Na vertente acção política, da designada resposta possível, abordaremos cinco situações, que nos parece terem sido as mais significativas na condução da guerra total com que Portugal se defrontava.
Estas são:
- Logo a partir da admissão de Portugal nas Nações Unidas, toda a argumentação e política diplomática em torno das decisões do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral, nomeadamente da 4ª Comissão;
- Em 1961, após os incidentes em Angola, a reacção governamental, com uma concentração de poderes do Governador-Geral e do Comando-Chefe numa só entidade, tanto em Angola como em Moçambique;
- Os laços políticos com a Rodésia e com a África do Sul, que confirmavam a forte decisão de Portugal de permanecer no território;
- Ao nível político-económico, a decisão da construção do complexo hidroeléctrico de Cahora Bassa e todas as consequências que esta trouxe no decorrer do confronto;
- Por último, a revisão da Constituição, em 1971, acto político decisivo para a tentativa de legalização das operações que se desenvolviam nos territórios continentais africanos sob Administração Portuguesa.
A argumentação sustentada por Portugal, perante as Nações Unidas e a comunidade internacional foi a mesma, desde o dia da admissão naquela Organização até à proclamação oficial do princípio da autodeterminação, através da aprovação pelo Conselho de Estado da Lei N.º 7/74, de 27 de Julho, que esclarecia o alcance do N.º 8 do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas (1).
A nomeação dos Governadores-Gerais e Comandantes-Chefes de Angola e Moçambique em 1961, à semelhança do que os ingleses fizeram na Malásia a partir de 1954 (2), enquadrava-se na revisão do esquema administrativo e no regresso à concentração de poderes exigida pela natureza institucional dos territórios que, segundo Adriano Moreira, não podia deixar de ser aplicada naquelas circunstâncias, não podendo no entanto levar à confusão da administração com a resolução exclusiva dos problemas militares; antes era, mais do que nunca, necessário não esquecer as prementes carências das populações, da economia, da política social, do ensino e da saúde (3). Quanto a Sarmento Rodrigues, alertava o então Ministro do Ultramar: “(...) atrevo-me a sugerir que merecem especial atenção os Distritos de Cabo Delgado, Tete e Niassa, onde deverá, na medida do possível, intensificar-se o já apreciável volume de empreendimentos em curso (...)”. E referia-lhe, na qualidade de Comandante-Chefe, a necessidade de manter a paz, residindo a maior força de Portugal “(...) na convivência pacífica e voluntária de todos os grupos étnicos que se juntaram à sombra da bandeira nacional, prestando homenagem à mesma soberania que é fonte de justiça para todos (...)” (4).
A posterior separação de poderes, segundo Silva Cunha, terá sido ditada pela prática política, que, face ao volume de pastas e de problemas, se revelou prejudicial para ambas as funções (5).
Porém, além da praxis política referida por Silva Cunha, este regresso à desconcentração de poderes deveu-se, em Angola, a uma rejeição militar em ter um Tenente-Coronel (Silvino Silvério Marques) como Comandante-Chefe, ficando este apenas Governador-Geral, e, em Moçambique, a recusa para esse mesmo cargo, mesmo que em acumulação, de um civil. Note-se que, em Moçambique, depois do Almirante Sarmento Rodrigues, ainda foi Governador-Geral e Comandante-Chefe o General Costa e Almeida. Só com Baltazar Rebelo de Sousa, a desconcentração de poderes voltou (6). Segundo este, “(...) era uma experiência interessante a de se separarem as funções, desde que se dessem bem e tivessem o mesmo pensamento, mas eu não podia ser Comandante-Chefe, pois não tinha condições técnicas para exercer as missões e, não esqueçamos, o Governador é Comandante de todos, tem autoridade sobre o Comandante-Chefe (...)”(7).
Num conflito de carácter total, é necessária uma estreita coordenação entre as acções de todos os elementos civis e militares, pelo que ou se concentram poderes o que pode facilitar procedimentos e, eventualmente, diminuir o tempo de resposta ou então, em situações onde eles estejam separados, se criam órgãos e estruturas em que podem ser delineados planos e tomadas decisões que permitam uma melhor colaboração e rendimento (em Moçambique lembramos o Conselho de Defesa, presidido pelo Governador-Geral). Em situações onde os poderes estivessem separados, fora criada legislação que permitia ao Governador tomar decisões com as quais o Comando-Chefe não estivesse de acordo, assumindo o primeiro, nessas circunstâncias, inteira responsabilidade dessas decisões perante o Governo(8).
Porém, por muito esforço e boa vontade que existisse, o processo de decisão era moroso, com a agravante de, internamente, a nível de Comando-Chefe, existirem já dificuldades na coordenação de operações inter-ramos e, a nível civil, a burocracia estrutural instaurada tornar o sistema rígido, tendo, como seria de esperar, as Forças Armadas uma maior disponibilidade de recursos. Independentemente das diferenças assinaladas, havia uma correspondência entre as divisões administrativa e militar. Assim era em Moçambique, em 1963 e 1964.
Em Novembro de 1965, Ian Smith declara a independência unilateral da Rodésia do Sul, facto que viria a ter grande influência na situação que se vivia em Moçambique. A ONU declarou sanções económicas, e o Governo de Londres proibiu às companhias britânicas (produtoras, distribuidoras ou transportadoras) o fornecimento directo ou indirecto de combustíveis à Rodésia e reuniu vastos meios navais ao largo da Beira, controlando a entrada do rio Pungué. Esta situação deu origem a diversos incidentes diplomáticos, por ingerência na soberania portuguesa.
Lisboa não participava do embargo nem tencionava violar o mesmo, não interferindo na circulação daqueles combustíveis, como país transitário (9). Salazar decidiu que se fizesse tudo ao alcance para auxiliar casos reconhecidamente vitais. Assim, iniciou-se o reabastecimento aos caminhos de ferro, vindo as locomotivas rodesianas abastecer-se aos terminais moçambicanos da Malvérnia e Machipanda ou deixando composições portuguesas vagões do outro lado da fronteira (10). Salazar fornecia, assim, apoio não oficial a Ian Smith, recorrendo a homens como o engenheiro Jorge Jardim e o empresário Manuel Bullosa. Desta forma, afrontava indirectamente o Governo inglês, por quem não nutria simpatia. O bloqueio afectou, como era evidente, as receitas cambiais do território.
Foram veiculadas informações de um eventual ataque aéreo à Beira ou, eventualmente, um ataque aeronaval e operações de comando para tomada do porto. Estes meios não teriam a intenção de efectuar um bloqueio, mas obter justificativo para intervenção internacional, ao abrigo dos Artigos 42º e 43º da Carta das Nações Unidas (11). A Inglaterra só atacaria se não houvesse reacção militar. Porém, reforçou-se o dispositivo defensivo terrestre com a transferência de tropas e meios aéreos de Angola (12), e o grau de empenhamento de alguns navios oceânicos portugueses aumentou. Qualquer destas forças poderia estar a ocupar posições noutro local do território, onde se travava a guerra com a FRELIMO.
As relações diplomáticas entre Portugal e a Inglaterra agravaram-se quando o petroleiro de pavilhão cipriota Joana V, que transportava carga com destino à Rodésia, rompendo o embargo, solicitou autorização para descarregar na cidade da Beira, tendo-lhe sido concedida. O navio enfrentou dificuldades para entrar na barra do rio e note-se, foram os próprios ingleses que efectuavam o embargo ao porto que orientaram a manobra (13). Porém, as pressões inglesas continuaram. Salazar referia a necessidade de não se ceder e de, ao mesmo tempo, se encontrar uma solução pacífica. Foram feitas diligências diplomáticas, nomeadamente junto do Brasil e da África do Sul, que se manifestaram contra as posições inglesas (14).
Após conversações com Ian Smith, este declarou publicamente não necessitar de combustíveis, pois a Rodésia era auto-suficiente. Assim, o Joana V pôde sair do porto da Beira. Ian Smith estava sem problemas de reabastecimento porque o bloqueio só afectava aquele porto, sendo a Rodésia reabastecida com a entrada de mercadorias por Lourenço Marques, que seguiam para a África do Sul e dali para o destino final. Contudo, este apoio veio apenas reforçar mais o isolamento diplomático internacional em que Portugal se encontrava, fragilizando também a sua posição estratégica, ao aumentar a dependência daqueles dois países, agravada com a transferência do esforço da FRELIMO para Tete.
Os destinos do território português de Moçambique ficavam, assim, mais estreitamente ligados aos regimes brancos da África Austral, um de apartheid, e o outro com uma independência unilateral, branca e à revelia.
A penetração subversiva para Sul do Zambeze conduziu a uma maior colaboração entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia. Estas passaram a fornecer apoio em material e mesmo com intervenções directas. Oficialmente, a Rodésia não cedia apoio para as operações. Todavia, localmente, os comandos entendiam-se, e aquele acabava por acontecer (15), obtendo a Rodésia, por parte de Kaúlza de Arriaga, o direito militar exclusivo de toda a região de Tete, a Sul do Zambeze (16). Quanto ao Regime de Pretória, Salazar conversara uma vez com o Ministro da Defesa sul africano, Vorster, que teria declarado que combateria os terroristas onde quer que estivesse autorizado a fazê-lo, o que significava estabelecer uma linha desde Angola, através da Rodésia, até Moçambique além da qual os terroristas encontrariam resistência não somente dos países interessados mas também, previsivelmente, de unidades sul-africanas, significando o desvanecimento da neutralidade desta potência (17). Já em 1974, Silva Cunha, então Ministro da Defesa, teve conversações com o seu homólogo sul africano em São Julião da Barra, em completo segredo, onde ficou estabelecida a cedência de material e se negociou ainda o empréstimo de 6 milhões de contos (não concretizado). A África do Sul pretendia em troca negociar as ramas de petróleo de Angola (18).
Os apoios e a condução estratégica da guerra assentavam, nomeadamente, nas designadas “operações Alcora” que, como vimos, englobavam os territórios de Angola, Moçambique, Rodésia e África do Sul. Com elas, podemos dizer que as intervenções daqueles dois países ficaram definidas. Angola seria apoiada pela África do Sul e Moçambique pela Rodésia.
Os territórios Alcora, face à vontade política interna de aí se manter a soberania, careciam, assim, de medidas globais de defesa, que incidiam num reforço da segurança interna tendente à redução de ameaças externas. Mas esta reacção a qualquer ameaça global teria de ser tripartida, tendo a estratégia adoptada, segundo fontes oficiais portuguesas, sido genericamente, a seguinte (19):
a) Assegurar a inviolabilidade individual dos territórios, usando meios militares para destruir e evitar a progressão da subversão através de um esforço mútuo;
b) Organizar uma força estratégica altamente móvel, como medida dissuasora;
c) Desenvolver uma intensa campanha socio-psicológica no interior dos territórios, por forma a conquistar as populações;
d) Intensificar a campanha psicológica externa, no sentido de ganhar aliados;
e) Desenvolver a rede de agentes dos Serviços de Informações nos territórios vizinhos;
f) Garantir a segurança da rota do Cabo.
Esta aliança triangular origina uma eventual alternativa para Moçambique, idêntica à da Rodésia, liderada por Jorge Jardim. Aquela espécie de eminência parda do poder em Moçambique inicia ainda uma aproximação a Keneth Kaunda, com o conhecimento de rodesianos e sul-africanos. A guerra já não tinha um comando unificado. Este encontrava-se disperso pelo Governador-Geral, pelo Comandante-Chefe e pelo engenheiro Jorge Jardim. Os problemas começaram antes do ex-Secretário de Estado Adjunto da Aeronaútica ter assumido as suas funções em Moçambique. O Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, então à frente do Governo-Geral, opusera-se a que Kaúlza fosse ocupar aquele comando. Não tendo sido feliz nos seus intentos, procurou acompanhar, de muito perto, a actividade administrativa do imenso território, efectuando frequentes visitas às populações afectadas pela guerra (20). Com o engenheiro Arantes e Oliveira (ex-Major de Engenharia), as relações degradaram-se, e muito. Esta situação afectou substancialmente as relações entre os poderes civil e militar. As reticências à cooperação podem ser, assim, explicadas pelo choque de personalidades, interesses, conceitos e mesmo competências de poderes existentes. Com o engenheiro Pimentel dos Santos como Governador-Geral esta situação foi, em parte, ultrapassada (21).
Quando Ken Flower, chefe das Informações rodesianas se deslocou, em Setembro de 1971, a Lisboa, a guerra em Moçambique alastrava para Sul, em Tete. Na capital portuguesa, foi recebido por Marcello Caetano e Venâncio Deslandes. Com este último, numa tentativa de ganhar proximidade e de procurar apoio para convencer Caetano a mudar o rumo da guerra, falou do plano secreto de 1969 para invasão do Malawi, caso Banda fosse derrotado. Com Caetano, o tema que procurou desenvolver visava a postura dos generais que, “(...) unless more reliance was placed on the indigenous population and the police were afforded more appropriate responsibility (...)”(22), perderiam a guerra. O resultado desta visita traduziu-se num encontro, em Sintra, em Setembro de 1972, entre Marcello Caetano e Ian Smith. Este trazia um memorando da CIO (Central Intelligence Operations) que especificava “(...) most of what is now apparent in Tete has been predicted for several years; but any real attempt to resolve the problem has been bedevilled by diverse appreciations of what is all about (...)” (23), alertando para que a solução preconizada para Tete, essencialmente militar, estaria errada e especificava a abordagem contraditória da situação, feita pelo Governador-Geral, pelo Comandante-Chefe, pela DGS e pela CIO (24).
O projecto Cahora Bassa tem de ser enquadrado como um aspecto fundamental da disputa pela soberania do território. Os portugueses, para além das operações militares destinadas a evitar o alastramento do conflito a Sul do Zambeze, conceberam uma estratégia passível de ser interpretada numa dupla vertente político-económica e político-militar.
Para o Poder português, a barragem representava a vontade de permanência e de afirmação, perante a comunidade internacional, da certeza de que era possível a vitória, mobilizando capitais e tecnologia. A obra era realizada em proveito do desenvolvimento da África Austral, aproveitando os recursos hídricos de um grande rio, e a sua construção integrava-se num projecto mais vasto que tinha início na barragem do Caribe, na Rodésia, e se prolongava por todo o vale do rio até à foz, no Índico.
Para o General Abel Cabral Couto, a decisão da construção de Cahora Bassa terá sido considerada, fundamentalmente, “(...) no plano político-económico, e sem um estudo profundo, fundamentado, pelo menos no que diz respeito a Moçambique, quanto a eventuais consequências da decisão sobre a evolução da guerra (...)” (25).
O concurso para a adjudicação da obra hidroeléctrica de Cahora Bassa foi aberto em 1966. Em 1968, ainda sob o governo de Salazar, teve lugar a adjudicação provisória ao consórcio ZAMCO, grupo constituído por firmas suecas, alemãs, francesas, italianas, sul-africanas e portuguesas. Os italianos e os suecos acabaram por retirar o financiamento prometido pelo consórcio (26). A assinatura do contrato de construção, em 1969, ocorreu já no Governo de Marcello Caetano. Esta grandiosa obra de engenharia estava implantada a 200 quilómetros da fronteira com a Zâmbia e a 600 do porto da Beira. Tinha cerca de 6.000 postes de suporte ao longo de, aproximadamente, 900 quilómetros de linha de transporte de energia, em território português.
Além de um alvo importante (27), a FRELIMO encarava-a como um desafio, um sinónimo de fraqueza no controlo das populações e do território, mas, sobretudo, receava a instalação, no vale do Zambeze, de aproximadamente um milhão de novos colonos, com todas as suas consequências no decurso do conflito; receava ainda a criação de uma barreira humana ao longo do rio, protegida por militares sul-africanos, a retirada de terras ao povo e, eventualmente, um Regime de apartheid (28).
Nesta ordem de ideias, a barragem materializava, assim, para ambas as partes, o objectivo decisivo da vitória. Porém, esta visão clássica do problema da barragem é hoje em dia posta em causa, pelo menos, por dois destacados dirigentes da FRELIMO: Sérgio Vieira e o General Sebastião Mabote. Para o primeiro, “(...) manteve-se sempre a grande propaganda contra Cahora Bassa, porque neutralizava um grande efectivo, sem custos nenhuns (...)” (29). O General afirma: “(...) nós tínhamos uma orientação de que não podíamos destruir a barragem, mas devíamos atravessar o rio (...)” (30). A serem verdadeiras estas revelações, as actuações da FRELIMO no sentido de impedir a construção daquele complexo foram típicas de uma manobra subversiva de estratégia total bem montada, onde foram utilizados processos de acções internas, violentas ou não, acções externas com intensa utilização de propaganda e, sobretudo, acções por lassidão. No fundo o que Sun Tzu aconselhara “(...) mantenham-no sob tensão e cansem-no (...)” (31).
Quer Gomes de Araújo quer Sá Viana Rebelo garantiram a protecção militar dos trabalhos de construção da barragem, da estação hidroeléctrica e da linha de transporte, pois consideravam que estava dentro das possibilidades das Forças Armadas a solução das dificuldades de defesa (32). Com a decisão de Cahora Bassa, era necessário assegurar a montagem de uma segurança relativamente afastada e “(...) muitíssimo discreta, de forma a que não aparecessem militares, porque era uma obra de realização internacional, onde iriam afluir cidadãos de várias partes do mundo e, por conseguinte, não podiam ser assustados e tinha de se dar a imagem de que era uma zona perfeitamente pacífica, de que não havia riscos, problemas (...)” (33).
Associada à barragem estava a criação de uma albufeira, que constituiria um grande obstáculo para os meios da FRELIMO. A barragem representava, assim, uma vantagem militar para as Forças Portuguesas, dado permitir montar um dispositivo de controlo; nessa altura, a guerrilha teria mais dificuldades em ser alimentada a Sul do Zambeze. Porém, os avanços das acções da FRELIMO para Sul continuaram, exigindo um emprego e concentração de elevado número de efectivos e de meios para se poder isolar toda a área circundante do complexo, bem como os eixos rodoviários e ferroviários que permitiam o abastecimento desde a Beira, e assegurar ainda a defesa de toda a linha de transporte energético. Esta, além da defesa do ponto sensível da obra em si, constituiu uma operação tipo convencional (embora em ambiente de guerrilha) desenvolvida com sucesso, pois, apesar de todas as acções para retardar a execução do projecto, a barragem foi construída. Enquanto Portugal reclamava esta situação, a guerrilha, “(...) managed, however, to retard the other components of the scheme, gaining time to perform what was perhaps the most important strategic move of the entire war. This was the crossing of the Zambezi River (...)”(34), aproximando-se cada vez mais de zonas próximas do complexo Dondo-Beira.
O esforço português no planalto dos Macondes foi decisivo para desencadear de acções em Tete por parte da FRELIMO, passando aquela região, a partir de 1971, a ser a chave da solução do conflito. A construção da barragem exigia um cada vez maior número de efectivos e volume de meios, daí terem sido instituídos o Comando Operacional da Defesa de Cabora Bassa (CODCB) e o Comando das Cargas Críticas (CCC), e criada a Zona Operacional de Tete (ZOT), sendo esta Província colocada sob autoridade militar a partir de Maio de 1971. Esta última decisão tinha por suporte legal o Decreto-Lei N.º 182/70, que permitia que passassem para a autoridade militar certas áreas do território onde as operações tivessem marcada preponderância, competindo aos chefes integrar, orientar e coordenar todos os esforços, militares e civis (35). A construção da barragem prosseguia, mas subsistia também a incerteza sobre o futuro do território (36).
Durante as operações de defesa do complexo de Cahora Bassa, incluindo o que envolvia a sua construção atempada, era fundamental assegurar a todo o custo a não interferência das acções de guerrilha. Por isso, as acções de “batida e cerco” (37) como as praticadas em Wiriyamu, Chawola e Inhaminga deverão ser interpretadas como operações punitivas sobre elementos “subversivos”.
O Governo de Marcello Caetano sabia desde o início que enfrentava uma guerra prolongada, e que a guerrilha persistia devido aos apoios externos e tinha por objectivo a conquista progressiva da adesão das populações. Nesta ordem de ideias, o Conselho Superior de Defesa Nacional traçou a orientação relativa das operações contra-subversivas a desencadear em África (38). Por conseguinte, a contra-subversão “(...) tinha de consistir numa acção de conjunto, apoiada pelas forças militares, mas não exclusiva delas. O importante era durar por forma a permitir a evolução política conveniente, resistir à acção de desgaste da guerra subversiva e opor, à vontade do inimigo, uma outra vontade determinada e resoluta. Mais do que em qualquer outra guerra, vale nesta o princípio de que o vencido é o primeiro que desiste de lutar e se considera derrotado (...)” (39).
Em 1971, a resposta política ao conflito consubstancia-se através de uma cautelosa revisão da Constituição e de nova Lei Orgânica (40). A primeira, como vimos, dotava as Províncias Ultramarinas de autonomia político-administrativa, podendo, as mesmas inclusivamente, adoptarem o título honorífico de Estados.
Pelo N.º 5 do Art.º 109 da nova Constituição, o Governo tinha poderes para, provisoriamente, declarar o estado de sítio, com os efeitos referidos no N.º 8 do Art.º 91, não podendo aquela situação exceder o prazo de 90 dias sem o decreto ser ratificado pela Assembleia Nacional, excepto se a reunião daquela continuasse a ser absolutamente impossível. No N.º 6 do Art.º 109º, especificava-se : “(...) Ocorrendo actos subversivos graves em qualquer parte do território nacional, poderá o Governo, quando não se justifique a declaração de estado de sítio, adoptar as providências necessárias para reprimir a subversão e prevenir a sua extensão, com a restrição de liberdades e garantias individuais que se mostrar indispensável (...)”. E acrescenta-se no Art.º 136º: “(...) o exercício da autonomia das Províncias Ultramarinas não afectará a unidade da Nação, a solidariedade entre todas as parcelas do território português, nem a integridade da soberania do Estado (...)”, competindo aos órgãos de soberania da República “(...) assegurar a defesa nacional (...)” (41), “(...) proteger, quando necessário, as populações contra as ameaças à segurança e bem-estar que não possam ser remediadas pelos meios locais (...)” (42), tendo o governador, em cada Província Ultramarina, o indeclinável dever de sustentar os direitos de soberania da Nação e promover o bem da Província (43). Assim, como o texto constitucional não discriminava o tipo das providências autorizadas por via legislativa ou administrativa, a acção do Governo legalizou as operações que se desenvolviam nos territórios continentais africanos sob a Administração Portuguesa. E como a Assembleia Nacional, por unanimidade, resolveu verificar a persistência daquela, considerada como grave subversão, ficou o Governo salvaguardado, a nível constitucional, quanto à restrição de liberdades que necessitasse de impor para prosseguir a defesa dos territórios em África.
Na Lei Orgânica do Ultramar de 19 de Junho de 1972, especificava-se que, uma vez declarado o estado de sítio, o Governador podia assumir, por tempo indispensável e sob a sua inteira responsabilidade, as funções de qualquer órgão, autoridade civil ou militar, dando rapidamente, através da Tutela, conhecimento ao Governo. Acrescenta-se ainda que, verificando-se situações previstas no N.º 6 do Art.º 109º da Constituição, poderia o Governador ser autorizado pelo Governo a adoptar as medidas consideradas necessárias para reprimir a subversão e prevenir a extensão da mesma.
Esta situação, só criada ao fim de 11 anos de guerra em África, surgia no seguimento lógico da Carta Orgânica do Império Colonial de 15 de Novembro de 1933, onde se especificava que competia ao Governo Central, segundo o Art.º 15º, declarar o estado de sítio em um ou mais pontos do território colonial, sempre que a salvaguarda da soberania nacional o exigisse. De acordo com o § único do Art.º 18º da mesma Carta, o Governador declarada que fosse aquela situação, assumia, sob a sua inteira responsabilidade, as funções que eram da competência do Conselho de Governo ou de qualquer outro órgão, com dispensa das autorizações ministeriais indicadas na Carta, dando, imediatamente, pela via mais rápida, conhecimento ao Ministro das Colónias de tudo o que fizesse.
A 13 de Novembro de 1952, a Câmara Corporativa emitiu um Parecer sobre a proposta de alteração da Carta Orgânica (44). Em jeito de comentário, aquele Parecer, referia que o Governador poderia declarar, provisoriamente, o estado de sítio, apesar de a sua declaração em forma ser da competência exclusiva da Assembleia Nacional (45) ou do Governo, na sua competência legislativa, designadamente, se não estivesse reunida a Assembleia; pelo que, segundo aquela Câmara, não deveria ser inscrito no projecto de revisão como competência do Ministro do Ultramar a declaração do estado de sítio, como indevidamente se fazia no §1 do Art.º 11, n.º 15 da Carta Orgânica (46), intervindo em sua substituição, o Governo ou a Assembleia. Assim, propunha-se que fosse o Conselho do Governo a declarar o estado de sítio, em todo ou em parte do território da Província, no caso de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras ou no caso da segurança e a ordem públicas serem gravemente perturbadas ou ameaçadas, dando imediato conhecimento do facto ao Ministro do Ultramar, pela via mais rápida (47).
Na Carta, alterada e aprovada em 27 de Junho de 1953, não se respeitou o Parecer da Câmara Corporativa, e assim, segundo a alínea b) II, Base III, passou a competir ao Governador-Geral ouvir o Conselho de Governo para poder declarar aquele estado num ou mais pontos do território, dando de imediato conhecimento ao Ministro do Ultramar, pois era dever supremo de honra o Governador, em cada um dos territórios ultramarinos, sustentar os direitos de soberania da Nação e promover o bem da Província, em harmonia com os princípios constitucionais e legais. Uma vez declarada aquela situação, o Governador poderia assumir, pelo tempo indispensável e sob a sua inteira responsabilidade, as funções de quaisquer dos restantes órgãos da Província, dando imediato conhecimento à tutela ministerial pela via mais rápida de tudo o que fizesse.
Em 1955, volta-se a proceder a nova revisão da Carta Orgânica, emitindo a Câmara, no seu Parecer N.º 21/VI, lavrado em acta em 18 de Abril de 1955, juízo favorável à proposta governamental de desobrigar o Governador-Geral de ouvir o Conselho de Governo relativamente ao exercício da competência de declarar, provisoriamente, o estado de sítio num ou mais pontos do território da Província, passando a consulta a ser facultativa. No Parecer refere-se que, se as circunstâncias e o tempo permitissem, o Governador não deixaria de procurar o Parecer do Conselho de Governo, pois esse mesmo Parecer concorreria para lhe esbater a responsabilidade perante o Governo-Central e para salvaguardar a sua posição perante a população local. Ressalvava-se no entanto que, em casos de particular urgência, não se podia exigir que, para decretar regularmente o estado de sítio, o Governador-Geral tivesse de ouvir o Conselho de Governo (48). Assim, desde 25 de Maio de 1955 que, pela Lei n.º 2076, o Governador-Geral deixaria de necessitar ouvir o Conselho de Governo para poder declarar o estado de sítio. Esta posição que, em nosso entender, visava facilitar os poderes do Governador, veio condicioná-los, pois a figura do estado de sítio não foi sequer contemplada na revisão a que se procedeu, ficando o Governador impedido de declarar aquele estado. Esta situação, constitucionalmente, só poderia verificar-se sob proposta do Ministro do Ultramar (49).
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