Bandung foi o motor de arranque para modificações profundas e irreversíveis da própria estrutura da Sociedade Internacional. Esta será o marco do aparecimento formal do Terceiro Mundo com “(...) uma unidade ideológica (...)”(1). A transposição desta ideologia para a acção prática originou o neutralismo africano. Esta política, orientadora dos povos afro-asiáticos, recém nascidos para a vida internacional, estabelecia o seu anti-colonialismo.
Para Franco Nogueira, o neutralismo era uma atitude “(...) oportunista e pragmática que lhe permitia tomar, em cada momento, a posição que mais conviesse aos seus interesses imediatos, o seu apoio era moeda de troca por concessões a extorquir (...)”(2). Porém, Adriano Moreira recorda que o facto destes povos se terem apercebido do seu alto valor pela adição a qualquer um dos blocos ultrapassou a anterior situação de “(...) equilíbrio da impotência (...)”(3).
A consolidação, em paralelo, do terceiro mundismo, do neutralismo e do não-alinhamento, após a II Guerra Mundial, assenta:
“(...)
a) sobre uma consciência de subdesenvolvimento, aliada à da potencialidade virtual em matérias primas e/ou em posições geo-estratégicas;
b) sobre consciências culturais;
c) ou sobre a progressiva constatação de b) e os decorrentes esboços de alternativa (...)”(4).
Os objectivos desta primeira Conferência do Terceiro Mundo, já definidos no ano anterior em Bogor, são conjunturais (5). No entanto, havia um objectivo comum: a necessidade de afirmação da independência, dado que esta representava “(...) a tomada de consciência dos povos da Ásia, quanto ao seu valor, como ainda o reconhecimento da necessidade de uma solidariedade activa com os de África (...)”(6).
No comunicado final da Conferência é consagrado o dever de todos os povos libertados ajudarem os ainda dependentes a alcançar a sua soberania. Foi aí também considerado o colonialismo como um mal ao qual era preciso pôr fim rapidamente, uma vez que a sujeição dos povos à exploração estrangeira constituía uma negação dos direitos humanos elementares e era contrária à Carta das Nações Unidas (a que a Conferência aderia inteira e plenamente), bem como à Declaração Universal dos Direitos do Homem (7).
Bandung previa, no seu encerramento, a realização de uma Conferência no Cairo. Esta realizou-se entre 26 de Dezembro de 1957 e 1 de Janeiro de 1958 e veio marcar a primeira grande afirmação da presença do neutralismo. A URSS, que fora condenada em Bandung pelo seu colonialismo, vai aparecer na Conferência do Cairo “(...) bem colocada para manobrar todo o mundo emergente (...)”(8), alcançando grande prestígio. Como o Egipto, nessa altura, era caucionado por Moscovo, o neutralismo traduzia uma aproximação ao sovietismo.
Nkrumah, Chefe do Governo do Ghana, que em 6 de Março de 1957 proclamara a independência do seu país, vendo inicialmente em Nasser um papel útil para o suporte na luta contra o colonialismo, apoia-o, mas, retomando a ideia da Negritude, vai depois procurar distanciar-se e transferir para a África Negra a direcção surgida e tutelada em Bandung.
O movimento afro-asiático articula-se com o anti-colonialismo, com base no princípio da autodeterminação, procurando encaminhar para a emancipação imediata todos os povos de cor vinculados, politicamente, à Europa.
Ao movimento e ao sentimento com ele articulado podemos ir buscar as origens de vários acontecimentos em África e na Ásia, assim como a sua actuação, em bloco, na ONU. Podemos, então, ligar a este movimento o Pan-Africanismo, iniciado por Henry Silvester Williams, no início do século, e cuja influência se manifestou sobretudo depois da Conferência de Bandung.
O Pan-Africanismo, apesar de poder apresentar uma pluralidade de manifestações, não deixa de revestir uma certa unidade, no tocante à sua coerência de pensamento (9). A primeira tónica será a do Pan-Africanismo, de cariz racista, com expressão no chamado “sionismo negro”, do qual o demagogo Marcus Garvey foi o expoente máximo. Por seu turno, o Pan-Africanismo, antes de assumir uma forma predominantemente política, passou por uma fase cultural cuja manifestação mais vigorosa se encontra no conceito de “Negritude”, lançado em meados dos anos trinta por Leopold Senghor e Aimé Césaire.
O Dr. Du Bois, considerado o pai do Pan-Africanismo político, baseando-se numa teoria segura - a igualdade entre raças - realizou cinco congressos entre 1919 e 1945. No termo da guerra de 1914-1918 fez um apelo aos Aliados, no sentido de não restituírem as colónias conquistadas à Alemanha, para, desta forma, ali se estabelecer “(...) uma nação negra sobre controlo da SDN (...)”(10). Após a assinatura do armistício, tendo como base os princípios formulados por Wilson, apresenta uma petição às potências vencedoras para a adopção de uma Carta dos Direitos Humanos destinada aos Africanos. Assim, em 19 de Fevereiro de 1919, organizou o primeiro Congresso Pan-Africano, ao qual se seguiram mais quatro (11), tendo os primeiros quatro um impacto limitado, pois deles não resultou nenhuma realização concreta (12).
Destacamos pois as reivindicações emanadas do quinto Congresso que, contrariamente aos outros, apresentou um recrutamento de bases. Nele surgiram pela primeira vez reivindicações para uma independência imediata, completa e absoluta dos povos de territórios dependentes. Esta diferença de bases sociais deu um novo impulso ao Pan-Africanismo, que deixava para trás a moderação e o idealismo para, finalmente, entrar nos caminhos da acção directa, através de métodos de resistência (ainda) não violenta. Neste Congresso, em Manchester, o quadro da África Negra aparece ultrapassado, uma vez que os congressistas reivindicaram também a independência da Argélia, Tunísia e Marrocos.
Quanto ao caso português, emergindo da Junta de Defesa dos Direitos de África (1912), surgiu em Lisboa a “Liga Africana”, no ano de 1919, que originou em 21 de Março de 1921 o “Partido Nacional Africano”. Mas só no ano de 1931 foi possível fundar o “Movimento Nacional Africano”, com o objectivo de unir todos os africanos portugueses. Até aí, “(...) apesar das divergências e do maior radicalismo do Partido Nacional Africano, existiu sempre unanimidade em lutar pela causa africana dentro da Nação Portuguesa e nunca pela separação de qualquer parcela ultramarina (...)”(13).
Podemos considerar que o “africanismo”, até ao início dos anos sessenta, andou a reboque do “asiatismo”; mas o ímpeto do Pan-Africanismo, apesar de refreado, não desapareceu. Assim, em Abril de 1958, realizaram-se duas conferências, uma em Tânger e outra em Accra. Da primeira destacamos o facto de o princípio da luta subversiva ter sido admitido; “(...) podemos mesmo dizer que foi adoptado, ainda que os comunicados o não digam (...)”(14). Da segunda - a 1ª Conferência de Estados Africanos Independentes, que decorreu entre 15 e 22 de Abril de 1958, - destacamos na Declaração Final, a fidelidade à Carta das Nações Unidas, à Declaração Universal dos Direitos do Homem e à Declaração da Conferência de Bandung, denotando, deste modo, um forte sentido de unidade em relação ao Ocidente, unidade esta que assenta na própria unidade do Continente que tinha em comum a sujeição colonial, no passado, e uma “(...) determinação de evitar aderir a qualquer bloco (...)”(15).
De 25 a 27 de Julho de 1958, realizou-se o Congresso de Cotonou com a intenção de constituir o Partido do Reagrupamento Africano. Mas as palavras de ordem acabaram por ser “independência imediata” e “Estados Unidos de África”. Os delegados do partido reclamavam “(...) a supressão de todas as fronteiras estabelecidas após o Congresso de Berlim de 1885, para que os povos africanos pudessem unir as suas «complementaridades» (...)”(16) e manifestaram vontade de concretizar a união do Cairo a Joanesburgo, ideia original de Cecil Rhodes, no século passado, mas com diferentes fundamentos. Neste Congresso, o conceito de Pan-Africanismo não se exprime justaposto ao de “Negritude”(17); o que estava em causa eram “(...) eixos estratégicos, interesses multinacionais que flanqueavam os antigos poderes formais e, com isso, projectos de assimilação ou hegemonia política a situar fora dos limites culturais da «Negritude», como ela se definira e na prática recusara, por via de assimilação cultural, ao Ocidente colonizador (...)”(18).
Na segunda Conferência de Accra, de 6 a 13 de Dezembro de 1958, designada agora por “1ª Conferência dos Povos Africanos”, o Presidente Nkrumah dita quatro fases a serem observadas na luta por uma África unida:
“(...)
1) Obter a vossa liberdade e a vossa independência;
2) Consolidá-las;
3) Criar a unidade e a comunidade dos Estados livres de África;
4) Proceder à reconstrução económica e social do continente africano (...)” (19).
No final da Conferência, foram adoptadas três resoluções que, com base no direito dos povos disporem de si mesmos, visavam encorajar os movimentos independentistas em toda a África. Após estas duas Conferências em Accra, a discussão passa a pôr em causa a própria presença do homem branco no Continente.
A segunda Conferência de Estados Africanos Independentes decorreu de 4 a 8 de Agosto de 1959, em Monróvia, tendo sido adoptadas quatro resoluções; a quarta proclamou o direito à autodeterminação dos territórios coloniais.
A segunda Conferência dos Povos Africanos, realizada em Tunes, de 25 a 31 de Janeiro de 1960, contou com a presença de representantes de Angola; Holden Roberto, presidente do movimento independentista União dos Povos de Angola (UPA), esteve presente e reivindicou a independência para Angola, num quadro africano, solicitando, ainda, que fosse inscrito na XV sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas o problema do Ultramar Português.
Destacamos apenas mais uma Conferência, uma vez que nos parece do maior interesse para o tema em análise: a terceira Conferência dos Povos Africanos, realizada em Março de 1961, no Cairo, onde a “(...) independência de todas as possessões portuguesas foi reclamada (...)”(20) o que denota uma evolução em relação a Bandung, onde nada de concreto fora deliberado em relação aos territórios portugueses.
A aspiração dos povos afro-asiáticos à independência não foi realizada só pelas Conferências Africanas; um “(...) suporte jurídico e um grande apoio político (...)”(21) foi conseguido nas Nações Unidas.
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(1) Adriano Moreira, “A África e o Ultramar Português na Conjuntura Internacional”, pág. 6, em “Conferências Proferidas em 1958/59”, 1º vol., Instituto de Altos Estudos Militares, Lisboa.
(2) Franco Nogueira, “O Juízo Final”, pág. 180.
(3) Adriano Moreira, ob. cit., pág. 6.
(4) Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 15.
(5) Charles Zorgbibe, “L´après Guerre Froide dans le Monde”, pág. 13, Col. Que sais-je?, Presses Universitaires de France, Paris, 1993.
(6) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 48.
(7) Podemos consultar mais detalhadamente o comunicado final da Conferência, Secções de “Direitos do Homem e Autodeterminação” e “Declaração dos Problemas dos Povos Dependentes”.
(8) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, ob. cit., pág. 49.
(9) Sobre este assunto podemos consultar a obra de José Eduardo dos Santos, “O Pan-Africanismo”, págs. 25 a 69, Edição do Autor, Lisboa, 1968. Outra obra também de referência será “Le Panafricanisme”, de Phillippe Decraene, Col. Que sais je? Presses Universitaires de France, Paris, 1959.
(10) Phillippe Decraene, ob. cit., pág. 17.
(11) Os restantes Congressos realizaram-se, respectivamente, em: Londres, 1921; Bruxelas e Paris, 1923; Nova Iorque, 1927; Manchester, 1945.
(12) António José Fernandes, “Relações Internacionais - Factos Teorias e Organizações”, pág. 217, Editorial Presença, Lisboa, 1991.
(13) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 44.
(14) Jean La Couture, «Le Monde» - 5 de Maio de 1958, citado por Adriano Moreira, em “A África e o Ultramar Português na Conjuntura Internacional”, pág. 8.
(15) Adriano Moreira, “A África e o Ultramar Português na Conjuntura Internacional”, pág. 9.
(16) Phillippe Decraene, ob. cit., pág. 47.
(17) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 222.
(18) Idem, pág. 221.
(19) António José Fernandes, ob. cit., pág. 219.
(20) Phillippe Decraene, ob. cit., pág. 56.
(21) António José Fernandes, ob. cit., pág. 158. |