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FRANCISCO PROENÇA GARCIA |
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A IMPORTÂNCIA DAS INFORMAÇÕES |
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2. As Informações e os estudos sobre as populações e religiões moçambicanas. |
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A designada por “resposta possível” à contra-subversão, passa pela estreita coordenação de acções militares, sócio-económicas, político-diplomáticas e psicológicas, pelo que, no planeamento de operações deste tipo, além de efectuar os estudos da missão, do terreno, do inimigo, dos meios e do tempo disponível, impõe-se realizar um estudo das populações sob o ponto de vista étnico, linguístico e religioso (1). Com base nestes estudos, deve também avaliar-se a projecção de alguns grupos étnico-linguísticos para além–fronteiras, devendo, em cada país, definir-se muito bem as etnias interiores e as transfronteiriças causadoras de problemas diversos, que necessitam de ser avaliados, equacionados e resolvidos. Do ponto de vista religioso, deve-se ter a noção de que se considerava que as religiões tradicionais africanas privilegiavam o tribalismo, que o islamismo esbatia esse mesmo tribalismo e gerava tendências polarizadoras, que o cristianismo protestante provocava tendências divisionistas, que as igrejas afro-cristãs e as seitas religiosas geravam tendências desagregacionistas ao passo que o cristianismo católico era unificador (2). Para garantir a sobrevivência e a subsistência das populações rurais devem ainda ser feitos estudos sobre a calendarização das chuvas e das fases das culturas tradicionais alimentares, as pastagens, as condições de armazenamento de sementes e forragens e a necessidade de recurso às apanhas silvestres. Os primeiros estudos sérios serão dos SCCIM, destacando-se de 1965 a 1968 a vasta pesquisa concebida e controlada por Fernando Amaro Monteiro, tendente entre outros objectivos a identificar e caracterizar, na óptica do conflito, quer no domínio interno como no da possível projecção externa, as lideranças das populações muçulmanas de toda a Província (3); seguiu-se-lhe pelo mesmo elemento dos SCCIM, entre 1968 e 1972, uma série de pesquisas de campo, em aberto, por todo o território, que apuraram os resultados finais do trabalho começado em 1965. São de realçar antes, em 1965 o pormenorizadíssimo estudo sobre “A conquista da adesão das populações” de Romeu Ivens Ferraz de Freitas (4), com uma carta étnica detalhada, e em 1966, “Prospecção das forças tradicionais – Manica e Sofala”, de José Alberto Branquinho (5). Também a 2ª Repartição do QG/RMM, chefiada pelo então Tenente -Coronel Pedro Cardoso, produz em 1967 os relatórios “Populações de Moçambique” e “Panorama Religioso de Moçambique”, onde, para além da caracterização sociológica de cada grupo etno-linguístico e das suas fronteiras, se explicita a malha de controlo sobre as autoridades tradicionais e a população em geral, e as suas relações com o exterior (6). Este trabalho de Informações revertia em favor de uma actuação prática e efectiva sobre as populações. Reforçando as dificuldades que se opunham às actividades dos vários Serviços de Informações, pela limitada capacidade de meios, técnica e estrutura territorial, o Comando-Chefe registava em 1965 uma maior rentabilidade do esforço da FRELIMO, mercê do melhor conhecimento do meio, das populações e dos seus dialectos. Além disso, estes começavam a evidenciar uma adequada técnica de guerrilha no contacto com as populações autóctones. Manifestavam-se agressivos e violentos, empregando a força quando necessário para aniquilar qualquer actividade “gentílica” (designação referida no relatório em análise) que lhe fosse desfavorável. Reduziam assim o número de elementos de que os Serviços de Informações ou a administração se poderiam servir para pesquisa de notícias (7). A FRELIMO desenvolveu esforços de aliciamento tendente à conquista da adesão das populações em todo o território, tendo o SIM detectado em todos os Distritos focos de subversão incipientes ou mais desenvolvidos. Aquela Frente evidenciou, em quase todos os casos, uma perfeita e bem realizada Acção Psicológica dirigida às populações, explorando, entre outras, as condições ambientais, as falhas ou incorrecções das autoridades, menos cuidado ou atenção na resolução dos problemas dos autóctones. Na concepção de defesa adoptada pelo Poder português, havia unanimidade quanto à importância vital do papel desempenhado pelas populações. Assim, a preparação e informação dos quadros acerca das estruturas clânicas, tribais e sócio-religiosas das sociedades negras foram necessárias por ser forçoso um conhecimento do terreno, do humano, claro está, e no detalhe (situação que a subversão detinha e utilizou). Sem aquele estudo e preparação, não seria possível empreender com êxito a conquista da adesão das populações. Porém, esta situação era reconhecida sobretudo como axioma, pois o estudo ao nível adequado só frouxamente se pôs em prática. A tendência era mais para uma actuação convencional, conducente à posição de contabilizar armas e documentos capturados ou a população recuperada ou apresentada.... Facto que, dramático no contexto, se compreendia facilmente se pensarmos que um determinado tipo de concepção castrense não muda só porque uma cúpula a formula como norma. A instituição militar contém, natural e forçosamente, ingredientes conservadores, atinentes a uma “Ordem”; e o espírito de uma Ordem ou a sua aptidão/vocação específica não mudam em alguns anos, nem mesmo face a experiência de outras Forças Armadas (casos da Indochina e da Argélia, por exemplo). Ela transporta, como tudo o que é humano, a necessidade indirimível de sofrer a própria experiência em que, por vezes, naufraga. Lembremos, por exemplo, o comportamento do Estado-Maior francês perante os blindados em 1939/45: foi o General Guderian quem (muito tarde já!) o convenceu com o seu fulminante avanço Panzer, embora o General De Gaulle viesse, desde Coronel, repisando a imperativa necessidade de nova fisionomia da Cavalaria. Ao nível do Comando da Região Militar de Moçambique, decidiu-se compilar esses estudos no Supintrep N.º 22 “Populações de Moçambique” (8). Pretendia-se com este documento reunir elementos de História, características étnicas, ligações e dependências de países vizinhos, relações de interdependência e a atitude das populações face à subversão, procurando assim facilitar aos escalões subordinados o conhecimento sumário do factor população e a orientação de estudos de situação e do meio humano que fossem necessários elaborar (9). Estes estudos, feitos de forma atenta e cuidadosa, tinham pouco impacte e ressonância na rendibilidade das Operações (portanto ao nível táctico); parece que a Informação se perdia no trajecto das cúpulas para os Sectores e destes para os escalões inferiores (10). A divisão utilizada pelas autoridades portuguesas no planeamento e condução das operações, nomeadamente pela 2ª Repartição do Quartel-General da Região Militar de Moçambique e pelos Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique (11), tinha em linha de conta o princípio de que o estudo étnico de qualquer país não conduz a uma linha de acção estratégica clara, pelo que se torna necessário associar ao factor étnico o elemento linguístico. Isto, porque quase todas as etnias em África têm associada uma língua nativa, sendo que os grupos étnicos falam normalmente a língua do grupo, razão pela qual se designam por grupos etno-linguísticos. Na documentação oficial, os grupos etno-linguísticos aparecem-nos assim associados a uma concepção taxionómica, que impregna também uma concepção estatística; logo, uma visão para-convencional. A etnicidade era remetida para a reformulação conflitual, estratégica e táctica (12), sendo que a questão central desses conceitos residia no actor A condicionar, vantajosamente, a actuação do actor B, com vista à obtenção daquilo que desejava. No que se refere à conquista da adesão das populações, ao Poder português interessou esta divisão, na medida em que fosse passível de “(...) movimentação, com vista à manutenção do equilíbrio das forças que actuam no seio da população global (...)” (13), interessando sobretudo os grupos que se encontravam diferenciados, tendo por finalidade conhecer os seus antagonismos, com possibilidades de serem avivados, revividos ou fomentados. Naquela conjuntura, e noutras posteriores, os antagonismos eram passíveis de facilitar a manutenção da liderança pelo Poder instituído, sendo o inverso também verdade. Este fenómeno foi compreendido pelos movimentos independentistas, que procuraram promover a coesão, facilitadora da sua actuação (14). Numa perspectiva maximalista da estratégia, é irrealismo grave menosprezar as cadeias de comunicação que transcendem os espaços de identificação considerados clássicos. Estas cadeias funcionam como “(...) elementos integradores e, logo, como condicionantes ou indutoras de comportamento (...)” (15). Como as populações não absorveram (salvo raras excepções) a noção de espaço definido pelas fronteiras traçadas pós-Conferência de Berlim, mais de meio século passado sobre a delimitação, a migração clandestina era assegurada pelas ligações étnicas, clânicas e familiares, aquém e além-fronteiras; esses “canais” garantiam, no período de 1964-74, o escoamento de centenas de indivíduos para as minas do Rand (os Magaíças) por razões económicas, ou para os centros de recrutamento e preparação subversiva, na Tanzânia e na Zâmbia (16). Assim, foi importante a análise dos grupos etno-linguísticos com projecções transfronteiriças. Nos trabalhos de Intelligence realizados pelo Poder português, partia-se da premissa de que para o Negro , na maioria das vezes a fidelidade política estava relacionada com o parentesco, pelo que se estudavam as genealogias clânicas para se definir a afinidade potencial dos seus membros e o respectivo lugar na sociedade; no conhecimento dessas estruturas e dos seus elementos dominantes residia muitas vezes a chave da luta subversiva e contra-subversiva. Hierarquizavam-se as sociedades africanas em família, clã, tribo, subgrupo e grupo étnico ou ainda complexo étnico, diferenciando-se pelos caracteres históricos, biofísicos, psíquicos, sociais, políticos e linguísticos. Estes caracteres, indicativos de alteridades da organização social da população do território de Moçambique, permitiam inserir elementos numa etnia, povo, entre outras e, assim, caracterizá-los. A análise de documentação classificada da PIDE/DGS, SCCIM e 2ª Repartição do QG/RMM, mostra-nos essa preocupação pela etnometria , procedendo-se por diversos métodos a uma «arrumação» das chefaturas tradicionais, da classificação etno-linguística das populações e dos grupos permeáveis ou aderentes à subversão. As cartas étnicas elaboradas pelas diversas instâncias do Estado reflectem, por conseguinte, essa necessidade de «arrumação» para posterior tomada de decisões políticas, definições estratégicas e actuação sobre as populações. O recurso à utilização das autoridades tradicionais foi imprescindível para as partes em confronto, porque, em princípio, aquelas asseguravam o apoio popular. Não era crível que tais autoridades, por si só, representassem uma solução adequada para as partes, pois surgiam indivíduos decorrentes do processo de aculturação que aspiravam a participar na liderança, forçando a um ajustar das estruturas políticas tradicionais onde os mesmos fossem admitidos (17). Apesar do conhecimento dos movimentos independentistas e da sua doutrina, a reacção portuguesa, a despeito do grande e dilatado esforço, foi lenta nas aplicações adequadas à guerra revolucionária; confinou-se predominantemente à vertente armada da resposta (que, mau grado as formulações doutrinais em contrário nunca deixou de tratar como convencional). Atraíu com isso pesado ónus para a instituição militar, a qual, por sua vez, não o declinou de forma que abrangesse também todo o aparelho civil, pois responsável. Assumindo-se ingénua e imprudentemente sozinha no conflito, entrou na preocupação de não adquirir um desastre como o da Índia, não estimando que este último nada tinha a ver com os teatros de Angola, Guiné e Moçambique. No entanto, procurou sempre, na disputa pela população, preservar a que tinha sob seu controlo, dissociar o binómio população/inimigo e captar população sob duplo controlo, através de uma manobra global em que as acções social e psicológica desempenharam papel de certo relevo, embora muito insuficiente. Assim, o permanente contacto com as populações, por forma a exercer-se uma profunda acção psicológica e social e, quando necessário fosse, medidas de controlo, era especificado nas directivas portuguesas (18), sem embargo de faltas no “conhecimento de causa” e dos meios. |
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(1) Na Guiné e em Moçambique foram organizados ao nível do Comando-Chefe, Supintrep sobre as religiões e sobre as populações. Em Moçambique, também os Serviço de Centralização e Coordenação de Informações elaboraram estudos aprofundados sobre estas temáticas. (2) Depoimento do General Pedro Cardoso em 8 de Agosto de 1995. (3) Amaro Monteiro, Fernando, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964-1974)”, p. 303. (4) ASDHM, Freitas, Romeu Ivens Ferraz de, “Conquista da Adesão das Populações”. (5) ASDHM, Branquinho, José Alberto, Melo “Prospecção das forças tradicionais – Manica e Sofala”, Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique, Lourenço Marques, 1966, Secreto. (6) ASDHM, Quartel General da Região Militar de Moçambique, “Populações de Moçambique”, Supintrep n. º 22, Janeiro de 1967, Confidencial; Quartel General da Região Militar de Moçambique – Supintrep N.º 23, “Panorama Religioso de Moçambique”, Janeiro de 1967, Confidencial. (7) AHM, 2-7-138-2, Quartel General da Região Militar de Moçambique, “Relatório anual de comando da RMM”, 1965, Secreto. (8) ADIEMGFA, Quartel General da Região Militar de Moçambique, “Populações de Moçambique”, Supintrep N.º 22, Janeiro de 1967, Confidencial. (9) Idem. (10) Monteiro, Fernando Amaro, “O Islão o Poder e a Guerra (Moçambique 1964-1974)”, p. 204. (11) ADIEMGFA, Quartel-General da Região Militar de Moçambique, “Populações de Moçambique”, Supintrep N.º 22, Janeiro de 1967, Confidencial; Quartel-General da Região Militar de Moçambique - Supintrep N.º 23, “Panorama Religioso de Moçambique”, Janeiro de 1967, Confidencial; Freitas, Romeu Ivens Ferraz de, “Conquista da Adesão das Populações”, Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique, Lourenço Marques, 1965, Reservado. Os mapas com a distribuição dos grupos etno-linguísticos apenas significam que pelo menos 50% da população pertence ao grupo, uma vez que, não esqueçamos, existem interpenetrações entre grupos e tribos. (12) Serra, Carlos, “Sociologia política da etnicidade - Do paradigma actual ao ensaio de um novo paradigma”, Universidade Eduardo Mondlane, Centro de Estudos Africanos, 2º. Curso Aberto, 10 a 22 de Maio de 1996, Maputo, 1996, p. 2. (13) Freitas, Romeu Ivens Ferraz de, ob. cit., p. 68. (14) Idem, ibidem. (15) Monteiro, Fernando Amaro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de accionamento de massas”. Porto: Curso de 6 lições, Centro de Estudos Africanos da Universidade Portucalense, 1989, p. 10. (16) Já António Enes referia: "(...) dos Distritos de Inhambane e de Lourenço Marques emigram anualmente para as possessões inglesas e para o Transvaal dezenas de milhar de indígenas; emigram espontaneamente, e sujeitam-se lá a rigorosas disciplinas, cuja notícia não dissuade outros e outros de os imitarem. (...)". In Enes, António, "Moçambique", p. 25. (17) Freitas, Romeu Ivens Ferraz de, ob. cit., p. 60. (18) ADSHM, Quartel General da Região Militar de Moçambique, “Directiva N.º 8/68 (para a Actividade operacional no Distrito de Cabo Delgado)”, de 15 de Maio de 1968, Nampula, Secreto. |
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