MIGUEL GARCIA

Francisco Miguel Gouveia Pinto Proença Garcia
ANÁLISE GLOBAL DE UMA GUERRA
(MOÇAMBIQUE 1964-1974)

Dissertação para a obtenção do Grau de Doutor em História
Universidade Portucalense
Orientação dos: Prof. Doutor Joaquim da Silva Cunha e
Prof. Doutor Fernando Amaro Monteiro
Porto . Outubro de 2001

II Capítulo

A conflitualidade global permanente, o despertar dos movimentos independentistas e a afirmação da soberania portuguesa em Moçambique

2.1. – A FRELIMO

Tendo como pano de fundo as divergências interpartidárias e interdirigentes, em nítida escalada, a CONCP, a UDENAMO, o Governo do Tanganica, a PAFMECSA, Nkrumah e Nyerere exerceram pressão para que os movimentos se unissem numa frente única. A união terá sido praticamente imposta por Óscar Kambona (Secretário Geral da TANU e Ministro do Exército) e por Kaionge (Secretário-Geral da PAFMECSA). Tudo indicava que a ideia primitiva consistia em considerar esta Frente como um órgão coordenador das acções dos diversos partidos, tendo-se vindo a verificar que as intenções do Governo do Tanganica visavam a formação só de um partido. Afusão partidária serviria, segundo parecia, “(...) ao Governo do Tanganica para desencadear uma acção mais directa na libertação de Moçambique, dados os seus interesses de anexação territorial sobre a parte Norte da Província (entre o Rovuma e o Lúrio) (...)”(1). A FRELIMO foi, assim, constituída em 25 de Junho de 1962, em Accra, durante uma reunião da CONCP, pela junção da UDENAMO, MANU e UNAMI (2). O reconhecimento desta Frente pelos países independentes da OUA foi imediato.

A FRELIMO era então uma organização política constituída por moçambicanos, sem distinção de sexo, de origem étnica, de crença religiosa ou de lugar de domicílio. Tinha por objectivo a liquidação total, em Moçambique, da dominação colonial portuguesa e de todos os vestígios do colonialismo e do imperialismo, a conquista da independência imediata e completa de Moçambique, e a defesa e realização das reivindicações de todos os moçambicanos explorados e oprimidos pelo Regime colonial português (3).

Os partidos denominados democrato-revolucionários africanos, apesar de possuírem nos seus quadros activistas inspirados na ideologia marxista/leninista, não o eram em sentido estrito. Todavia, prevalecia a ideia de que, com o tempo, seriam transformados em partidos genuinamente comunistas. Ou seja, o estabelecer do comunismo continuava desejável, mas não era prioritário. A prioridade estava em minar a influência ocidental em África.

O apoio da Ford Foundation à FRELIMO representava um indicador nítido de que esta ainda não se reclamava de marxista pelo que só podia ser considerada como uma força independentista não comunista. A propaganda frelimista assentava na necessidade de lutar pela independência, contra os abusos de poder e contra a exploração colonial. O trabalho político decisivo era levado a cabo no meio rural, em áreas onde o controlo da malha administrativa era incipiente. O marxismo-leninismo começa a ser admitido como uma inclinação tendencial por Mondlane apenas em 1969 (4). Mas só é aceite de forma explícita no terceiro Congresso, realizado em Fevereiro de 1977, defendendo Samora Machel que aquela ideologia política não surgiu como produto de uma importação, mas sim do processo de luta interna entre classes, que permitiu o assumir e interiorizar dos fundamentos do socialismo científico, situação que terá contribuído para o próprio desenvolvimento daquela ideologia (5). No entanto, o Poder português encarava a FRELIMO como fazendo parte integrante de uma estratégia global comunista (que sempre ajudou, embora ao princípio a integrasse), logo, induzida para o conflito a partir do exterior.

O primeiro Congresso da FRELIMO realizou-se em Dar-es-Salam, entre 23 e 28 de Setembro de 1962, no “Arnotorgh Hall”. Estiveram presentes 80 delegados e 500 observadores. O estatuto, aí elaborado, referia a formação de um governo do povo, pelo povo e para o povo, em que a soberania da nação fosse fundada na vontade popular, no respeito pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e na liquidação da educação e cultura colonialistas e imperialistas (6).

Salientamos que a 5ª Resolução do Congresso referia o emprego de todos os esforços para promover o rápido acesso de Moçambique à independência, nele se incluindo a organização de uma propaganda permanente, destinada a, por todos os métodos, mobilizar a opinião pública mundial a favor da causa de Moçambique (7). Embora, segundo Mondlane, a FRELIMO estivesse decidida a fazer tudo ao seu alcance por forma a obter a independência por meios pacíficos, já estava convencida de que a guerra seria necessária (8).

Apesar de tudo, decidiu-se naquele Congresso que, em Janeiro de 1963, a organização pediria ao Governo Português a independência de Moçambique. Se tal fosse recusado, a luta iniciar-se-ia no mês de Março seguinte, o que não se veio a verificar. Mais tarde, a 12 de Outubro de 1963, exigia-se já que Portugal negociasse directamente com a FRELIMO o futuro de Moçambique (9). A libertação nacional não consistia apenas na expulsão do colonialismo. O desafio residia também na construção do Homem novo e de um país igualmente novo, sem autoridade administrativa colonial e sem os tradicionais regulados. Os regulados, com potenciais problemas de regionalismo e tribalismo, seriam um travão ao progresso da revolução de igualdade política e social (10).

A FRELIMO doutrinava os seus quadros, na procura de neles incutir espírito de independência e de construção nacional, sendo o Estado a força concentrada da sociedade. Assim, para a independência e soberania do povo moçambicano, exigia o fim do Regime colonial (11). Procurando viabilizar uma ideia de Nação una, reclamavam a unidade do Povo moçambicano e a manutenção das suas fronteiras (12). No Estado soberano e independente de Moçambique, todos seriam iguais perante a Lei, uma vez que consideravam que o melhor Estado era aquele em que os interesses justos não eram combatidos ou sufocados pela força. O melhor Estado era aquele em que os interesses em luta tinham liberdade para se exprimirem e para se confrontarem para, assim, poderem resolver os problemas que os separavam, acrescentando-se, no documento “Curso de formação de quadros políticos revolucionários da FRELIMO”, que: “(…) para uma democracia funcionar convenientemente é indispensável:

a) Obediência da minoria à maioria;

b) Governo e povo deverão colaborar em todos os planos de organização da sociedade (…), nós somos pela supremacia do poder político (…) parlamento e governo sobre o militar (Exército) (…), nós somos pela supremacia do poder central (parlamento e governo nacional) sobre os governos regionais e provinciais (…)” (13).

Quanto a partidos políticos, referia o documento em análise:

“(…) os moçambicanos deverão esforçar-se para que não haja muitos partidos (…)”, pois esta situação conduziria a uma divisão do povo para servir interesses colonialistas e, além do mais, “(…) em Moçambique durante muito tempo, e mesmo depois da independência, a luta entre os diferentes interesses moçambicanos terá menos importância do que a luta do povo moçambicano inteiro contra os restos do colonialismo que vão tentar, por várias maneiras, enfraquecer a soberania e independência do povo moçambicano (…)” (14).

A revolução frelimista caracterizava-se por uma acção consciente, resoluta e dura de massas populares, com o objectivo de liquidar o poder existente, opressor; acabar com as antigas relações sociais; criar um poder novo, superior e mais progressivo que o antigo, onde se acreditava que somente através da revolução se podia construir um Moçambique independente, livre e democrático, onde os cidadãos pudessem viver com dignidade, decência e segurança. Como a revolução era do povo, pelo povo e, em simultâneo, o próprio povo, os quadros militantes da FRELIMO, como elementos do povo, seriam assim o seu braço armado. A revolução só podia triunfar por meio da mobilização política geral das massas populares moçambicanas, através de propaganda, pela organização unida das massas trabalhadoras e camponesas e pelo exemplo de luta heróica das forças combatentes, daí que o povo inteiro devia ser levado a apoiar a revolução com todas as suas possibilidades e energias (15). Esta deveria ser feita ao mesmo tempo nas frentes política, militar, económica, social e cultural, de modo que, para se concretizar a verdadeira revolução, as armas seriam o único meio viável.

A FRELIMO que definiu, como palavra de ordem, o “Estudo”, a “Produção” e o “Combate” (16) surge, assim, como um movimento que se considerava libertador do trabalhador, do camponês e de cada moçambicano explorado, da alienação do capitalismo e do imperialismo, indicando o inimigo como sendo o sistema colonial-fascista português em Moçambique, suas estruturas de repressão, a quem serve e defende (17).

Para Eduardo Mondlane, a revolução de Moçambique, durante longos anos, estivera adormecida e começara, aproximadamente, em Setembro de 1964, diferenciando-se todavia da batalha revolucionária que os angolanos travaram contra Portugal (18). Em virtude de beneficiar das experiências colhidas nas lutas de Angola e da Guiné, que permitiriam não cometer os mesmos erros, calculava-se atingir a independência num prazo de 5 anos. Para isso a FRELIMO preparava os seus efectivos em três áreas: “Segurança”, “Psicologia” e “Treino de Combate” (19).

Inicialmente, a ideologia da Frente, apesar de bem definida suscitava controvérsias internas. Apenas a ideia de independência aglutinava os esforços. Porém, as fragilidades e contradições dos vários partidos que integravam a FRELIMO não se dissiparam com facilidade. Logo no início houve tendências segregacionistas, reaparecendo diversificações dos partidos originais a reclamar representatividade, como foi o caso da nova UDENAMO, do MORECO, depois COREMO (Comité Revolucionário de Moçambique), e ainda da UNAR (União Nacional Africana da Rombézia) (20).

Os primeiros desentendimentos graves dentro da FRELIMO terão surgido em Janeiro de 1963, quando da expulsão de diversos membros e do quase linchamento do Secretário de Publicidade, Leo Millas. Em consequência aqueles amotinados foram expulsos pelas autoridades do Tanganica e, uma vez em Kampala, emitiram um comunicado a desvincular a UDENAMO da FRELIMO.

Em Maio de 1963, verificam-se novas desinteligências, agora entre Mondlane e Baltazar da Costa (UNAMI). Este último não queria que os seus elementos recebessem treino militar, mas sim, e apenas, intelectual, para que no futuro pudessem ser úteis a Moçambique. Assim, também Baltazar da Costa em Dezembro de 1963, acabaria por abandonar a FRELIMO.

Foi com o emergir das “áreas libertadas” que as divergências internas se agravaram, formando-se duas linhas distintas. Uma proponente de uma independência tradicional, nacionalista africana, porém regionalista e tribalista, onde o inimigo era simplesmente o Branco — no fundo, tratava-se de estabelecer uma nova classe dirigente num contexto neocolonial — e a outra, preconizada por homens como Mondlane, Chissano e Marcelino dos Santos, que compreendia a independência acompanhada de uma revolução social, com uma estrutura política assente num regime completamente novo, de poder popular (21), em que todos os vestígios coloniais fossem eliminados (22), perspectivando uma posição anti-racial, abrangente de todos os moçambicanos.

A FRELIMO debatia-se, já em 1966 (23), com uma rivalidade latente e com uma desunião motivada pelo apego dos seus elementos às respectivas ligações tribais. A tribalização era considerada um dos maiores entraves ao sucesso da luta. A “facção pró-chinesa” da FRELIMO, assim designada pelo Exército Português, chefiada por Marcelino dos Santos e Uria Simango, acusava mesmo Mondlane de partidarismo tribal na escolha dos lugares de chefia (24).

Também os Macondes de Lázaro Nkavandame pretendiam um movimento separatista distinto do da FRELIMO. A sua independência não seria unitarista. Pendiam ainda para uma resistência dentro da própria Frente, pelo simples facto de Mondlane não ser do seu grupo etno-linguístico, mas ser oriundo do Sul e casado com uma branca norte-americana. Estas ocorrências seriam uma constante na Frente, acentuando-se entre os princípios de 1968 e finais de 1969. A fissura entre quadros directivos/massa de combatentes, os primeiros provenientes das regiões mais a Sul e os segundos recrutados entre as populações a Norte, manter-se-ia. Estes problemas da FRELIMO eram semelhantes aos que o PAIGC enfrentava face aos Balantas. Tendo em conta a circunstância de o recrutamento dos quadros da Frente ser feito em latitudes e longitudes variáveis dentro do território, abrangendo assim diversos grupos etno-linguísticos, foi necessário desenvolver-se esforços para a destribalização.

Esta crise de identidade não foi ultrapassada pelo II Congresso, que terá sido convocado numa tentativa de solucionar a crise política. Realizado, segundo fontes da FRELIMO (25), nas ”áreas libertadas” de Machedje, Província do Niassa, de 20 a 25 de Julho de 1968, este Congresso foi mais democrático que o anterior. Nele participaram cerca de 170 delegados e observadores, vindos de todos os cantos de Moçambique e representando elementos eleitos pela população entre todas as camadas do povo (26).

Nas resoluções do congresso, relativas à luta armada, é referida a dependência do auxílio externo e a dificuldade de extensão da guerra aos Distritos a Sul, o que implicava um desequilíbrio de forças militares em favor de Portugal; assim, até à vitória, a luta seria prolongada. Aqui, fala-se na necessidade da participação popular e do importante papel das milícias e da mulher. Nestas resoluções, abordou-se o problema das deserções e da importância dos prisioneiros de guerra, bem como o seu correcto tratamento e utilização (27). Princípio que já não é novo, pois já na antiguidade Sun Tzu fazia alusão ao tratamento dos prisioneiros de guerra: "(…) trata os prisioneiros de guerra bem e trata deles (…)" (28), e que só foi regulada no mundo ocidental pelos próprios instrumentos humanizantes da guerra (Convenções de Genebra de 1949, e Protocolos Adicionais I e II, de Junho de 1977).

No segundo Congresso da FRELIMO, a representação Maconde era escassa. Porém, os poucos elementos presentes chegaram a propor Uria Simango para a presidência do partido. Mondlane, apesar de reeleito, “(...) teve de ceder a vários pontos a favor da facção Maconde (...)”(29).

A partir deste congresso, o “Comité Central” passou a ter uma natureza diferente, ficando organizado em diversos departamentos: Administração, Relações Exteriores, Finanças, Informação, Publicidade e Propaganda, Assuntos Sociais e Educação (30). Os seus elementos passaram a ser eleitos pelas Províncias, por representantes de organizações de massas e pelos secretários provinciais. Foi ainda criado o Comité-Político-Militar. O novo Moçambique teria, assim, novas estruturas e organização a nível económico, educacional, de saúde e de desenvolvimento sócio-cultural. Houve ainda resoluções sobre a administração das “áreas libertadas”, que tinham por fim estabelecer o poder do povo (31).

Após o segundo Congresso, a crise de identidade da Frente não foi ultrapassada, revelando-se nitidamente as duas linhas. Mas vejamos as crises com maior detalhe.

Em 1968, a Frente atravessa duas importantes crises: uma, provocada pelo padre católico Mateus Gwengere e outra, por Lázaro Nkavandame (32). O padre Gwengere desestabilizava os estudantes na escola em Dar-es-Salam(33), e Lázaro Nkawandame procurava a independência de Cabo Delgado. Este era acusado pela FRELIMO de querer substituir os colonialistas portugueses na exploração do povo (34), motivo por que defendia o alcançar de uma vitória rápida, em desfavor de uma guerra prolongada (35). O plano falhou, porque “(...) as populações das áreas libertadas lhe retiraram completamente o apoio (...)”(36).

O líder Maconde perde prestígio entre os seus e apresenta-se em 16 de Março de 1969 às autoridades administrativas, no posto de Nangade.

Atribuído à PIDE e a elementos dissidentes no seio da FRELIMO, o assassinato de Mondlane (37), a 3 de Fevereiro de 1969, de acordo com publicações da FRELIMO, é situado como o resultado da luta entre as duas linhas políticas (38), que acaba por desencadear uma depuração nos seus quadros. Esta última crise foi ultrapassada pelo triunvirato Uria Simango, Samora Machel e Marcelino dos Santos, encabeçando um Conselho de Presidência (39). A FRELIMO não teve a mesma capacidade do PAIGC com a morte de Amílcar Cabral. A situação só foi ultrapassada em Maio de 1970, quando do assumir da Presidência por Samora Machel e do afastamento de Uria Simango. Este escrevera um panfleto intitulado “Triste Situação na FRELIMO”. Em comunicado do Comité Executivo, datado de 8 de Novembro de 1969, Uria Simango, na altura membro do conselho da presidência, foi suspenso.

Num processo de “revolução por etapas”, a FRELIMO transitava da fase nacional-democrática, iniciada em 1962, para, a partir de 1969, entrar na democrática-popular (40). Em conformidade com Michael Cahen, no rescaldo da crise interna de 1968-69, emerge uma facção pequeno burguesa desligada da produção (41), que para Amaro Monteiro estava “(...) carente de uma ideologia nacionalista que funcionasse como elemento mobilizador e condicionador de massas (...)” (42) e estava também bloqueada na ascensão social. Estas situações, associadas ao pano de fundo da luta armada, terão favorecido a aproximação do nacionalismo ao marxismo.

A crise no final da década de sessenta, que acabou por projectar para primeiro plano Samora Machel, pôs termo às duas linhas políticas. Samora vai ainda radicalizar os métodos de controlo da Frente — pois os dissidentes da linha revolucionária tinham de ser controlados  — , originando o confronto directo entre as duas linhas. O segundo congresso criara já condições de resolução das divergências.

Após a nomeação de Samora Machel, nítido opositor da separação entre a ala política e a ala militar, foi notório o reforço de ambas as actividades (43), considerando a FRELIMO que, a partir de 1970, a insurreição geral armada tomara a forma de guerra popular revolucionária, esta definiu-se em termos de classes (44).

 
 

 




 



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