes acesas. As discordâncias “(...) entre as duas estruturas paralelas do poder — militar e administrativo — especialmente em relação ao Distrito de Tete eram por vezes grandes. As informações sobre aldeamentos e populações chegadas ao topo das cadeias hierárquicas — civil e militar — por vezes divergiam (...)”(31). Isto resultava, obviamente, da separação dos dois poderes numa situação de guerra subversiva, o que constituía um erro grave e conduzia a situações diversas relativamente à coordenação que era indispensável existir quanto à acção junto das populações.
Para o General Kaúlza de Arriaga, os aldeamentos eram a base da promoção do povo moçambicano, necessitando, inicialmente, serem construídos em quantidade e com urgência, sacrificando a qualidade. Segundo ele, eram obras imensas de promoção e civilização rápidas, argumentando que só o aldeamento possibilitava o ensino, a assistência sanitária e técnica, o comércio e, de um modo geral, a fruição dos benefícios do progresso (32). Ora, esta urgência na promoção social e económica, significa, em nosso entender, que toda a política de promoção sócio-económica portuguesa estava ainda atrasada e que tinham sido cometidos até aí diversos erros na política ultramarina; porém, não podemos esquecer as dimensões dos territórios e as distâncias a que se encontravam de Lisboa, além de que cada um se via a braços com os seus problemas específicos.
Nesta política de aldeamentos, que constituiu o centro da resposta social contra a estratégia da FRELIMO, “(...) potentially there were many advantages to be gained by peasant families living together in larger units; but the success of the scheme depended both on the population being willing to enter the villages and on Portugal providing the necessary amenities (...)”(33).
O equilíbrio entre a resistência à mudança e os reais benefícios desta era sempre muito ténue, além disso havia que ter em conta o tempo em que o reordenamento era feito. Deslocar determinada população, depois de “contagiada” subversivamente, era contraproducente. Nestes casos, actuava-se primeiro através de uma intensa Acção Psicológica, por forma a provocar o desequilíbrio. O reordenamento viria depois. Porém, a posição governamental era afectada, entre outras circunstâncias, pela má aceitação de algumas populações, consideradas rebeldes – nomeadamente as nómadas, tradicionalmente avessas às restrições em instalações permanentes – e pela competição/sobreposição entre autoridades civis/militares, que conduzia a um alhear de responsabilidades.
Em Cabo Delgado , a política de aldeamentos, foi realizada sem problemas de maior. O facto de os Macuas saberem que, se não se agrupassem por forma a terem uma defesa com o auxílio das Forças Armadas Portuguesas, seriam chacinados pelos Macondes, terá facilitado essa tarefa (34). Porém, a acção de pacificação (designação adoptada no relatório de Apsic n.º 4/70) era afectada por factores de ordem social e pela intensa e permanente actividade operacional. As populações que se encontravam vacilantes não eram atraídas pelas condições de vida dos aldeamentos (35), pelo que se procurou solucionar o problema através da operação “Fronteira” e dos aldeamentos-piloto, juntamente com actuação psicológica. Esta operação representou uma nova feição da guerra em Cabo Delgado (36). A Região Militar promoveu ainda a constituição de Cantinas Militares para populações em locais onde a subversão campeava e onde não existia qualquer comércio (37).
Já no Niassa, Distrito que a FRELIMO nunca ocupou na totalidade, esta política foi praticada sem constrangimentos, actuando-se a nível sócio-económico, o que permitiu ao Poder português conseguir de forma cautelosa assegurar a defesa de todos os aldeamentos (38). Mas em Tete, onde o trabalho de aldeamentos só foi iniciado em princípios de 1970, a estratégia portuguesa, face à actividade da FRELIMO, que se antecipou na conquista das populações, mostrou-se insuficiente, tornando mais difícil uma recuperação das mesmas (39). Neste Distrito registaram-se casos de fome em diversos aldeamentos, reconhecendo-se ainda que muitos deles não possuíam as condições de vida, segurança e de controlo das populações que lhe permitissem constituir pólos de atracção, por forma a tornar rendível a acção contra-subversiva (40), circunstância que desacreditava o reordenamento pretendido. Esta situação levou a que, por vezes, houvesse populações que abandonavam em massa os aldeamentos (41).
Paralelamente à insipiência dos aldeamentos, que estavam longe de constituir “pólos de atracção”, foi também factor determinante dessa atitude de fuga ou rejeição à política de reordenamento, o facto de se retirarem as populações dos locais tradicionais; estas reagiam, aproveitando todos os pretextos para dificultar ou retardar os trabalhos inerentes à construção dos aldeamentos ou para os abandonar, regressando à mata. Acresce ainda que a condução da população para os aldeamentos foi, segundo dados do COFI (42), nitidamente prejudicada em consequência do desprestígio a que foram votadas as autoridades tradicionais.
Por outro lado, a intensa actividade operacional tornava a vida na mata insegura e incómoda, tendo como resultado a lotação dos aldeamentos de um quantitativo significativo de população apresentada, capturada, recolhida ou subtraída ao controlo da FRELIMO.
Assim, e apesar de tudo, vivendo em princípio nos aldeamentos em melhores condições de segurança e não sujeita à vida ambulatória que levava na mata, a população ia aceitando a situação, na medida em que, lenta mas progressivamente, lhe eram conferidas melhores condições de vida, em que o aspecto sanitário, a que a mesma era particularmente sensível, se revelava factor primordial. Todavia a aceitação do aldeamento não significava uma mudança da sua mentalidade (43), pois, em consequência do arranque tardio na construção de aldeamentos, a população (recolhida, apresentada, capturada ou subtraída ao controlo da FRELIMO) que os constituía — porque muitas vezes “contaminada” do antecedente, face ao incipiente ou inexistente controlo por parte das autoridades administrativas – mantinha contactos com a subversão. De acordo com o documento que relata a História do COFI, aquelas autoridades não tinham sequer a consciência da importância transcendente do problema do controlo de populações (44).
Face ao agravar da situação militar em Tete e por forma a incrementar a actuação global de defesa/manutenção da soberania portuguesa sobre aquela região, uma das soluções adoptadas foi colocar aquele Distrito sob autoridade militar a partir de Maio de 1971. Nesta data, o Comando-Chefe pensava ser ainda possível “recuperar”, na região de Tete, grande parte da população sob controlo da FRELIMO e defender aquela que ainda não tinha sido afectada. Assim, a par de uma acção militar, deveria ter lugar o reordenamento de todas as populações por forma a possibilitar o controlo das mesmas, sendo o aldeamento considerado a melhor forma de o fazer, acompanhado por uma intensa Acção Psicológica, fundamentada em conceitos de força, vantagens e razão (45). Esta teria, naturalmente, que ser adaptada às diversas situações e às características dos grupos humanos a que se destinava.
Nesta ordem de ideias, o plano português, de acordo com a “Directiva particular para a defesa psicológica em Tete”, de Maio de 1971, classificada de secreto, visava atingir os seguintes objectivos:
“(...)
1º. Na região de Changara, Tete, Moatize, Zobué, prolongada para a retaguarda para a região de Mungari e parte de Mutarara, criar uma zona tampão que impeça o desequilíbrio das populações dessas áreas para o In e, simultaneamente, evite o alastramento da subversão aos Distritos de Vila Pery, Beira e Zambézia. Essa zona viria a ser uma base de partida para a recuperação de populações já subvertidas, mais a Norte;
2º. Nas zonas onde se sabe existirem populações controladas pelo In, desenvolver antagonismos entre guerrilheiros e populações, de forma a conduzir à apresentação destas;
3º. Nas zonas onde actuam bandos armados conduzir uma campanha de desmoralização que os leve à deserção e rendição;
4º. Nas zonas onde se sabe existirem populações fugidas nos matos, sem qualquer controle, conduzir uma acção, de modo a conquistar a sua confiança e orientá-las para a apresentação à autoridade;
5º. Levar as populações a compreenderem e aceitarem a sua reunião em aldeias;
6º. Preservar da acção do In as populações que não caíram sob o seu domínio, levando-as a colaborar na contra-subversão;
7º. Realizar uma intensa campanha, no sentido de oferecer às populações um futuro melhor como resultado do desenvolvimento que estamos a realizar, designadamente no que respeita à barragem de Cahora-Bassa e outros planos do Gabinete do Plano do Zambeze (...)” (46).
O desenvolvimento deste plano impunha o emprego de agentes de Acção Psicológica, a formar por etnias e local de actuação, envolvendo programas de rádio, sendo de salientar a dotação de sistemas de ampliação para os aldeamentos, equipas de fotocine e de acção psico-social e a realização de estágios para oficiais e graduados recém–chegados da Metrópole (47).
Por seu lado, a FRELIMO procurava contradizer a estratégia sócio-económica portuguesa, visando também objectivos económicos, como quintas no Niassa e comboios rodoviários e ferroviários de mercadorias para e dos países do hinterland, tendo inclusivamente também afastado milhares de turistas do parque da Gorongosa, após o assassinato de um cirurgião espanhol, em Julho de 1973 (48). Mas eram as retaliações militares aos aldeamentos (onde efectuava infiltrações e pressionava os ocupantes ao abandono) que criavam perante as populações autóctones a noção de impotência da defesa arquitectada pelos portugueses e da segurança que estes procuravam transmitir. Por vezes estas actuações, levavam as populações, que pretendiam continuar a sua actividade e ser deixadas em paz, a autodefenderem-se para manterem esse privilégio, como foi o caso de Mecanhelas (49). Por outro lado, a FRELIMO utilizava-as como fonte de abastecimento e recrutamento.
Já Eduardo Mondlane, no seu livro “Lutar por Moçambique”, considerava que os aldeamentos eram factor de impedimento propositado de cooperação povo/FRELIMO (50).
A FRELIMO, na sua propaganda, apresentava-os como local de reunião para depois se executar a população. Este conceito traduz, com plena exactidão, o significado e o valor atribuído ao aldeamento. Só nele, e por meio dele, a população podia ser tida pelo governo, no sentido da sua posse física, da possibilidade do seu controlo (51). Outro factor que é demonstrativo da importância da política dos aldeamentos é o facto de, no período pós-independência, a FRELIMO ter adoptado um procedimento semelhante através das suas aldeias comunais, como poderemos verificar no estudo de João Paulo Borges Coelho sobre esta matéria (52).
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