A «presciência» ou «previsão» de Sun Tzu, a previsão referida em “O Príncipe” de Maquiavel e o conjunto de conhecimentos do inimigo que Clausewitz refere, são o demonstrativo da necessidade de se dispor de um eficiente serviço de informações, cuja existência tem de preceder a respectiva necessidade.
A actividade de informações envolve um complexo processo de definição e orientação do esforço de pesquisa, avaliação, análise, integração e interpretação das informações, que devem ser oportunas, precisas e adequadas.
Numa guerra de cariz subversivo/revolucionário, cuja organização é clandestina, onde é empregue uma diversidade de meios, e com a “(...) justaposição, em superfície, dessa organização com as forças da ordem e com a população (...)”(1) a torná-la mais complexa, a obtenção das almejadas notícias sobre o adversário torna-se mais difícil.
Na guerra revolucionária, o esforço de pesquisa deve ser orientado não só para o inimigo e para o meio, mas também para a população, o ambiente e o objectivo último na luta. Nas campanhas de África (1961-1974), esta pesquisa era efectuada a nível da companhia de caçadores que, no entanto, não tinha qualquer estrutura de informações, a nível orgânico, nem sensibilidade trabalhada para isso. Só a partir do Comando de Zona “(...) apareciam verdadeiras estruturas de informações (...)”(2).
A difusão das informações era feita a todos os escalões, acontecendo que os Supintreps (relatórios suplementares de informação), pelos conhecimentos essenciais que proporcionavam, contribuíram, em muito, para a captação das populações (3) que estavam sob influência preferencial dos movimentos independentistas.
Antes dos acontecimentos de 1961 em Angola, existiam diversos organismos que trabalhavam as informações, possuindo os diversos ministérios os seus serviços específicos. Contudo, o seu esforço era descoordenado e em sobreposição, induzindo muitas vezes o Governo Central, em erro, em relação a várias situações. Tendo em vista a adaptação às novas situações criadas, o alargar a outras áreas e “(...) ao reforço e à melhoria da coordenação e publicação de normas regulamentares e doutrinárias sobre a matéria (...)”(4), as estruturas dos Serviços de Informações sofreram várias alterações. Assim, quando do 25 de Abril de 1974, a situação, quanto a tais orgãos, era a seguinte (5):
- No Secretariado Geral da Defesa Nacional, a 2ª Divisão centralizava e coordenava a actividade dos SIM (Serviços de Informações Militares);
- No Ministério do Ultramar, o Gabinete dos Negócios Políticos (6) centralizava e coordenava as informações recebidas dos SCCI (Serviços de Centralização e Coordenação de Informações) das Províncias Ultramarinas. Encarregava-se do estudo dos problemas da política ultramarina, nos aspectos e implicações de ordem interna e internacional e da execução das missões, que lhes fossem determinadas pelo ministro, obtendo as suas informações dos SCCI e de outras fontes informais;
- No Ministério do Interior, estavam integradas as Forças Militarizadas e a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) (7), depois DGS (Direcção Geral de Segurança) (8). Esta última trabalhou sempre em competição com os Serviços de Centralização e Coordenação das Províncias Ultramarinas. Desta direcção-geral “(...) avultavam a qualificada informação estratégica e a detalhada informação táctica que fornecia às Forças Armadas (...)”(9).
- No Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Direcção Geral dos Negócios Políticos centralizava e coordenava as informações recebidas por via diplomática e consular.
Naquele período, tal como hoje, aqueles que têm de tomar as decisões dentro dos órgãos de soberania de que são os últimos responsáveis, necessitam de um organismo que centralize e coordene as informações dos vários serviços existentes e que elabore análises oportunas e prospectivas, sobre problemas ou atitudes que envolvam decisões àqueles níveis. Desta forma, evitar-se-á a dispersão.
Em Portugal, mesmo quando do final das campanhas, não existia, a nível do Governo Central, qualquer estrutura que centralizasse e coordenasse informações de interesse para a administração, defesa e política do país. Porém, a nível das Províncias, em 1961, pelo Decreto 43661, criaram-se os SCCI (em Angola e em Moçambique). A nível provincial, estes serviços constituíram “(...) uma pedra fundamental da conduta da política nacional e da guerra (...)”(10). Tinham como missão centralizar, coordenar, estudar, interpretar e difundir informações que interessassem à política, à administração e à defesa das respectivas províncias. Estes serviços faziam a análise das informações de carácter estratégico ou produziam estudos específicos. Efectuavam pesquisa na medida do indispensável exploratória (se urgente ou a requerer especial qualificação) do que sabiam pelas outras vias e aberta (raríssimas vezes coberta). A sua informação não se destinava ao aproveitamento operacional táctico. Todavia, estes serviços eram, em simultâneo, órgãos do Governo-Geral e do Comando-Chefe (com subordinação hierárquica e administrativa ao primeiro).
Na Guiné, apesar da proposta do Governador datar de 6 de Setembro de 1963, os SCCIG só foram organizados em 1969, ficando integrados na Divisão de Informações do Gabinete Militar do Comando-Chefe, com a finalidade de trabalhar as informações que a este interessavam, na sua dupla função de Governador e Comandante-Chefe.
Apesar de toda a estrutura de informações, montada e a funcionar, surgiam algumas falhas. Para Amaro Monteiro, elas deviam-se, quanto ao caso de Moçambique, a uma “(...) interacção de factores negativos (...)”(11), como o enfraquecimento sectorial da tónica estratégica, acentuada dualidade civil/militar, inadequada (senão ausente) coordenação do esforço de pesquisa e uma disfunção na análise global. A nível do esforço de pesquisa, eram necessários quadros informados sobre as estruturas clânicas e tribais das sociedades negras, para assim poderem accionar mecanismos de comunicação paralelos, ou convergentes, como as linhas de influência islâmica.
Estas falhas das estruturas de informação reflectiam-se negativamente na Apsic, quer em Moçambique, quer na Guiné. O referido analista crê que, até meados de 1972, apesar do Governo e Comando-Chefe da Guiné deterem conhecimento da importância do Islão naquele teatro, como demonstra o Supintrep nº. 11 (Religiões da Guiné), existia um desconhecimento completo dos conceitos. Este documento não reflectia a “(...) preocupação de elucidar as entidades intervenientes no domínio da Acção Psicológica quanto à malha de projecção/articulação (no terreno político-religioso interno/externo) dos dignitários islâmicos polarizadores (...)”(12), pelo que faltava “(...) no tratamento dos «mecanismos de comunicação» o estudo e a minúcia que visam a «reflexologia», enquanto sobrava o apelo daquelas medidas que, por sucessos momentâneos, podiam induzir a erro de análise (...)”(13).
Apesar das massas islamizadas se encontrarem controladas pelo Poder Português, carecia este último de deter o completo conhecimento da sua tessitura, nomeadamente a articulação e respectivo comandamento externo, não fossem estas, por qualquer motivo ou conveniência, inverter a sua posição perante a Administração Portuguesa.
Para a mobilização das comunidades muçulmanas é importante deter o seu estreito conhecimento. Mas a eficiente concepção e oportuno lançamento de operações de acção psicológica não o são menos. Assim, o Poder Português, não se podia permitir a erros, nem “(...) sobretudo hiatos no faseamento de operações congéneres (...)” (14), pois como não muçulmano poderia ver-se em situação de “réu” perante essas comunidades. O referido analista enunciou ao Ministro do Ultramar algumas sugestões para accionamento na Guiné, que julgamos ser do maior interesse passar a citar:
“(...)
III
1 - Arreigamento do sunismo (mesmo informado pelo substrato africano) em quanto não impeça integração nacional ou constitua obscurantismo aleatório e passível de exploração subversiva. Concomitantemente, medidas de cerceamento contra correntes progressistas ou arabistas (que, embora «reaccionárias», podem favorecer indirectamente as primeiras); bloqueamento de eventuais correntes cismáticas que, ao desenvolverem-se perante a neutralidade da Administração, poderiam provocar a exploração subversiva de ressentimento no meio da massa (sunita); afastamento discreto ou, pelo menos, controlo de quaisquer elementos suspeitos de progressismo, de arabismo ou de heterodoxia (encobertos ou declarados). Aproveitamento, para os fins indicados, da retracção sunita, face à «inovação escandalosa» (bid´a).
2 - Para apoio das medidas em III - 1 , divulgação de extractos da Selecção de «Hadiths» de El-Bokhari, podendo usar-se edição popular, em língua portuguesa, idêntica à patrocinada pelo Governo-Geral de Moçambique e dentro das mesmas coordenadas (utilizando e comprometendo pólos muçulmanos da Província na respectiva difusão).
3 - Tentar lenta e progressivamente uma «responsabilização» do muçulmano (a começar pelos dignitários mais em foco) perante a vida, contrariando o sentido de predestinação e esbatendo o de inacessibilidade divina, com exploração, para o efeito, da sura 50, v. 15/16, do Alcorão (Deus está mais próximo do homem «do que a sua veia jugular»).
4 - Procurar diluir o fanatismo (sem colidir com III. 1. e 2.), desenvolvendo a razoabilidade em matéria religiosa (v. Capítulos I, VI e VII da edição popular citada em III.2.).
5 - Explorar, lenta e progressivamente quanto, nos 93 versículos da cristologia corânica, não fira a dogmática católica: Jesus, o Messias, Verbo de Deus lançado em Maria e espírito emanente d´Ele (Alcorão, s. 4, v. 169/171); Jesus, assistido pelo Espírito Santo (s.2, v. 81/87; v. 254/253); Jesus anunciador do Evangelho de Deus (s. 5. v. 50/46; s. 43, v. 63); Jesus detentor da «Provas» e do apoio do «Espírito Santo» (s. 2, v. 81/87, v. 254/253); Jesus, Sinal do Fim (s. 19, v. 34/33; s. 45, v. 61); Jesus e a sua vitória sobre o Anti-Cristo (v. Cap. V da edição popular mencionada em III - 2). Evitar referências às demais passagens cristológicas.
6 - Explorar, lenta e progressivamente, a devoção mariânica do sunismo: Maria, seu nascimento e crescimento privilegiados (Alcorão, s. 3, v. 31/35 - 32/37); Maria subtraída ao contacto masculino e entregue ao sopro de Deus para gerar o Verbo e constituir com este um sinal para o mundo (s.21, v. 91; s. 23, v. 52/50); Maria abrigada no Alcorão contra considerações ultrajantes (s. 4, v. 155/156); Maria, a melhor das mulheres do mundo inteiro (v. Cap. II da edição popular referida em III. 2.). Acção especialmente incidente sobre mulheres Fulas e Mandingas («mulheres grandes»); tentar, posteriormente, promover a ida de pequenos grupos destas ao santuário de Fátima.
7 - Difundir programas de rádio de, pelo menos, três horas semanais (uma delas à sexta-feira quando da “Xhotba”), sempre iniciadas com a 2ª sura do Alcorão e explorando as emissões em bilingue (português e crioulo).
8 - Promover o ensino, pelo menos rudimentar, da língua portuguesa nas próprias escolas corânicas das áreas que maior representatividade apresentem nesse domínio;
9 - Caso surjam pedidos para abertura de escolas corânicas de nível superior ao habitual, tornar nelas obrigatório o ensino da língua portuguesa e de noções de História de Portugal, em paridade com as matérias religiosas. Simultaneamente, tentar introduzir o ensino das passagens explicitadas em III - 5 e 6 por sacerdotes ou leigos católicos, que dêem garantias de não provocar colisão psicológica.
10 - Diminuir o número de beneficiados pela peregrinação a Meca, em variante ascensional desde 1967.
11 - Controlar, periodicamente, a mutabilidade de articulações e linhas de influência, como as apontadas em II - 3 do presente relatório (15).
12 - Do ponto de vista religioso, não fazer, no domínio da Acção Psicológica, qualquer afirmação que possa constituir transigência perante o dogma do Islão (excepto o monoteísmo estrito) (...)” (16).
As análises desenvolvidas pelos diferentes departamentos de informações dos variados comandos e escalões “(...) foram sempre elaboradas com o objectivo de criar condições ao poder político para encontrar soluções político-administrativas e bases de negociação com os partidos, frentes e movimentos mais moderados e receptivos, para pôr fim à situação de intranquilidade pública e de guerra (...)”(17), como sucedeu na Guiné, com a iniciativa das autoridades locais e apoio de alguns países limítrofes.
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(1) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Subsídios para a Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974)”, pág. 155.
(2) Idem, pág. 159.
(3) Pedro Cardoso, “As Informações em Portugal”, pág. 189.
(4) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 368.
(5) Podemos consultar mais detalhadamente: Pedro Cardoso, “ As Informações em Portugal”, pág. 126; as obras da Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 369, e “Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África”, pág. 158.
(6) Gabinete dos Negócios Políticos, criado pelo Decreto Lei N º 44773, de 2 de Julho de 1967. Este gabinete possuía duas repartições, a dos negócios políticos e a de relações internacionais. Ver detalhadamente “As Informações em Portugal” de Pedro Cardoso, págs. 124 e 125.
(7) Decreto Nº. 35046, de 22 de Outubro de 1945. Esta detinha um estatuto de polícia judiciária para a repressão e prevenção dos crimes, no interior e exterior do Estado, sob a dependência do Ministério do Interior.
(8) Decreto Lei Nº. 49401, de 19 de Novembro de 1969. Tinha por missão proceder à recolha e pesquisa, centralização, coordenação e estudo das informações úteis à segurança, manter relações com organizações policiais nacionais e estrangeiras e serviços similares, para troca recíproca de informações e para a coordenação na luta contra a criminalidade.
(9) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 279.
(10) Pedro Cardoso, “As Informações em Portugal”, pág. 115.
(11) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 280.
(12) Idem, págs. 282 e 283.
(13) Idem, pág. 283.
(14) Idem, pág. 296.
(15) A este propósito, cf. com o capítulo III - 4 deste estudo, referente à articulação e linhas de influência exteriores.
(16) Fernando Amaro Monteiro, Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar, “Linhas de Influência e de Articulação do Islão na Guiné Portuguesa, Sugestões para Apsic”, Relatório para o Ministro, Secreto, Lisboa, 16 de Junho de 1972.
(17) Pedro Cardoso, “As Informações em Portugal”, pág. 189. |