FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA
Os movimentos independentistas,
o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

Capítulo II - Os movimentos independentistas
Na ÁFRICA NEGRA E EM ESPECIAL NA GUINÉ PORTUGUESA

4.1. - Apoio de organizações internacionais

Em 12 de Dezembro de 1965, pela Resolução A/2105(XX) da Assembleia Geral, no quadro de acção que visava a aplicação da Resolução A/1514(XV), foi proclamada a legitimidade da luta dos povos sob dominação colonial, e a Resolução 2107(XX) da mesma Assembleia foi específica para os povos de territórios sob Administração Portuguesa; nesta Resolução, é feito ainda um apelo para que todos os Estados, através da OUA, prestem auxílio político, moral e material aos povos em luta nesses territórios. A esta Resolução da Assembleia Geral várias outras com a mesma orientação, se lhe seguiram (1).

As Nações Unidas, ao reconhecerem a legitimidade da luta armada e ao legalizarem a ajuda, contribuíram de uma forma significativa para a causa dos movimentos em questão.

Paullette Mathy, a este propósito, refere: “(...) L´importance des résolutions de l´Assemblée Générale réside dans le fait qu´elles ont conféré à la reconnaissance de cette légitimité et au droit des peuples en lutte à recevoir toutes formes d´aide et d´appui une porté universelle (...)”(2).

Dentro deste contexto, vejamos o apoio prestado pela OUA.

A Carta da ONU escolhe os acordos regionais como forma de solução pacífica de conflitos (3) ou como forma de organização do Mundo. A Carta da OUA, assinada em 25 de Maio de 1963, em Addis-Abeba, segue o enfiamento lógico e doutrinal da Carta da ONU; segue, também, logicamente, o seu conceito de estratégia, hoje maximalista. Esta Carta mostra uma especial preocupação face ao conceito de Paz, mas também perante os de Defesa e de Segurança.

A problemática moderna alargou muito o conceito de Defesa, pois o conceito de Guerra também foi ampliado. Podemos dizer que se inverteu a máxima clausewitziana e que a política passou a ser a continuação da guerra por outros meios. Nesta ordem de ideias, modificaram-se os conceitos de Defesa e Segurança. Hoje em dia, Defesa significa Segurança alargada, e alargada a todos os domínios. Assim, a guerra trava-se na política, na economia, na diplomacia, nos transportes e comunicações, na educação e na cultura, na saúde, no ambiente, na ciência e na técnica. Esta preocupação sente-se na Carta da OUA, nomeadamente desde o seu Preâmbulo ao seu Artº. 3º.

No Preâmbulo da Carta, decorrendo da noção que as potências participantes têm sobre as vulnerabilidades nacionais, provocadas pelas suas fronteiras, traçadas a régua e esquadro, portanto, artificiais, encontra-se expressa uma vincada preocupação: “(...) reforçar a compreensão entre os nossos povos e a cooperação entre os nossos Estados, a fim de corresponder às aspirações das nossas populações (...)”(4). Note-se que não é, por acaso, a distinção entre povos, Estados e populações. A este propósito questionamo-nos se com povos, ali, se quererá dizer nações! porque nem sempre, na maioria dos casos de África, há uma justaposição entre povo/nação, muito embora os governos e regimes saídos dos movimentos independentistas pugnem pelas suas identidades nacionais. No Preâmbulo avulta ainda a preocupação de unidade que transcenda “(...) divergências étnicas e nacionais (...)”.

Pensamos ser possível chegar a uma conclusão, a propósito de divergências étnicas e nacionais: a guerra revolucionária lançou “a posteriori” o anátema sobre aquilo que ela manipulou com perícia: os mecanismos de comunicação já referidos por nós, que fogem ao controlo rigoroso do Estado, pois anteriores à formulação das fronteiras e subsistentes posteriormente, o sócio-religioso e o étnico.

Esses mecanismos foram manipulados com toda a subtileza pela subversão em marcha e pela guerra revolucionária. Manipulados e simultaneamente anatematizados, em relação ao futuro, dada a preocupação preambular da Carta da OUA, em “(...) salvaguardar e consolidar a independência e a soberania duramente conquistadas, bem como a integridade territorial (...)”. Assim, de acordo com o Artº. 2º, “(...) os Estados Membros coordenarão e harmonizarão as suas políticas gerais (...)”, onde se inclui a Defesa e Segurança.

O nº. 5 do Artº. 3º da Carta da OUA diz: “(...) condenação sem reserva do assassinato político, bem como das actividades subversivas(...)” (Em nenhuma outra Carta se diz isto), “(...) exercidas por um Estado vizinho ou quaisquer outros Estados (...)”. A Carta, datada de 1963, mostra que há consciência da parte dos Estados Africanos e que o processo de combate, em que eles próprios são parte interveniente, carece de “saber como” e de especificidades que podem, no amanhã, voltar-se contra quem as acciona. Não esqueçamos que a guerra revolucionária é uma operação técnica que envolve X componentes, Y linhas de actuação, mas que visa uma globalidade, a globalidade revolucionária.

A Carta traduz o receio do uso de santuários e das cadeias informais de comunicação, já referidos, uma vez que esses são vulnerabilidades a eventuais manipulações. Quando apoiam movimentos independentistas, os Estados Membros da OUA têm consciência que accionam, directa ou indirectamente, ingredientes melindrosos. Por isso, a preocupação de uma Defesa/Segurança tão alargada que os conduziu a, por escrito, contemplarem o fenómeno subversivo, reconhecendo, assim, também a especificidade e a densidade dos terrenos humanos sobre que assentam. As preocupações espelham ainda, para os Poderes Estatais, o desiderato de um dinamismo que antecipe as situações.

Se nos reportarmos ao que foi referido no início deste capítulo, percebemos o porquê do apelo ditatorial, numa urgência de tentar encontrar e mesmo promover as quatro acções oportunas na resposta à guerra subversiva e, sobretudo, à guerra revolucionária, quando declarada (como veremos, no capítulo IV, mais detalhadamente): a resposta social, poltico-administrativa, militar e a psicológica. Estas respostas têm de ter uma coordenação muito estreita de tal forma que, como referimos anteriormente, só o Poder totalitário pode dá-la e, mesmo assim, com dificuldade o consegue fazer. As disposições cautelares da Carta da OUA procuram fazer a profilaxia da corrosão dos próprios poderes formais.

O nº. 6 do Artº. 3º refere a “(...) dedicação sem reserva à causa da emancipação total dos territórios africanos ainda não independentes (...)”, sendo, nesse espírito, que, em Rabat, no decorrer da Nona Conferência da OUA, de 12 a 15 de Junho de 1972, foi decidido que os participantes aumentariam em 50% o fundo especial de apoio ao Comité de Libertação (5). Em 19 de Maio de 1973, o Conselho de Ministros da Organização aprovou a “nova estratégia para a libertação de África”, preparada em Janeiro de 1973, em Accra, pelo Comité de Libertação.

O documento elaborado em Accra, baseado na declaração de Mogadiscio, em 1971, que referia ser a luta armada o único meio para libertar a África Austral, acrescenta que essa mesma luta armada devia ser considerada como um “todo indivisível” e que convinha coordenar as actividades dos diversos “movimentos de libertação”, propondo mesmo a criação de frentes unidas e a repartição do seu auxílio aos movimentos de libertação, sendo que ao PAIGC competiam 25% do total dos fundos disponíveis (6); mesmo depois do PAIGC ter autoproclamado a independência e a Guiné (agora Bissau) ter sido admitida na OUA, os apoios desta organização não cessaram. Assim, na 22ª Sessão do Conselho de Ministros, de 1 a 5 de Abril de 1974, foi adoptada uma Resolução em que foi estabelecida a quantia de 450 mil dólares destinados ao “Fundo para a Consolidação da Independência da Guiné-Bissau” (7).

O maior auxílio que os movimentos subversivos africanos receberam não foi o da ONU nem o da OUA; estas organizações tiveram uma inegável importância, pois concederam aos movimentos a necessária internacionalização política, sem a qual dificilmente sobreviveriam. No entanto, no campo prático, ou seja, no que se refere ao treino militar, fornecimento de armas, equipamentos, medicamentos, etc., o auxílio bilateral é que permitiu a manutenção dos movimentos.

 

(1) Podemos consultar para mais detalhes as Resoluções da Assembleia Geral da ONU: A/2107(XX), A/2184(XXI), A/2270(XXII), A/2395(XXIII), A/2507(XXV), A/2795(XXVI), A/2918(XXVII).

(2) Paullette Pierson Mathy, ob. cit., pág. 51.

(3) Artigo 52º da Carta da ONU.

(4) O sublinhado é nosso.

(5) Nesta reunião foram adoptadas diversas resoluções, sendo de salientar:

  • O pedido a todos os países africanos para cortarem relações com Portugal;
  • O pedido a todos os países, em especial aos da NATO, para que suspendam o fornecimento de material de guerra ao Governo Português por o mesmo facilitar o regime colonial em África;
  • A rejeição da reforma constitucional, através da qual Portugal promete conceder maior autonomia aos territórios africanos;
  • O pedido à CEE para que não estabeleça qualquer acordo com Portugal, enquanto este mantiver as suas colónias;
  • A condenação da construção da barragem de Cabora-Bassa e Cunene e o pedido a todos os países para retirarem rapidamente a sua comparticipação na realização desses projectos.

O orçamento da Comissão de Libertação passou assim de 72.500 contos para 132.000 contos. Em Comando-Chefe das Forças Armadas de Angola, “Perintrep nº 825”, Reservado.

Das intervenções realizadas destacam-se a do representante do Congo, que preconizou a criação de “Brigadas Internacionais” para apoiar a acção dos movimentos de libertação africanos, a de Amílcar Cabral que referiu a organização de eleições nas áreas libertadas. O Rei Hassam II de Marrocos, em 16 de Junho, na qualidade de Presidente em exercício da OUA, deu uma conferência de Imprensa em que:

  • Pediu aos países africanos limítrofes dos territórios a libertar que aceitassem servir de bases para as operações dos movimentos de libertação, aceitando os inconvenientes dessa situação: direito de perseguição e de represálias;

Afirmou que, se um movimento de libertação quer ser verdadeiramente formado e organizado, tem de constituir um Governo, no exílio, com os seus Ministros e Primeiro Ministros, pedindo o reconhecimento “de jure” ou “de facto”, não somente dos países africanos, mas também do´s países amigos. Em “Relatório de Situação 514”, Serviços de Coordenação e Centralização de Informações de Angola, Secreto, Julho de 1972.

(6) O designado Comité dos 17 sugeria ainda que: a OUA prestasse assistência aos “movimentos de libertação”, reconhecidos por aquela organização, por um período indeterminado. A cessação de assistência quando:

  • Um movimento se revelasse mais potente do que outros que actuam no mesmo território. Neste caso, apenas aquele será reconhecido pela OUA, não recebendo os outros qualquer auxílio da organização;
  • Não haja sido criada qualquer “frente unida” e nenhum movimento que actue nesse território prove a sua supremacia sobre os outros.

A repartição do auxílio pelos movimentos de libertação seria: 25% FRELIMO, 30% comando unificado MPLA/FNLA, 10% SWAPO, 5% ANC e PAC, 5% outros movimentos. Em “Actividades da OUA”, Direcção Geral de Segurança-Guiné, Informação nº 568 - 2ª DI, Reservado, 26 de Maio de 1973.

(7) Serviços de Coordenação e Centralização de Informações de Angola, “Relatório de Situação 625”, Secreto, Abril de 1974.

 
 

 




 



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