FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA
Os movimentos independentistas,
o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

CAPÍTULO I - Os grandes poderes mundiais e a África Negra subsequente à Conferência de Berlim
4. - A Carta da Organização das Nações Unidas
e os territórios não autónomos

 

A Carta do Atlântico, assinada em 14 de Agosto de 1941 por Roosevelt e Churchill, era o texto base dos ideais comuns de todos aqueles que lutavam contra a Alemanha ou que, pelo menos, não apoiavam a sua ideologia política. Surgiu na sequência do insucesso da Sociedade das Nações e nela se consagrava, entre outros, o direito dos povos escolherem a sua forma de governo e, de extrema importância, a não alteração dos limites territoriais, sem consentimento dos povos interessados. Contudo, não fazia qualquer referência aos territórios não autónomos.

Com a criação da ONU, em 26 de Junho de 1945 (sem a participação de Portugal), regulamentou-se a situação dos territórios não autónomos, pois a Carta criou dois sistemas: um, a partir do capítulo XI, “Declaração Relativa a Territórios sem Governo Próprio”; outro, a partir dos capítulos XII e XIII da Carta das Nações Unidas, “Sistema Internacional de Tutela” e “O Conselho de Tutela”, respectivamente.

O capítulo XI, composto pelos Artºs. 73º e 74º, refere-se a territórios sem autonomia. Nos termos do Artº. 73º da Carta, os Estados membros das Nações Unidas que “(...) assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos ainda não tenham atingindo a plena capacidade de se governarem a si mesmos, reconhecem o princípio de que os interesses dos habitantes desses territórios são da mais alta importância (...)” e comprometem-se a um certo número de obrigações no desempenho de uma missão designada na Carta como “sagrada”.

Estas obrigações - que são basicamente para os Estados administrantes de territórios não autónomos - são as seguintes (seguindo ainda o Artº. 73º):

- Assegurar, com o devido respeito pela cultura dos povos interessados, o seu progresso político, económico, social e educacional;

- Desenvolver a capacidade destes para governo próprio, tomando em devida conta as suas aspirações políticas e auxiliando-os no desenvolvimento progressivo de instituições políticas livres;

- Estimular o progresso de tais povos, em cooperação com as agências especializadas da ONU;

- Transmitir com regularidade ao Secretário Geral, para fins de informação sujeitas às reservas impostas por considerações de segurança ou de ordem constitucional, informações de carácter estatístico e técnico sobre as condições sócio-económicas e educacionais dos territórios abrangidos pelo sistema e que não estejam compreendidos naqueles a que se aplica o estabelecido nos capítulos XII e XIII da Carta.

Não é difícil verificar a concepção monocultural de cada território sem governo próprio. No fundo, este capítulo é uma actualização do nº. 1 do Artº. 22º do Pacto da Sociedade das Nações, que se referia a “(...) territórios (...) habitados por povos ainda incapazes de se dirigirem por si próprios nas condições particularmente difíceis do mundo moderno. O bem estar e o desenvolvimento desses povos constituem a missão sagrada de civilização (...)”, e que vem na sequência lógica do Artº. 11º da Convenção de Saint-Germain-en-Laye (1). Esta última, como revisão do Acto Geral de Berlim, articula-se logicamente com o espírito do mesmo.

No preâmbulo do Acto Geral de Berlim, refere-se a preocupação de aumentar “(...) o bem estar moral e material das populações indígenas (...)” e, no seu Artº. 6º, é mencionado o compromisso de “(...) velar pela conservação das populações indígenas e pelo melhoramento das suas condições morais e materiais (...)”, bem como proteger e favorecer, sem distinções, “(...) todas as instituições e obras religiosas, científicas ou de caridade, criadas e organizadas para estes fins, ou que visem a instruir os indígenas e fazer-lhes compreender e apreciar as vantagens da civilização(...)”; repare-se, a civilização ocidental. Salienta-se, ainda, o Artº. 35º, onde as potências signatárias reconheciam a obrigação de assegurar “(...) uma autoridade suficiente para fazer respeitar os direitos adquiridos e eventualmente a liberdade de comércio e de trânsito (...)”.

Constata-se que tanto o articulado do Acto Geral de Berlim, das Convenções de Saint-Germain-en-Laye, do Pacto da Sociedade das Nações e da própria Carta das Nações Unidas vêm na sequência lógica e doutrinal (ressalvando, embora, o percurso histórico) do pensamento de Francisco de Vitória (1480-1546). O teólogo pressupunha oito títulos para o direito de conquista e de colonização, ressaltando deles um etnocentrismo cultural, onde se subentendia a imposição do direito do colonizador (2).

A colonização dos territórios conduziu ao confronto entre os sistemas jurídicos do colonizador e do aborígene. Segundo Narana Coissoró, podemos considerar dois sistemas jurídicos que foram balizar os sistemas locais: o sistema britânico e o sistema latino.

O sistema britânico praticou, desde o início, o desenvolvimento de um “(...) sistema jurídico autónomo (...)” (3), visando uma autonomização do direito territorial. O latino pendia para um direito integrador, transigente com os consuetudinários africanos, desde que os respectivos normativos não fossem contrários aos conceitos essenciais do sistema jurídico da metrópole. Apenas “(...) parte do direito aborígene que em nada interferia com os fins imediatamente visados (...)”(4), ficou sobre a alçada do direito tradicional, como é o caso do Estatuto do Indígena.

Amaro Monteiro considera outra ordem jurídica, esta sui generis: O Islão, que “(...) procurou não tanto o exercício de soberania e administração como, sobretudo, a implantação e desenvolvimento de influências politico-culturais e económicas (...)” (5). Como veremos, os povos da Guiné Portuguesa ficaram, assim, sujeitos a uma dupla solicitação dos sistemas em presença: o do colonizador europeu e o islâmico, tendo este último, vantagem no terreno cultural.

Estas ordens jurídicas exercem-se sobre uma multiplicidade de territórios com as fronteiras decorrentes da Conferência de Berlim, marcadas com o fenómeno colonial e a consequente partilha de zonas de influência.

Apesar das variadas ideologias de uma pretensa anulação, a demarcação persiste nos nossos dias. Todavia, as elites africanas, que reclamaram a independência para estes territórios com as fronteiras geográficas limitadoras da ordem interna e externa, cuja expressão política obtida, não pela consagração internacional de nações já existentes, mas sim através da soberania do colonizador, determinada pelo Direito Internacional, concluíram que a alteração de fronteiras iria colocar em questão factores já adquiridos de equilíbrio. Situação curiosa não deixa de ser o facto de essas elites reivindicarem a independência “(...) sem terem uma comunidade nacional a servir-lhes de apoio (...)”(6). De facto, as independências não correspondem às autenticidades africanas que, por outro lado, face aos constantes movimentos populacionais anteriores ao domínio colonial, são de difícil definição.

O segundo sistema da Carta - Sistema Internacional de Tutela - não é mais do que um sucessor do sistema de mandatos da Sociedade das Nações, onde apenas se mudou o nome e se introduziram poucas e não relevantes alterações. É aplicado aos antigos territórios sob mandato da Sociedade das Nações, àqueles que em virtude da II Guerra possam ter sido separados dos países do Eixo e, finalmente, àqueles cuja potência responsável pela sua administração os resolva colocar de uma forma voluntária sob regime de tutela.

Na Carta, ficou sublinhado o carácter transitório da tutela, com função educadora e de encaminhamento para a independência, vincando ainda o princípio da não discriminação em função da raça, sexo, religião ou língua dos habitantes.

O propósito da Carta, em trazer os benefícios de uma civilização, é atitude nitidamente etnocêntrica, pois considera que o destino ideal das populações a serem afectadas pelo sistema tem de ser realizado de acordo com os modelos culturais, sociais e religiosos de quem redige as formulações. Isto conduz ao Artº. 73º, já referido anteriormente.

O sentido protector e promotor já se encontrava no Tratado luso-britânico de 1815, relativo à abolição da escravatura em todos os lugares da costa de África, ao norte do Equador, como no preâmbulo do Decreto elaborado pelo Marquês de Sá da Bandeira em 1836, para abolição do tráfico da escravatura em Portugal.

Tal posição repete-se em 1890, no Acto Geral da Conferência Internacional de Bruxelas, para pôr termo ao tráfico de escravos e regular o comércio de armas e bebidas alcoólicas em África. No Artº. 1º ressalta a preocupação de, nos territórios colocados sob soberania ou protectorado das nações civilizadas, criar estações fortemente ocupadas, por forma a que a sua acção protectora ou repressiva se possa sentir com eficácia. Nos n os. 1, 2 e 3 do Artº. 2º, há uma sequência lógica quanto ao controlo das populações; inclusivamente prevê-se a sua colocação em postos e estações, em caso de perigo iminente, disposição que poderemos considerar antepassada da política portuguesa, quanto ao reordenamento das populações e às tabancas em autodefesa na Guiné. O nº. 1 do Artº. 2º demonstra também e novamente uma convicção de superioridade das Partes signatárias, uma vez que alude a “(...) trazê-las à civilização e a extinguir os costumes bárbaros (...)”.

A visão persiste na própria Convenção nº 107 (7) da Organização Internacional de Trabalho, em 1957, portanto já após Bandung. O seu Artº. 2º estabelece: “(...) promover o desenvolvimento social, económico e cultural dessas populações assim como elevar o seu nível de vida (...)” e ainda “(...) criar possibilidades de integração nacional com exclusão de qualquer medida destinada a uma assimilação artificial dessas populações (...)”. O Artº. 3º refere a protecção fornecida às populações interessadas, relativamente a instituições, pessoas, propriedade e trabalho, enquanto aquelas não gozarem dos benefícios das leis gerais.

A partir da cultura ocidental (Artº. 4º a Artº. 8º), formula-se um modelo de comportamento, de aferimento de padrões; no entanto, “(...) na definição dos direitos e dos deveres das populações interessadas atender-se-á ao seu direito consuetudinário (...)”(8) e à conservação das suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os sistemas jurídicos nacionais ou com os objectivos e programas de integração. Contudo, nota-se alguma evolução. Do Artº. 22º podemos extrair um propósito pedagógico da disposição de adoptar programas de educação adequados “(...) ao grau de integração social, económica e cultural destas populações na comunidade nacional (...)”; é o único texto denotando preocupação com o estudo da personalidade cultural das populações.

O Estatuto do Indigenato, que serviu de argumento em ataques desferidos contra Portugal na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi criado em 20 de Maio de 1954, pelo Decreto-Lei nº 39666, sendo, portanto, anterior à Convenção nº.107 e tinha, no fundo, a mesma finalidade: defender as populações com culturas próprias e diferentes da europeia, na contemplação dos seus usos e costumes (9).

 

(1) Em 1919, em Saint-Germain-en-Laye, são assinadas três convenções sobre a colonização, as quais revogaram as disposições do Acto Geral de Berlim (com excepção das referentes à bacia convencional do Zaire) e definiram diversos regimes a adoptar em África (como o comércio de bebidas alcoólicas e armamento, muito limitado em teoria). Considerou-se desnecessária a manutenção do princípio da ocupação efectiva, como direito de posse; considerou-se já toda a África ocupada. Foi mantido o processo de acção civilizadora dos indígenas. A revisão dos Actos Gerais de Berlim e Bruxelas incita as Nações colonizadoras a uma mais ampla acção civilizadora e protectora dos indígenas.

(2) Os oito títulos de Francisco de Vitória, atinentes ao direito de conquista e de colonização da América, são os seguintes: 1 - Derecho de natural sociedad y libre comunicación y consiguientes derechos de sociabilidad natural e primarios derechos de gentes; 2 - Derecho de evangelizacíon y subsiguinte mandato de protección y tutela missional; 3 - Derecho de intevención en defensa de los convertidos, o título a la vez de la religión y sociedad humana; 4 - Poder indirecto del Pontífice de deposición e instauración de gobierno cristiano sobre pueblos convertidos; 5 - Derecho de intervención humanitaria en defensa de los inocentes y para abolir sacrificios humanos, etc; 6- Por libre elección debidamente garantizada; 7 - Derecho de intervención por petición de aliados o confederados; 8 - Titulo Probable. Tutela o mandato colonizador sobre pueblos retrazados. Em “Obras de Francisco de Vitória - Relaciones Teológicas”, Pág. 496, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1960.

(3) Narana Coissoró, “As Instituições de Direito Costumeiro Negro-Africano”, em “Estudos Políticos e Sociais”, vol. II, nº. 1, pág. 81.

(4) Idem, ibidem.

(5) Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 17.

(6) Adriano Moreira, “Da Relação entre a Nação e o Estado”, pág. 25, em “Nação e Defesa”, nº. 61, Janeiro-Março 1992, Instituto de Defesa Nacional.

(7) Relativa à protecção e integração das populações aborígenes e outras populações tribais e semitribais nos países independentes.

(8) Nº. 1 do Artº. 7º.

(9) Silva Cunha, “O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, pág. 133, Atlântida Editora, Coimbra, 1977.

 
 

 




 



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