Para além das religiões tradicionais, todas as outras existentes em África são produto de importações. Destas salienta-se o Islamismo que, entre outros factores, foi imposto sobretudo pela guerra ou pela acção do comércio e acabou por se sobrepor ou aculturar, pois “(...) comporta a visão africana do mundo, que o Cristianismo e o laicismo ocidental têm tendência a destruir (...)” (1).
O primeiro império, na África Ocidental, de que há conhecimento histórico, é o Império animista do Ghana, que se formou no século IV e vigorou até ao século XI, estendendo-se do Oceano Atlântico ao Alto Níger. Este império floresceu pelo comércio de ouro transaariano e pelo monopólio da exportação do sal para os países do Norte de África.
Na segunda metade do século XI, Ibn Yassin, um pregador muçulmano, instalou-se na costa da Mauritânia, onde fundou um convento, e aí vivia rodeado dos seus discípulos, conhecidos por Almorávidas. Tornando-se numerosos e fortes, “(...) aumentados de elementos vindos de Tekrour (vale do rio Senegal) (...)”(2), os Almorávidas iniciaram a sua expansão para Sul, submetendo primeiro as tribos berberes da Mauritânia e depois destruindo e islamizando o Ghana, no século XI. A população do Ghana, uma vez islamizada “(...) à força e pela persuasão (...), passou a promover a muçulmanização das gentes dos territórios confinantes (...)”(3). Os Almorávidas expandiram-se também para Norte, tomaram conta de Marrocos e invadiram parte da Península Ibérica, onde tinham ido em socorro do Califa de Córdova. Constituíram, assim, um império hispano-africano. O seu poderio desfez-se em pouco tempo, reconquistando o Ghana a sua independência, mas já o proselitismo religioso almorávida tinha tomado a dianteira dos exércitos.
No século XIII, entre o Senegal e a Nigéria, começa a surgir um novo império, o do Mali ou dos Mandingas, que substitui o do Ghana “(...) após o declínio e eclipse deste Estado nas mãos Almorávidas (...)”(4); foi fundado por Sundiata Keita. Tinha o seu centro político no Alto Níger, zona originária dos Mandingas e, por capital, Niani. A Sundiata sucedeu o Imperador Mansa Oulin (1307-1332) que, com o seu exército submeteu e conquistou numerosos países vizinhos. A disponibilidade em ouro permitiu que Mansa Oulin efectuasse uma faustosa peregrinação a Meca, onde “(...) distribuiu quantidades de ouro em abundância (...)”(5). Este Império, que dominou desde o século XIII toda a vasta região que se estende do Atlântico até para lá de Niani, encontrando-se já fortemente islamizado (6), entra em decadência no século XV, acabando por desaparecer no século XVII.
Quando da desagregação do Império do Mali, os Mandingas espalharam-se pelas margens do Gâmbia, Casamansa e, mesmo pelo Futa-Djalon. Admite-se que, na fase inicial, apenas alguns chefes migrantes se encontravam convertidos ao Islamismo (7).
De acordo com o estudo comparativo das fontes disponíveis, é provável que os Mandingas se tenham estabelecido na Guiné entre os séculos XIII e XV, dado que, “(...) quando da chegada dos portugueses, já os Mandingas ocupavam e dominavam em toda a região, desde o estuário do Gâmbia até ao fundo do canal do Geba, tendo atingido, assim, a sua máxima expansão para Oeste (...)”(8). Permaneceram sob a autoridade do Imperador do Mali até à queda deste Império, altura em que se tornaram um reino independente.
No reinado de Mansa, o Império do Mali absorveu o reino Songhay. Contudo, no século XV, o Rei Songhay, Sonni Ali-ber (1464-1492), que foi sobretudo um lutador, conquistou a independência e as maiores cidades do Mali, Tombuctu e Djenne.
O seu filho Bokar foi destronado por Mamadu Turé que fundou uma nova dinastia, a de Askia Mohamed (1493-1529), cujas conquistas se estenderam, a oeste, até ao Senegal, isolando o que restava do Império do Mali; a leste, submeteu parte do reino Haussa e apoderou-se de Agadés. Como não dispunha da “(...) autoridade religiosa tradicional, que era ligada à dinastia nacional (...)”(9), procurou compensar esta fraqueza apoiando-se no Islamismo; em 1495 efectuou uma peregrinação a Meca, onde foi nomeado Califa, obtendo assim posição superior à de todos os reis muçulmanos da região sudanesa. Mandou construir inúmeras mesquitas, desenvolveu o ensino e Tombuctu transformou-se numa grande cidade universitária. Este Império com a sua “(...) esfera de influência muçulmana foi, por sua vez, totalmente destruído pela abortada tentativa marroquina de controlo directo sobre o Sudão Ocidental, no século XVI (...)”(10).
Todos estes impérios foram substituídos por um novo Poder, o dos Fulas, que se estendeu por áreas imensas, desde o Senegal até para leste do Chade. Coli Tenguêlá partiu do Futa-Djalon em direcção ao Futa-Toro (vale do rio Senegal), atravessando a actual Guiné-Bissau, onde foi derrotado pelos Beafadas, que o forçaram a retirar-se para Norte; aí fundou “(...) um poderoso estado de Fulas pagãos (...)”(11). É provável que a instalação dos primeiros Fulas no território date desta época.
No século XVIII, os Tocolores do Futa-Toro, conquistados pelos Fulas pagãos, revoltaram-se e organizaram-se numa “(...) confederação feudal e teocrática, sob a presidência de um Almami (...)”(12). Estes Tocolores, em contacto permanente com as confrarias Tidjanya e Qadiriya, tornaram-se fervorosos propagandistas, convertendo ao Islamismo os Jalofos, a Oeste. Aos Fulas, seus vizinhos, souberam mostrar com habilidade “(...) todas as vantagens que poderiam auferir da guerra santa (...)”(13), acabando também estes por se converter.
Os Fulas iniciam no século XVIII uma invasão, a partir do Futa-Toro em direcção ao Sul, fundando estados teocráticos no Futa-Djalon (1728), Futa-Toro (1776) e no Bundou, nos quais desempenharam o papel duma aristocracia dominante (14). No decorrer deste século, processa-se ainda a “(...) unificação política e religiosa do Futa-Toro e do Futa-Djalon, sob a égide do Islamismo (...)”(15). O território do maciço do Futa-Djalon foi dividido em 9 províncias ou “diwal”. Uma vez consolidado o domínio Fula no Futa-Djalon, “(...) os agentes do Islão lançaram as suas vistas para os «infiéis» das zonas periféricas (...)”(16), até ao território da actual Guiné-Bissau, situada sob a alçada do “diwal” de Labé.
Al-Hajj Omar Tal, Marabu tocolor, autoridade máxima tidjani na região, inicia em 1860 uma guerra santa contra os pagãos, conquistando e destruindo o reino Bambarã. Depois dirigiu as suas ambições para o Senegal, onde chocou com a resistência conjunta dos franceses e dos chefes tocolores. Por fim, voltou-se para o reino Fula de Macina (muçulmanos quadiristas), em combate com os quais veio a encontrar a morte, em 1864 (17).
A ocupação do Futa-Djalon pelos franceses e do Gabú pelos portugueses, na transição do século XIX para o actual, veio pôr cobro a estas “guerras santas” e, provavelmente, evitou um Império Fula, do Atlântico ao Chade (18).
Na Guiné, os Fulas do território derrotaram os Mandingas, que aqui entraram pela região do Gabú, empurrando para o litoral alguns povos de religião tradicional. Os Fulas, povo de nómadas pastoris, pagavam tributo aos Mandingas; para conseguirem superar tal domínio, pediram auxílio aos seus irmãos do Futa-Djalon (19), a troco da promessa do cumprimento mais rigoroso dos preceitos islâmicos. As incursões fulas prosseguiram em direcção ao sul do Gabú e ao Oio, com o intuito de submeter Beafadas e Soninqués. Os 20 anos de luta no Forriá (1868-1888), quer por ambições e ódios entre facções, quer por dominação sobre outra etnia, foram no seu autêntico significado uma “guerra santa” para implantar a religião islâmica em todo este sector do ocidente africano, saindo vitoriosos o Islamismo e o domínio político Fula (20).
Na Guiné, como em toda a África Negra, o expansionismo muçulmano teve condições favoráveis para a sua progressão devido à receptividade decorrente de alastrar, afinal, ao encontro de elementos comuns à maioria dos paganismos locais: a concepção alargada da família; a força vital (de valor concentrado em pontos essenciais, fazendo lembrar a baraka muçulmana); os antepassados, hierarquicamente concebidos; as lideranças político-religiosas a funcionarem como elos de coligação entre os vivos, os mortos e a Natureza; a educação colectiva marcada pela iniciação (no Islão, prática simétrica da circuncisão); o princípio da reciprocidade das relações e as configurações da regra taliónica; a permissividade poligâmica; a justificação do individual em exclusiva função do comunitário; o associativismo de base religiosa (a projectar-se nas confrarias muçulmanas, sucedâneo natural) (21).
Podemos considerar que o facto de a Administração Portuguesa ter maior deferência para com os chefes tradicionais islamizados (de onde lhes veio um aumento de prestígio) é exemplo de que a progressão do Islamismo, na África Ocidental, foi considerada como favorecida pela acção colonial.
Teixeira da Mota considera que na Guiné Portuguesa “(...) a acção portuguesa, sem que tal tivesse sido previsto, contribuiu substancialmente para que, em meio século, fossem islamizados muitos mais indígenas do que os que, em cinco séculos, se conseguiu cristianizar (...)” (22). A pacificação do território também proporcionou que a islamização avançasse com maior velocidade e segurança (23). Os comerciantes, nomeadamente os Djilas (comerciantes ambulantes), que percorrem todo o interior do Continente, são apontados como responsáveis pela propagação do Islamismo; com o território pacificado, podiam circular livremente levando consigo o Islamismo que transmitiam aos povos ainda não convertidos; infiltrando-se “(...) no seio das tribos, habituam os negros aos seus produtos, falam-lhes da cidade santa (Meca) e do esplendor da peregrinação, vendem-lhes as jilabas e turbantes, pouco a pouco, estabelecem-se com certa demora, ensinam os autóctones a ler o árabe, fornecem-lhes o Corão, enfim, actuam sobre eles, persistentemente, até os atraírem em definitivo à lei de Mafoma (...)” (24). Podemos, então, dizer que a progressão do Islamismo, proveniente principalmente do norte do Saara em direcção ao sul, “(...) foi facilitada pelo facto de o comércio e os movimentos da população se terem efectuado no mesmo sentido (...)” (25), ou seja, a religião acompanhou o comércio.
Paralelamente aos comerciantes, os religiosos muçulmanos, como Chernos, Talibés, Almamis, Ualiós, e as elites governantes convertidas, desempenharam, de igual forma, importante papel na propagação do Islamismo. Os marabus, fervorosos propagandistas, são, segundo Sousa Franklin, “(...) porta vozes autorizados das últimas novidades internacionais (...)”(26). Na Guiné Portuguesa, como depois na República da Guiné-
-Bissau, à semelhança de toda a África Ocidental, passaram a poder efectuar as suas deslocações livremente, promovendo, em simultâneo, a assistência religiosa e a realização de grandes proventos (27). O Islão, uma vez adoptado, fornecia às chefias tradicionais alguns meios e instrumentos ideológicos muito úteis para reforçar, e mesmo justificar, a sua posição.
Considera-se que a islamização da África Negra também foi, sobretudo depois do século XVIII, obra das confrarias (28), que tiveram, e continuam a ter, um papel fundamental na disseminação do Islamismo, na Guiné-Bissau em particular, e na África em geral. Para muitos africanos o tornar-se muçulmano é entrar para uma confraria; nelas “(...) encontram, por vezes, um lenitivo para as suas tradicionais sociedades secretas, por várias razões extintas ou em vias de extinção (...)” (29).
Outro factor com um importante papel na difusão do Islamismo, em África, terá sido o desenvolvimento dos modernos meios e métodos de comunicação, que permitiram levar o Islamismo até aos mais recônditos locais (30).
As escolas corânicas desempenharam um papel essencial na propagação e protecção do Islamismo, na preservação da identidade islâmica e na criação de uma contra-cultura. O seu principal objectivo continua a ser a integração do indivíduo na sociedade islâmica; “(...) difundindo os valores de base do Islão, o ensino muçulmano é assim por excelência um agente de sociabilização num sistema social que se reclama da religião do Profeta (...)”(31).
Na Guiné, o ensino nestas escolas é ministrado quer numa “morança” quer ao ar livre, consistindo numa aprendizagem do Alcorão em Árabe verbalmente, ou através da sua escrita numa pequena tábua, para, posteriormente, os alunos poderem decorar os versículos que repetem “infinitamente”. Mas, muitos não chegavam sequer a aprender a ler e escrever. Hoje, já não é assim, pois ao lado da escola corânica, de tipo tradicional, desenvolveu-se um ensino modernizado, onde o estudo do Alcorão não é o único objectivo da formação. Surgem outras disciplinas para aquisição de conhecimentos, como a aritmética, a gramática e a literatura. Sucede, porém, que em muitos locais a pedagogia se mantém inalterada, continuando a memória a ser o principal instrumento de aprendizagem e a escrita apenas um meio auxiliar.
Na Guiné, até 1974, facilmente se constatava que não era feita a avaliação dos conhecimentos sobre o conteúdo do texto corânico. Alguns crentes sabiam recitar a Sura al-Fathia e outras, em Árabe, desconhecendo no entanto o seu conteúdo e ignorando também a escrita árabe. Esta situação foi parcialmente alterada (por exemplo em Quebo), com a introdução de escolas da cultura islâmica, onde a língua árabe é ensinada em moldes pedagógicos e didácticos mais correctos. Ao dar entrada na escola, a criança aprende a Sura al-Fatiah, seguidamente as suras do fim, e só depois aborda as suras do início do Livro. O nível elementar é ministrado por um mestre escola (Caramô), pago com o trabalho dos alunos em seu benefício (trabalho doméstico e cultivo dos campos), sendo o nível máximo (saber o Alcorão de cor) atingido ao fim de 8 ou 9 anos de ensino. Contudo, na maior parte dos casos, as crianças memorizam apenas alguns capítulos e essa será toda a sua “bagagem”, ou seja, aprendem pelo menos os ensinamentos fundamentais da fé e, mesmo que por ventura venham a esquecer parte do que aprenderam, conservarão sempre dentro de si o suficiente para se manterem convictos da pertença a uma comunidade que se glorifica de pautar a sua conduta pela revelação corânica.
Alguns Mandingas e Fulas de Bafatá (sobretudo régulos e chefes) enviavam os seus filhos para Bissau para, sob a orientação de Caramôs, prosseguirem os estudos islâmicos, ensino este realizado em regime nocturno, dado que, durante o dia, era a escola portuguesa a frequentada. O estudo da “Ciência da Lei” (Fiqh) fica apenas reservado a uma elite que prosseguirá os seus estudos nos grandes centros intelectuais do Islão, como Al-Azhar, no Egipto. Esta minoria que frequenta os estudos superiores, na maioria das vezes faz parte do grupo de dirigentes sociais.
Os povos islamizados ofereciam alguma resistência às escolas coloniais, pois estas, contrariamente às escolas corânicas (32), não libertavam as crianças para o trabalho nos campos e a educação não era completada em casa, conduzindo, assim, a uma ruptura cultural.
A pacificação abateu as fronteiras tradicionais e permitiu um fecundo contacto entre os diversos grupos étnicos, impondo-se alguns pela transmissão da sua cultura. Podemos, assim, considerar que a propagação do Islamismo na Guiné, foi também o resultado de acções desenvolvidas pelos grupos étnicos islamizados, relativamente aos grupos étnicos adeptos das religiões tradicionais. Essas acções ficaram conhecidas por Fulanização, Mandinguização e Sossização (33), que não são mais do que fenómenos aculturativos, assumindo uma nomenclatura correspondente ao núcleo étnico dominante na aculturação.
Os Mandingas da antiga Guiné Portuguesa, dado que nunca tiveram “(...) uma organização militar eficiente para dominar e converter os animistas (...)”(34), islamizaram essencialmente por métodos pacíficos e de dominação cultural, pelo casamento e pelo comércio, podendo considerar-se tal islamização como uma endemia latente. Todavia, o seu proselitismo, mais brando e tolerante do que o Fula, concorreu para uma adesão mais profunda. A islamização dos Mandingas (Mandinguização) coincide, mais ou menos, com o apogeu do império do Mali, tendo aí sido iniciada a sua acção catequizadora sobre as etnias de religião tradicional. Destes grupos, uns ofereceram pouca resistência à sua actividade, como foram os casos evidentes dos Balantas da região norte (adoptando estes a designação de Balantas Mané) e dos Manjacos da região de Pelundo. Aqui, o fenómeno ocorreu, talvez, entre 1919-1921, com a intensificação da migração de elementos desta etnia para o Gabú.
A conversão de alguns Manjacos ao Islão cresceu por influência do Régulo de Pelundo, Vicente Cacante (educado entre Fulas e Mandingas, no Gabú), pelo que os filhos de muitos elementos desta etnia, à semelhança de alguns Fulas e Mandingas, se deslocavam a Gabú ou a Bissau para frequentarem as escolas corânicas, em simultâneo com as portuguesas. Apesar da influência Fula, como a grande maioria dos nomes são de origem Mandinga, consideramos que estas conversões resultaram mais de uma Mandinguização.
Outros grupos étnicos houve, como os Pajadincas, Tandas, Felupes e Baiotes, que ofereceram uma grande resistência à conversão e (35) cuja grande maioria ainda hoje se mantém adepta da religião tradicional.
A Mandinguização acabou por ser substituída pela designada Fulanização, que pode ser traduzida nas palavras de um antigo Governador da Guiné Portuguesa, o então Capitão de Fragata Sarmento Rodrigues: “(...) Aonde não chegou a força da guerra, foi o artifício. Os Fulas introduziram-se primeiro como criados e servidores, foram-se alargando em número e importância; impuseram-se no princípio pela superioridade de espírito e, no momento preciso, de armas na mão, transformaram os senhores em seus escravos (...)”. Estes senhores eram os Mandingas que, no dizer do autor citado, foram catequizados pelos seus escravos, os Fulas, “(...) a golpes de espada, porque de outra forma não se resolviam a deixar de ser bebedores (...)”; afirma, ainda, que “(...) os Fulas avassalaram toda a faixa do interior, catequizando os nossos Mandingas (...) e outras raças, «virando» os Beafadas, seduzindo os Nalús e empurrando para o mar os mais impenitentes (...)”(36).
A este propósito, José Júlio Gonçalves acrescenta: “(...) a difusão do Islamismo resulta, em parte, do desejo de ascender socialmente. Com efeito, os animistas, olhando a cultura dos Fulas, lançam-se à sua conquista, uma vez que esta lhes parece, pelo menos exteriormente, superior e não se lhes nega, em termos terminantes, por ser acessível, terra a terra, adaptável e adaptada ao meio ambiente (...)”(37).
Os Fulas iniciaram a islamização dos Beafadas e dos Nalús. Sucede, porém, que a influência sobre estes últimos acabou por ser substituída pela dos Sossos, apesar de os mesmos serem uma minoria. A acção exercida pelos Sossos foi de tal maneira activa que terá mesmo conduzido a uma despersonalização dos Nalús, acabando estes por, inclusivamente, adoptarem a própria língua sossa (38).
O Islamismo, que em numerosos aspectos é facilmente compatível com as religiões tradicionais e com os costumes sociais africanos, expandiu-se ao sul do Saara. Como vimos, a propagação islâmica, na Guiné-Bissau, não foi regular nem uniforme. No conjunto do território, o número de muçulmanos crescia e desenvolvia-se para o litoral, a um ritmo seguro. Assim, evoluiu até à pacificação de Teixeira Pinto. A partir daqui, o fenómeno aparece associado à acção de catalisadores bem explícitos: o comércio e o casamento, o aumento da alfabetização, a vulgarização do rádio portátil, mas também por “(...) factores mais difíceis de definir, tais como a necessidade psicológica de segurança e a atracção universal da fé islâmica (...)” (39).
Toda esta complexidade causal levou a relacionamentos rápidos e intensos, colocando as estruturas tradicionais das sociedades nativas em dilemas e opções forçosas num processo aculturativo que, na Guiné, no período em apreço (1963-74), coincide com o processo da guerra e “(...) induz à «nacionalidade de recurso», pela inserção na malha enquadrante ou periférica das Confrarias (...)” (40).
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(1) Hatim M. Amiji, “ La Réligion dans les Rélations Afro-Arabes: L´Islam et le Changement Culturel dans L´Afrique Moderne”, pág. 118, em “Les Rélations Historiques et Socioculturels entre L´Afrique et le Monde Arabe de 1935 à nos Jours”, Unesco, Paris, 1984.
(2) PAIGC, ob. cit., pág. 29.
(3) José Júlio Gonçalves, “O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português”, pág. 107, Estudos de Ciências Políticas e Sociais, nº.10, Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigação do Ultramar, Ministério do Ultramar, Lisboa, 1958.
(4) Ioan M. Lewis, “O Islamismo ao Sul do Saara”, pág. 34, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1986.
(5) PAIGC, ob. cit., pág. 33. Segundo António Carreira, “(...) conta-se que em 1324-1325, empreendeu uma peregrinação a Meca, fazendo acompanhar-se de cerca de sessenta mil pessoas, entre as quais quinhentos escravos carregados de ouro em barra e em pó (...)”. Em “Mandingas da Guiné Portuguesa”, pág. 15, Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, nº. 4, 1947.
(6) José Júlio Gonçalves, “O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português”, pág. 108.
(7) António Carreira, “Evolução do Islamismo na Guiné Portuguesa”, pág. 407, em BCGP, vol. XXI, nº. 84, Outubro de 1966. António Carreira distingue para os Mandingas da Guiné Portuguesa três agrupamentos étnicos: Mandingas propriamente ditos (islamizados), Soninkés (feiticistas), e Djilás. Em ob. cit., pág. 421. Ver também do mesmo autor, “Mandingas da Guiné Portuguesa”, pág. 8.
(8) Teixeira da Mota, ob. cit., pág. 155. Sobre este assunto podemos consultar, entre outras, diversas obras de António Carreira e a História da Guiné-Bissau, publicada pelo PAIGC.
(9) PAIGC, ob. cit., pág. 36.
(10) Ioan M. Lewis, ob. cit., pág. 34.
(11) Teixeira da Mota, ob. cit., pág. 156.
(12) Hubert Deschamps, “Les Religions de l´Afrique Noire”, pág. 82, Coll. Que sais-je? - Presses Universitaires de France, Paris, 1965.
(13) Teixeira da Mota, ob. cit., pág. 158.
(14) PAIGC, ob. cit., págs. 82 e 85.
(15) António Carreira, “Duas Cartas Topográficas de Graça Falcão (1894-1897) e a Expansão do Islamismo no Rio Farim”, pág. 192, em “Garcia da Horta”, vol. II (nº2): 189 a 212, Lisboa, 1963.
(16) Idem, “Evolução do Islamismo na Guiné Portuguesa”, pág. 415.
(17) Hubert Deschamps, ob. cit., pág. 83.
(18) Sobre este assunto podemos consultar as obras de Teixeira da Mota, António Carreira, Hubert Deschamps e a História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde, citadas na bibliografia.
(19) De acordo com António Carreira, que transcreve um relatório do ano de 1887 do concelho de Geba, onde se diz: “(...) a tribo Fula-preta (...) esteve até 1869 escravizada por Mandingas bebedores/Sonínqués/; porém nesta data revoltou-se contra os seus senhores e coadjuvada pelos Fulas do Futa, expulsou aqueles e assenhoreou-se de todos os territórios compreendidos entre os rios Corubal e S. Domingos (...)”. E acrescenta o referido analista: “(...) a guerra durara de 1863- 1865 a 1869. Este último ano marca, pois, o início do domínio Fula - em algumas zonas Fulas-pretos e noutras Fulas-fôrros (...)”. Em “Evolução do Islamismo na Guiné Portuguesa”, pág. 406.
(20) Idem, pág. 431.
(21) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 94.
(22) Teixeira da Mota, ob. cit., pág. 256. Ver mais detalhadamente a opinião de Ioan M. Lewis, ob. cit., pág. 130
(23) José Júlio Gonçalves refere, na obra “O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português”, algumas causas de sucesso do islamismo na África a sul do Saara, entre as quais destacamos: o uso da força, o prestígio do balandrau, o contraste entre a discriminação racial e o igualitarismo étnico exibido pelos muçulmanos, o Alcorão como elemento unificador dos povos islâmicos e a sua inteligibilidade antre a mentalidade dos negros africanos, a coincidência de algumas instituições, a existência de centros de difusão do Islamismo, a peregrinação, a acção islamizadora de comerciantes e marabus; págs. 67 a 86.
(24) José Júlio Gonçalves, “O Islamismo na Guiné Portuguesa (Ensaio Sociomissionológico)”, pág. 20, Lisboa, 1961.
(25) Ioan M. Lewis, ob. cit., pág. 32.
(26) A. de Sousa Franklin, “A Ameaça Islâmica na Guiné Portuguesa”, citado por José Júlio Gonçalves, em “Política de Informação (Ensaios)”, pág. 148, Estudos de Ciências Políticas e Sociais, nº. 61, Lisboa, 1963.
(27) Adriano Moreira, “As Elites das Províncias Portuguesas de Indigenato (Guiné, Angola, Moçambique)”, em “Ensaios”, pág. 61, Estudos de Ciências Políticas e Sociais nº. 34, Junta de Investigação do Ultramar, Lisboa, 1960.
(28) Hubert Deschamps, ob. cit., pág. 87.
(29) José Júlio Gonçalves, “O Islamismo na Guiné Portuguesa (Ensaio Sociomissionológico)”, pág. 162.
(30) De acordo com o Supintrep nº.11 “Religiões da Guiné”, as emissoras de radiodifusão dos países islamizados transmitiam programas em que eram recitados versículos do Livro Sagrado com a finalidade de propagar o conhecimento e de divulgar o seu conteúdo. Era este o caso das rubricas religiosas incluídas na programação da Rádio Senegal, que, no dia 1 de Outubro de 1971, num total de 20 horas de emissão, cerca de 30% (seis horas e cinco minutos) foi ocupado por estas rubricas, demonstrando-se, assim, o cuidado posto pela divulgação do conteúdo do Alcorão e do Islamismo:
09h05 às 10h00- Passagens do Alcorão;
12h45 às 13h30- Transmissão da oração pública de sexta feira;
13h30 às 15h00- Cânticos religiosos muçulmanos;
15h05 às 16h00- Idem;
16h05 às 16h20- Leitura de passagens do Alcorão;
21h40 às 22h55- Idem.
(31) Christian Coulon, ob. cit., pág. 89. O estudo da evolução do número de escolas corânicas, existentes na Guiné-Bissau, não pode ser rigoroso, porque, para o período em apreço, as fontes dão números muito diferenciados. Para Teixeira da Mota, no ano 1954, prefaziam um total de 436. O mesmo analista considera que as escolas para menores estão distribuídas da seguinte maneira:
Gabú-112, Farim-103, Bafatá-97, Fulacunda-52, Mansoa-36, Catió-26, Bolama-3, Bissau-3, Cacheu-3, S. Domingos-1, perfazendo um total aproximado de 5000 alunos.
Aquele analista considera ainda que existem 50 centros de cultura islâmica para adultos, local onde é aperfeiçoado o ensino recebido. Em Teixeira da Mota, ob. cit., págs. 111 e 112.
De acordo com o Supintrep nº. 12, o número de escolas apuradas em Julho de 1971 é:
Concelho |
Nº de Escolas |
Nº de Alunos |
Bafatá |
211 |
3242 |
Bissau |
25 |
575 |
Bissorã |
8 |
48 |
Bolama |
5 |
83 |
Catió |
24 |
351 |
Mansoa |
13 |
204 |
Em 1971, são apenas registadas 286 escolas, para um número de alunos de 4503; ou seja, o número de escolas é significativamente diferente, apesar de em Bafatá, por exemplo, ter passado para mais do dobro de escolas em apenas 17 anos. Em Mansoa o número caiu para metade no mesmo período de tempo. Contudo, o número de alunos não se alterou significativamente. No entanto, comparando qualquer das fontes com os dados disponíveis relativamente às escolas coloniais de ensino primário, a desproporção não é tão grande como poderia parecer.
(32) Sobre este assunto podemos consultar Christian Coulon, ob. cit., págs. 97 a 119.
(33) Referimos estes três fenómenos, uma vez que foram os respectivos grupos étnicos, mais islamizados, que os desenvolveram.
(34) António Carreira, “Evolução do Islamismo na Guiné Portuguesa”, págs. 408, 413 e 435.
(35) José Júlio Gonçalves, “O Islamismo na Guiné Portuguesa (Ensaio Sociomissionológico)”, pág. 169.
(36) Sarmento Rodrigues, “Os Maometanos no Futuro da Guiné”, em BCGP, págs. 224 e 225, nº. 9, Janeiro de 1948.
(37) José Júlio Gonçalves, “O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português”, pág. 160.
(38) Comando-Chefe da Guiné, “Religiões da Guiné”, Supintrep nº. 11.
(39) Hatim M. Amiji, ob. cit., pág. 111.
(40) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 97.
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