FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA
Os movimentos independentistas,
o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

CAPÍTULO I - Os grandes poderes mundiais e a África Negra subsequente à Conferência de Berlim
6. - O período anti-colonial na Organização das Nações Unidas

O princípio da autodeterminação dos povos firmado, durante e no termo da II Guerra, “(...) tem relevância na política internacional desde a proclamação da Independência dos Estados Unidos da América (...)” (1), a 4 de Julho de 1776, e vai aparecer explicitado no nº. 2 do Artº. 1º e no Artº. 55º da Carta das Nações Unidas, apesar da missão sagrada de civilizar os povos que ainda não tivessem “(...) atingido a plena capacidade de se governarem a si mesmos (...)”(2). É importante salientar, sem embargo, que a Carta faz referência a um princípio e não a um direito.

O desejo de libertação dos territórios subjugados pela Alemanha entre 1939-1945 e o “permitir-lhes” uma “livre escolha” de instituições e forma de governo deu um novo impulso ao ideário da autodeterminação. Este rapidamente se generalizou e passou a ser reclamado para territórios situados fora da Europa.

O Velho Continente estava enfraquecido pela guerra e emergiam para a vida internacional “(...) um conjunto de países e forças que até então sempre tinham sido mudos porque por eles falava a potência colonizadora (...)”(3). Situados na África, na Ásia e na América Latina, constituíram um grupo de pressão que, com a sua expressão permanente na ONU, e com uma conduta política internacional submetida a padrões comuns (4), se bateu por abolir no mundo aquilo que subsistia de situações coloniais.

Após o colapso das potências do Eixo, emergiam também na cena mundial, mas de forma simétrica, duas superpotências: os EUA, a liderar progressivamente todo o Ocidente democrático/parlamentar, e a URSS, marxista-leninista, a controlar, após Yalta, toda a Europa Oriental; criaram-se dois blocos com as respectivas zonas de influência - a anglo-saxónica e a soviética -, que vão disputar o controlo das áreas geopoliticamente importantes, bipolarizando-se o mundo. Ambos eram “anti-colonialistas”: os EUA, “(...) por tradição histórica e por motivos de ordem ideológica (...)”(5), de natureza económica e política; e a URSS por questões doutrinárias e de táctica política. No entanto, na Assembleia Geral, existiam mais grupos anti-colonialistas: os Escadinavos por razões económicas; os Afro-Asiáticos, que são, “(...) acima de tudo anti-ocidentais (...)”(6)(será um anti-colonialismo sentimental); os Latino-Americanos, porque ex-colonizados por Espanha e Portugal e pelo facto de a Europa ainda possuir alguns territórios coloniais na América Latina (por exemplo, as ilhas Falkland que, na década de oitenta, conduziram a um conflito armado entre a Argentina e a Inglaterra); outros ainda, como o Líbano e o Irão, por disciplina de blocos.

No fundo, o anti-colonialismo surgiu por motivos rácicos, económicos ou ressentimentos com origem em submissões seculares, forjando-se, assim, a política anti-colonial nas Nações Unidas.

Chegava-se ao fim do período dos povos colonizados pelos ocidentais que, entretanto, se independentizaram. Mas por que não se levantou nunca a questão da autodeterminação dos povos da Ásia Central, em regime de “telecomando” colonial da URSS, assim como não se levantaram contestações a que o Hawai e o Alasca fossem integrados nos EUA? (Atente-se na importância geo-estratégica dos territórios de ambas, nas referidas condições).

Por um feixe de razões de ordem histórica, política, ideológica e estratégica, as superpotências foram as grandes vitoriosas de 1945. Todo o movimento das autodeterminações anti-coloniais do século foi função do interesse dominante destas. Convém ainda notar que a política de descolonização inscrita na Carta da ONU teve a definição que foi imposta por essas superpotências, mas não foi aplicada naquela parte do mundo que não pertencesse, “(...) de acordo com as intenções iniciais, à zona de exclusiva influência e expansão de cada uma delas (...)”(7).

Após Bandung, o apoio das Nações Unidas às independências foi dado expressamente em 14 de Dezembro de 1960, quando a Assembleia Geral, através da Resolução A/1514 (XV), adoptou uma Declaraçãom (8) (Declaração anti-colonialista), inicialmente proposta pela Guiné-Conacry, apresentada pela Rússia e exponenciada pelos afro-asiáticos, segundo a qual a independência é um direito que deve ser obtido de imediato. Com esta Resolução, passou-se do princípio ao direito, ligando-se de forma definitiva a ideia de autodeterminação ao processo de descolonização.

Para a Organização das Nações Unidas, todos os povos tinham o direito à livre determinação. Contudo, nunca conseguiu definir o que entende por “povo”. Não tendo em linha de conta referenciais objectivos, ignorou a preparação e o grau de maturidade (tendo por padrão a cultura ocidental) das populações abrangidas, nos territórios em causa, para a independência. Não reclamou qualquer consulta democrática às mesmas para ajuizar sobre as suas intenções. Desencadearam-se as independências atendendo apenas à opinião de uma elite ocidentalizada, e praticando-se a transferência do Poder directamente para um dos movimentos independentistas. Assim, é muito difícil sustentar outra conclusão que não seja a de que foram os territórios e não os povos que constituíram a preocupação motora do processo e que o objectivo não foi a livre determinação, mas sim expulsar as soberanias europeias (9).

Será que foi no espaço de nove anos, desde a assinatura da Carta das Nações Unidas à Conferência de Bandung, que os povos aprenderam a governar-se por si próprios, ou aprenderam de repente? Ou teria, assim, a colonização de um só país sido substituída por um colonialismo de organização? (10)

A composição da Assembleia Geral foi grandemente alterada com a admissão dos novos Estados. Os seus votos, com igual peso ao das velhas nações, puderam influir, de acordo com os interesses do momento, nas decisões tomadas pela Assembleia Geral, com todas as consequências daí advindas. O emergir do neutralismo africano, que trouxe mais benefícios aos novos Estados do que o alinhamento declarado, proporcionou-lhes, assim, uma importância política, a nível internacional, que passou a ser crescente e decisiva.

O ataque a Portugal iniciou-se em 14 de Dezembro de 1955, quando da sua admissão às Nações Unidas, sendo questionado se possuía algum território ao abrigo do Artº. 73º. A resposta negativa do Governo Português levou ao desencadear de Resoluções que, excedendo o espírito e a letra da Carta (11), procuraram provar a existência de territórios coloniais e inclusivamente, em 1973, que a situação criada pelas operações militares deveria ser considerada como uma ameaça à paz e à segurança internacionais, bem como um crime contra a Humanidade (12).

Perante a resistência portuguesa, fundamentada nos textos constitucionais e na Carta, a Assembleia Geral, através da Resolução A/1467 (XIV), de 12 de Dezembro de 1959, decidiu criar uma comissão especial de seis membros (13), destinada a estudar os princípios em que se deveriam basear todos os membros para elaborarem os relatórios solicitados no Artº. 73º da Carta.

Esta comissão elaborou um relatório - Relatório dos Seis - no qual foi enunciada a obrigatoriedade de prestar informações sobre todos os territórios declarados pela Assembleia como territórios não autónomos (a esta competia essa missão), sendo, apriori, não autónomo todo aquele que estivesse separado geograficamente e possuísse uma distinção étnica e cultural da do país administrante. Atente-se que a diferenciação étnica e cultural existe, ainda hoje, em muitos outros Estados Independentes, como admite a OIT, na sua Convenção nº 107, já referida anteriormente (parece-nos que assim se reconhece a situação colonial em Estados Independentes).

No dia 15 de Dezembro de 1960, foram aprovadas, na Assembleia, as Resoluções (14) A/1541 (XV) e A/1542 (XV), onde foi clarificada a classificação de colonialismo, aplicável aos territórios portugueses em África.

A Assembleia, com o objectivo de administrar e de vigiar a execução rápida da Resolução A/1514 (XV), criou a Comissão dos Dezassete (15) que insistia na necessidade de se entender o direito à autodeterminação no contexto colonial, podendo, assim, impôr às potências colonialistas as medidas que estas não tomassem por sua própria iniciativa. Consideramos que a Organização, “(...) avançando nos seus intentos e principalmente através do comité dos 17 e da IV Comissão, controlou a actividade colonizadora dos governos (...)”(16), e que o instrumento principal da linha efectivamente seguida foi a IV Comissão que, de acordo com Adriano Moreira, ocupando-se da descolonização, “(...) sustentou que lhe pertencia identificar e extinguir todas as relações de dependência colonial (...)”(17).

Quando do despoletar da subversão activa, na baixa do Cassange e no Catete, em Angola, as Forças Armadas já tinham iniciado a alteração do dispositivo militar (18). Informações veiculadas pela CIA (classificadas de muito seguras), de que a UPA (União dos Povos de Angola), com o objectivo de chamar a atenção para a questão de Angola, nas Nações Unidas, decidira provocar incidentes no distrito do Congo, na noite de 15 de Março, foram passadas ao gabinete do Ministro da Defesa Nacional. O Quartel General da Região Militar de Angola terá sido, imediatamente, avisado.

O texto é arquivado com a justificação de que o assunto já era do conhecimento do comando.

Segundo Pedro Cardoso, então Director do Centro de Informação e Turismo de Angola, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) “(...) estava com as atenções voltadas sobretudo para o MPLA, subestimando a UPA (...)”, e acrescenta que a situação era, “(...) globalmente, calma (...)”(19). As informações iam funcionando. Faltava, porém, um órgão centralizador para que estas fossem estudadas, interpretadas e, oportunamente, difundidas para uma conveniente aplicação no terreno.

 

(1) Adriano Moreira, “A Autodeterminação e a Guerra Fria”, pág. 9, Lição proferida na Universidade do Porto, no Centro de Estudos Universitários, em 16 de Dezembro de 1963. De acordo com este analista, “(...) o problema da autodeterminação e da guerra fria situa-se justamente numa zona em que o conflito pode eventualmente ser substituído pelo entendimento, sempre que os interesses se definam em relação a zonas marginais para onde os poderes em conflito desejam expandir-se (...)”. Em “A Autodeterminação e a Guerra Fria”, pág. 8. Mas para Sir Ralf Dahrendorf, “(...) a autodeterminação, é, na melhor das hipóteses, um direito de segunda classe, muito abaixo dos direitos civis, políticos e sociais da cidadania (...)”, considerando que, provavelmente, não será um direito mas sim uma reivindicação feita “(...) por líderes populistas que talvez levem os seus povos para a sociedade aberta, mas que com igual probabilidade, substituíram a servidão a estrangeiros pela tirania política (...)”, como foi o caso da Guiné-Bissau. Mas este analista considera ainda a autodeterminação nacional como uma das “(...) invenções mais infelizes do Direito Internacional (...)”, uma vez que ela, em vez de atribuir os direitos aos indivíduos, os atribui aos povos, situação que conduz a um convite aos “(...) usurpadores a reivindicarem esse direito para os povos em cujo nome falam, enquanto, ao mesmo tempo, esmagam minorias e às vezes, os direitos civis de todos (...)”. Em “Reflexões Sobre a Revolução na Europa”, pág. 148, Gradiva, Lisboa 1993.

(2) Artº 73º da Carta das Nações Unidas.

(3) Adriano Moreira, “Teoria das Relações Internacionais”, pág. 425.

(4) Idem, ibidem.

(5) Silva Cunha, “O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, pág. 11.

(6) Franco Nogueira, “Portugal Ultramarino Perante a ONU”, pág. 63.

(7) Adriano Moreira, “Da Conferência de Berlim de 1885 ao Moderno Anticolonialismo”, em “Legado Político do Ocidente: O Homem e o Estado”, pág. 155. Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Lisboa, 1995.

(8) Resolução A/1514 (XV), “Declaração para a Independência aos Povos e Países Coloniais”. A Assembleia Geral da ONU declarou que a “(...) sujeição dos povos ao domínio e à exploração estrangeira, nega os direitos fundamentais do Homem, é contrária à Carta das Nações Unidas e compromete a paz e a cooperação mundiais (...)”, pelo que devem ser tomadas “(...) medidas imediatas nos territórios sob tutela, não autónomos, e em todos os outros que ainda não tenham obtido a independência, para transferir todos os poderes para os povos desses territórios, sem nenhuma condição nem reserva, conforme a sua vontade e os seus votos livremente expressos e sem nenhuma distinção (...)”. Acrescenta ainda “(...) todas as acções armadas como medidas repressivas directamente contra povos dependentes devem cessar (...)”. Esta Resolução foi aprovada por 89 votos a favor, 0 contra e 9 abstenções, entre estas está a abstenção de Portugal. A sua génese encontra-se nas Resoluções da Conferência de Bandung.

(9) Adriano Moreira, “Ciência Política”, pág. 356, Livraria Almedina, Coimbra, 1995.

(10) Franco Nogueira, “ As Nações Unidas e Portugal”, (Estudo), pág. 61, Ed. Ática, Lisboa, 1961.

(11) Manuel Gonçalves Martins, “A Descolonização Portuguesa (as responsabilidades)”, pág. 94. Para Adriano Moreira, “ (...) quer pela prática adoptada de perguntar aos Estados se administram territórios não autónomos, quer pela atitude assumida ao tomarem simplesmente nota dos territórios que os Estados declararam estarem nessas condições, implicitamente se admitiu que só cada Estado é competente para determinar a natureza dos seus territórios e para averiguar se se encontram em condições de prestar as informações previstas no capítulo XII (...)” em “Ensaios”, pág. 90 e 91. Franco Nogueira acrescenta: “(...) A constituição portuguesa não reconhecia a existência de territórios não autónomos, e não era lícito que algumas partes dessa Nação tivessem um determinado estatuto internacional e outras partes um estatuto diferente. Ora apenas os Governos podiam interpretar e aplicar as suas próprias constituições, e o Governo Português negava às Nações Unidas a menor competência na matéria. (...) As Nações Unidas não tinham competência para analisar as constituições nacionais, nem discuti-las (...) O Artº. 73º, ao prever a prestação de informações pelos países que quisessem ou pudessem fazê-lo, fora cauteloso, e dispusera que em todos os casos tal prestação teria de se subordinar às limitações da ordem constitucional (...). Só Portugal, na sua qualidade de Estado-membro, poderia saber quais as limitações que a sua constituição lhe impunha. (...)”. Em “As Nações Unidas e Portugal”, págs. 100 a 105.

(12) O nº 4 da Resolução A/ 2270 (XXII), de 17 de Novembro de 1967, da Assembeleia Geral das Nações Unidas refere: “(...) Condena energicamente, a guerra colonial desenvolvida pelo Governo Português, contra os povos pacíficos dos territórios sob seu domínio, guerra que constitui um crime contra a humanidade e uma grave ameaça à paz e à segurança internacional (...)”.

(13) A comissão era constituída pelos representantes dos EUA, União Indiana, México, Marrocos, Holanda e Inglaterra.

(14) Resolução da Assembleia A/1541 (XV), aprovada por 69 votos a favor, 2 votos contra e 21 abstenções. Reafirma a obrigatoriedade de fornecer informações de acordo com o Artº. 73º, a aceitação dos princípios do relatório dos seis para determinar a aplicabilidade do Artº. 73º. Estabelece obrigação de informar, quando o território é geograficamente separado e distinto, étnica e culturalmente, da potência administrante. Se este estiver em posição de subordinação, também é obrigatória a transmissão de informações. Admite a integração como resultante da vontade expressa, com o completo conhecimento e por vontade democrática, conduzido imparcialmente e por sufrágio universal. Resolução da Assembleia A/1542 (XV), aprovado por 68 votos a favor, 17 abstenções e 6 votos contra. Nesta Resolução os territórios sob Administração Portuguesa, Cabo-Verde, Guiné, Angola, Moçambique, S. João Baptista de Ajudá, Goa, Macau, Timor e dependências, foram considerados como não autónomos.

(15) Criado no dia 27 de Novembro de 1961, alargado para 24 membros em 1962, o comité dos 24, como era conhecido, no desempenho das suas funções examinava os obstáculos, que, em determinado território, se opunham à descolonização e recebia e analisava as petições que lhe eram enviadas.

(16) Manuel Gonçalves Martins, “A Descolonização Portuguesa (as responsabilidades)”, pág. 91.

(17) Adriano Moreira, “ A Comunidade Internacional em Mudança”, pág. 51, Resenha Universitária, São Paulo 1972.

(18) O Ministério do Exército em directiva 22 de Abril de 1959 diz: “(...) as condições particulares que presentemente envolvem os vários territórios da Nação Portuguesa, quer metropolitanos, quer sobretudo ultramarinos, aconselham (...) unidades (...) possam ser empregadas (...) operações de segurança interna, de contra-subversão e de contra-guerrilha (...)”. Em 1959/1960, para fazer face às possíveis ameaças vindas de países recém independentes, transfere-se o esforço militar da Europa para África e aí remodela-se o dispositivo. Pelo Decreto-Lei 43351, de 24 de Setembro de 1960, é dada nova organização territorial às Forças Terrestres: cinco Regiões Militares (Norte, Centro, Sul, Angola e Moçambique) e sete Comandos Territoriais Independentes (Açores, Madeira, Cabo-Verde, Guiné, Estado da Índia, Macau e Timor). Por seu lado, o Conselho Superior de Defesa Nacional deliberou: “(...) evitar novos compromissos com a OTAN, que envolvam mais encargos financeiros; manter ligações militares com a Espanha, com vista à defesa Pirenaica; aumentar o esforço de defesa no Ultramar e rever o plano de Defesa Interna do conjunto do Território Nacional (...)”.

(19) Entrevista do autor com o General Pedro Cardoso em 27 de Maio de 1994. O General Pedro Cardoso desempenhou, entre outros cargos, os de: 1961-1962, Director do Centro de Informação e Turismo de Angola; entre 1968 a 1972, o de Secretário-Geral da Província da Guiné, de 1978 a 1981, o de Chefe do Estado-Maior do Exército, e, actualmente, desempenha as funções de Secretário Geral do Conselho Superior de Informações.

 
 

 




 



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