JOANA RUAS
Telegrama de Dakar
«Fala-se aos decapitados
Os decapitados respondem em uólofe.»
Henri Michaux em Plume.
Henri Michaux (1899/1984), o homem sem referências que vivia algures no país distante do seu longínquo interior, regista neste seu poema de 1938 o trágico destino das minorias étnicas numa África envolta numa obscuridade sangrenta. Há homens, mulheres e crianças que viajam hoje sem bússola, sem cartas de recomendação ou apoios. Fogem das guerras, dos massacres , das terras tornadas infecundas pelo esgotamento da monocultura , pela contaminação tóxica e pela corrupção das suas elites. De mãos vazias viajam apenas com o desejo intenso e imperioso de mudarem a sua condição ou simplesmente de sobreviverem. Essa massa humana força as fronteiras, atravessa desertos , florestas e o mar e bate às portas da Europa cujos gonzos rangem. Os povos não têm voz e enquanto a maioria nem o rasto da sua passagem deixa na vastidão dos mares e das terras percorridas, de alguns nos chegam as imagens capturadas pela comunicação social para espectadores fascinados mas não comprometidos.
Muitos escritores e poetas conheceram igualmente os horrores da guerra e o exílio, e, entre eles, dois poetas, Dante e Rilke conheceram e exprimiram essa forma de migração que consiste no propósito singular de acharem por si mesmo o seu caminho através de uma obra.
O florentino Dante Alighieri (1265/1324), tendo nascido numa família do partido dos Guelfos — apologistas do Papa e da independência italiana — , notabilizou-se como militar na batalha de Campaldino que a República de Florença travou contra os Gibelinos — partidários do Sacro Império Romano-Germânico. Dante, que foi embaixador e alto dignitário da República Florentina, participou ainda, enquanto militar, nas guerras contra os Pisanos.
Os Guelfos que dominavam então a cena política de Florença dividiram-se em duas fações: os Guelfos Negros constituídos pela elite florentina favoráveis ao Papado de Bonifácio VIII , fação na qual se achava a família de Dante, e os Guelfos Brancos, partidários da autonomia e próximos do povo , fação em que Dante militava . Tendo sido vencida a fação dos Guelfos Brancos, Dante foi abandonado pela família à sua sorte e, tendo sido proscrito, conheceu o banimento e as misérias do exílio perpétuo tendo morrido em Ravena.
Dante retratou na Divina Comédia o estado da sociedade e do espírito humano nos séculos XIII e XIV num país tido como o mais avançado da época. Na Divina Comédia, Dante coloca no Inferno todos os que tendo deixado o caminho reto ( isto é, o caminho que é tido como o da ordem estabelecida), se acharam numa floresta obscura, selvagem, espessa e áspera, onde, segundo escreve, o sol se cala e que é mais amarga que a própria morte. Dante, de quem Balzac diz ter lançado a ousada ponte entre a Ásia e a Europa, sabia, por experiência, o que era o Inferno: as discórdias e os males da guerra que agravam os erros, as paixões, os vícios e as misérias de que está cheia a vida humana.
Em 1972, Natália Correia ofereceu-me o texto original alemão da obra de Rainer Maria Rilke com a respetiva versão castelhana e introduções de Gonzalo Torrente Ballester, publicado pelas Ediciones Nueva Epoca S.A. Madrid com data de 1946, volume que junta o Requiem a uma Amiga, o Requiem a Wolf Kalckreuth, o Requiem a um Menino e As Elegias de Duíno. Segundo me referiu, além dela, também Herberto Helder admirava não só a obra de Rilke como teria sido inspirado pela sua poesia. Natália Correia chamou a minha atenção para o Requiem a uma Amiga , um longo poema a Paula Becker, pintora que fazia parte com o marido Otto Modersohn da colónia de artistas Worpswede a que pertencia Rilke assim como a escultora Clara Westhoff, sua esposa. A profunda dor que Rilke sentiu com a perda de Paula Becker morta prematuramente na sequência de um parto, frutificou neste seu Requiem que tem a data de 1909. A morte desta artista marcou profundamente Rilke não apenas pela perda de uma pessoa querida, a sua dor mais veemente dirigia-a ele à artista que não tinha podido ir até aos confins dos seus dotes artísticos. A sua mágoa ao escrever: «há uma velha inimizade entre a vida e a grande obra», revela a profunda preocupação do poeta pela condição humana dos artistas.
Gonzalo Torrente Ballester na sua Intodução ao Requiem a uma Amiga , refere que os artistas do Fim do Século chegaram a um mundo rico em teorias e em experiências estéticas e em que o lema «a arte pela arte» foi pronunciado ao mesmo tempo que outro lema « a riqueza pela riqueza». Num mundo em que triunfou a economia burguesa com as suas fábricas e com elas a destruição das cidades e a beleza da paisagem sob a pressão da massa humana dos deserdados, o lema «a arte pela arte» era uma proclamação de independência, o que significava, para os artistas, o direito a uma vida singular e ao reconhecimento público. Na medida em que o artista já não saía exclusivamente da cepa aristocrática, achava-se sempre em luta pelo ganha pão. No circulo de amigos de Rilke, essa vida singular dos artistas era entendida como um trabalhar trabalhando-se o que significava para poetas e escritores converter em literatura toda a sua experiência humana.
Rilke que nasceu em 1875 em Praga , morreu em 1926 em Montreux na Suiça. A partir de 1900, Rilke começa um período a que chamou os seus anos de migrações. Nesse período, Rilke viveu dividido entre a necessidade de ganhar o pão de cada dia e a de cumprir a sua obra. Convicto da sua capacidade em corresponder ao dom que sabia possuir, Rilke optou por se consagrar à sua obra e, sem meios, viveu o profundo conflito entre a sua obra e a sua vida com a sua separação de Clara e de Ruth, a filha do casal, devido às suas precárias condições materiais, e constatar que essa mesma criatividade continuava ameaçada de extinção. Como secretário particular de Rodin, em 1902, o poeta experimentou de novo a angústia de estar privado de cumprir a sua criatividade, situação de distância que descreveu numa carta como: «Eu continuo apenas a perseverar.» Para o migrante Rilke, não havia uma correlação entre o que existia no seu espírito e o que ele escrevia enquanto alienado a um trabalho de secretaria .Até 1907, Rilke anda de casa em casa, vivendo , segundo escreve, de hospitalidades , anos de migrações em que escreveu o Livro da Pobreza e da Morte, a última parte do Livro de Horas, escrito em 1901.Num texto intitulado Carta do Jovem Trabalhador, escreve: «Nada é tão poderoso como o silêncio. E se não nascêssemos no coração da palavra ele não teria sido rompido». Nesse trabalho a que era obrigado para subsistir, a linguagem reificada, tornada instrumento de uma atividade mecânica, estava gasta, impedia-o da liberdade de pensar por si mesmo sobre as coisas tal como elas são.
Parafraseando Maria Estela Guedes que a propósito do livro de poemas de R. Leontino Filho, intitulado Anatomia do Ócio, o interpela interrogando-o: «Poesia é sinónimo de ócio?» A pergunta é pertinente na medida em que o titulo sugere que a criatividade foi não apenas considerada mas assumida como um produto do ócio. No seu livro Minima Moralia , Reflexões sobre a Vida Mutilada, isto é, a vida limitada à produção material e ao consumo, Teodoro Adorno disserta sobre os efeitos da sectorização da vida intelectual como um meio de a suprimir desde que ela não seja objeto de uma atividade resultante de uma encomenda oficial ou profissional. A vida intelectual que não esteja submetida à ordem social da divisão do trabalho com a sua tirania específica, é considerada como uma atividade decorativa. As horas gastas num trabalho poético não estando submetidas à ordem social da divisão do trabalho passaram a ser consideradas um ócio luxuoso.
Entre nós, nos anos 70 do século passado, os poetas e escritores subsistiam como jornalistas, professores e publicitários. Devido à natureza do regime e à repressão exercida sobre os intelectuais, a questão da condição do artista foi equacionada em termos de liberdade e censura não tendo tido uma dimensão social, de grupo ou mesmo partidária. Amadeu Lopes Sabino no seu livro recentemente lançado « O Todo ou o seu Nada» dá-nos uma preciosa reconstituição histórica da vida literária portuguesa do pós-guerra.
Presumo que ao aconselhar-me a leitura do Requiem e, simultaneamente, referir o apreço de Herberto Helder por Hölderlin e Rilke, teria ocorrido a Natália Correia alguma troca de palavras entre ambos sobre a condição do artista que o Requiem põe a nu e que Natália Correia queria que eu entendesse que a arte é a manifestação elementar da totalidade do ser, realidade que ela própria tinha exprimido no auto-retrato que se achava no salão sobre o mármore da consola. Recordo que entre as iniciativas públicas com alguma repercussão no grupo de Natália Correia esteve a Exposição de Henri Michaux na Galeria S. Mamede em Julho de 1973, com a presença do poeta, exposição saudada calorosamente por Natália Correia e por Eurico Gonçalves que escreve no respetivo catálogo :«Como é que um pintor-escritor tão singular como Henri Michaux faz uma pintura que poderia muito bem ser a de todos nós?!Como é que o génio rebelde e incómodo deste admirável poeta não deixa de representar também o nosso lado maldito e inconformista ou o que em nós mais profundamente se manifesta?! Que espécie de sinais são estes que estabelecem uma identificação tão imediata e total com a humanidade desfigurada, transfigurada-uma multidão de seres vivos em constante mutação?!»
Devido à Exposição de Henri Michaux, autor da La Grande Nuit ou Le Bluff Surréaliste, colocava-se com acuidade a questão: como resistir aos choques que vêm do exterior quando para sobreviver o artista não se pode ausentar do mundo? Como defender a sua autonomia continuamente ameaçada? Como tornar compreensível a natureza do ato criativo?
É Herberto Helder quem em 1978 vai abordar a questão da singularidade e da alteridade do artista em O Corpo o Luxo a Obra. O Ofício Cantante , segundo Herberto Helder, não é sinónimo de ócio. Escrever é agir, um agir no espaço e no tempo . O ato poético é invenção e nessa medida há nele algo de desmesurado. No esforço do corpo, o criador perde o equilíbrio e a sua integridade é ameaçada pois sofrer é perder-se. Diz o poeta: «Em certas estações obsessivas,/ Insondáveis pela doçura e a desordem, eu vi/ sobre o barulho dos buracos terrestres as caras engolfadas fulgurando até ao sangue, sua teia de ossos fechada por membranas que respiram por luz própria.» O trabalho poético , a criação artística como a exprime Herberto Helder é uma estação obsessiva em que corpo e espírito entre a desordem e a doçura, em plena escuridão respiram a sua própria luz. Os trabalhos da escrita que é invenção esgotam as forças do criador pois invenção é relâmpago e instinto. A criação é também força, tal como regista o poeta :« Eram rápidas, fortes, espaçosas as noites do poder.» Poder, que poder? Claro que o poder no contexto da criação artística é o da exultação pelo que foi alcançado e resgatado à escuridão ou ao esquecimento.
O luxo, para Herberto Helder, não é o do ócio pois a obra faz-se trabalhando o corpo e a mente, o luxo está no pensamento próprio, no ato de liberdade de adesão ao desafio e aos riscos para o qual o ato poético ou a escritura o convoca na sua dolorosa caminhada , uma caminhada visceral até à mão , caminhada da escuridão para a luz:«A memória maneja a sua luz, os dedos , a matéria»
A obra dói, conclui Herberto Helder no seu poema. Sendo a obra de criação sofrimento pela perda de si em proveito de outro, pela ocupação do ser, devido à usura desse sofrimento constante, a obra, uma vez acabada, não significa ausência de riscos, os criadores podem perder os limites do seu corpo e com essa perda o sofrimento ganha autonomia. E uma vez instalada essa autonomia, a capacidade de resistência ao sofrimento, achando-se reduzida , o corpo torna-se num joguete desse sofrimento. Desse mal sofreu Virgínia Woolf. Desde então muitos foram os que se debruçaram sobre os efeitos da criação artística na saúde física e mental dos criadores . Esse processo doloroso de desmantelamento do campo da consciência foi trabalhado por Henri Michaux em La Nuit Remue (1935), Plume (1938), Paix dans les Brisements (1939), Connaissances par les Gouffres (1961).
Recordado dos anos em que partilhou a vida dos deserdados da Terra, o migrante Rilke fixou-lhes a existência precária na 5ª Elegia de Duíno ao interrogar: «Quem são estes vagamundos lançados na dispersão e que rondam a vasta Praça de Nenhures? Com uma iminente exigência que desde o começo os torce, uma Vontade Insatisfeita, não obstante, os devora, sacode, arroja e depois recolhe.» Quem são? Rilke, que foi leitor atento de Jules Michelet, parece indagar — onde está o Povo que o historiador da Revolução Francesa dizia poder seguir desde as suas origens históricas e vê-lo vir do fundo do Tempo? Até então, o Povo, mesmo pobre, parecia eterno e todos os outros fugazes! Mas naquele tempo conturbado do pós-guerra de 14/18, os vagamundos pareciam ainda mais fugazes que todos os outros homens seus contemporâneos. Eram fugazes estes sobreviventes dos massacres de minorias que levara Karl Krauss a escrever entre 1915 e 1918, os Últimos Dias da Humanidade e Laboratório para um Apocalipse. A pergunta de Rilke, quem são eles, coloca-nos perante o problema da difícil identificação dessas populações pelo estado de degradação, alienação e miséria patenteadas. Os vagamundos eram restos (destroços) de populações desalojadas pela queda dos impérios Turco-Otomano e Austríaco. Perante a pressão desta multidão de errantes, a sociedade, não a podendo manipular nem a querendo integrar, começou a considerar com extrema atenção as doutrinas racistas e o binarismo que desde o final do século XIX começava estigmatizar Judeus, Ortodoxos Gregos, Russos, Druzos, Curdos, Arménios, Circassianos, Muçulmanos e Sérvios. Estes povos desalojados que transportavam consigo um mundo que findara, eram comparados e associados a delinquentes, loucos e pobres e de serem tão incapazes como as mulheres, enfim, seres inferiores sem identidade. As minorias étnicas e os socialmente marginalizados começaram então a ser encarados como problemas para os quais era necessário encontrar uma solução.
Ao abordar o tema «o laço social, dominação e poder » no seu livro De La Horde à L´État, Eugène Enriquez escreve que a Revolução Francesa, ao proclamar que todos os homens são livres e iguais ,favoreceu a criação de classes sociais e que na época entre as duas guerras mundiais, o dinheiro, como valor central para a burguesia, tentou fazer desaparecer os antigos valores de prestígio, de honra e de laços de proteção que até então subsistiam nas sociedades europeias. E acrescenta que numa estrutura em que o dinheiro é o valor central, as relações humanas dissolvem-se e os seres, agarrados pela submissão ao poder do dinheiro que eles pensam erradamente dominar, tendem a tornar-se coisas.
Rilke, consciente desta situação escreve nesta elegia:«…neste penoso, inexistente lugar, de repente lugar inefável donde a pura insuficiência inconcebivelmente se transmuda e cambia , incompreensivelmente se cambia naquela vazia abundância. Donde as contas de muitos cifrões saem sem número. »
Sobre o mundo do trabalho, Eugène Enriquez afirma que o trabalho, valor central para os trabalhadores, produz mais-valias criadoras de riqueza. O mundo do trabalho, sendo um meio cultural em que se transmitem conhecimentos e se estreitam amizades e em que cada um adquire consciência da sua identidade pessoal e coletiva, também o mundo do trabalho sofreu nesta época uma profunda mutação devido ao facto de emergir, entre a classe trabalhadora, a ideia controversa de que só um trabalho regular merecia retribuição. Foi contra esta tendência que se manifestaram os anarquistas revoltados com o enfileiramento dos operários ao lado da burguesia e que como os burgueses rejeitavam as populações marginais mal fixadas, os sem trabalho, os irregulares. Esta questão levou Nietzsche (1844-1900) ,na sua obra Aurora, a considerar que na Europa, os operários deveriam declarar que eram, enquanto classe, uma impossibilidade humana.
Dante e Rilke! Tomo entre as minhas mãos o legado de ambos. Hoje , a Terra é um lugar que uma vontade insatisfeita desnuda e desertifica. Onde está o rosto dessa vontade insatisfeita que rejeita e exclui os migrantes? Acaso serão aqueles que só serão ricos perante a miséria que só se sentirão vivos no meio dos mortos e que precisam da exclusão para se sentirem donos do mundo? Hoje, cabe-nos perguntar de novo como Rilke: Quem são e donde vêm estes homens, mulheres e crianças que erram, vagamundos e famintos sem terem onde repousar das fadigas de uma longa caminhada para nenhures?
Acaso conheceremos o rosto daqueles que encostam a face junto ao chão para morrerem como folhas secas da frondosa árvore de que todos somos as folhas? Que nos diz a imagem daquela mulher exangue? Essa voz que morre na sua garganta murmura: enterrei os meus mortos e esqueci-os como se não tivessem vivido. Como se nada deles me tivesse sido comunicado, como se jamais tivessem tido sobre a minha vida qualquer poder. Esqueci e enterrei o que foi fundamento de mim e me ergueu.
E aqueles homens, mulheres e crianças que tendo deixado o seu país devastado por guerras e que tendo perdido a terra se acharam no meio do mar? Ah! Suspira aquele homem na força da idade, como seria bem duro dizer a que ponto era o mar imenso e inóspito! Aqui, diziam , devemos deixar todo o medo, toda a fraqueza deve estar aqui morta. Cheguei a um lugar mudo de toda a luz, um lugar no mar onde o mugido das vagas batidas por correntes contrárias apaga os gritos dos náufragos. Aqui toda a nossa inteligência desfalece e se ninguém vem junto de nós jamais saberemos do nosso estado humano pois para nós morrerá todo o conhecimento a partir do momento em que sobre nós será fechada a porta do futuro. Como me sentia estremecer e desfalecer, não me perguntes! não o posso descrever, porque toda a palavra será fraca. Não morri mas não estou vivo: pensa agora tu mesmo, se tens algum entendimento, no que me tornarei, privado do passado e privado do futuro. Sob a pérola eterna da lua , num baloiçar constante , num rasgar constante do véu do sono , apertava eu a mão do meu amigo e enquanto fixava a luz de uma estrela, como por vezes acontece que ao olhar uma estrela a vida se perde, só com o ruído do seu corpo tombando dei conta que caíra na treva profunda do mar.
Que força, ou que acaso nos afastou para longe da terra natal, aceitando que jamais se conheça o lugar da nossa sepultura! Tu, anota: e tal como tas disse, diz estas palavras aos vivos, nós para quem viver não é senão correr para a morte, abrimos o coração às águas da paz , andamos de porto em porto sem perceber qual a saída que leva para o interior do labirinto do vosso mundo.
Álguém lançava aos céus inclementes o seu desabafo: Enfim chegámos salvos, alguns de nós, poucos, a um porto ! Inútil mundo, terra de dor, navio sem piloto numa grande tempestade, covil infame.
Dante, na Divina Comédia deu o nome de loba à força devastadora que assolava o mundo . Maldita sejas tu, antiga loba, escreveu Dante na Divina Comédia , que mais que todas as outras feras, abundas de presa para a tua fome sem fundo! O céu, de que julgamos acreditar que os seus movimentos mudam a condição das coisas cá de baixo, quando virá o movimento celeste por influência do qual a loba maldita será forçada a sair do mundo? Enfim! Inútil país , terra de dor, navio sem piloto numa grande tempestade, não senhora de humanidades mas covil infame!
E nós, espectadores , o que nos ocorre ? Onde está o homem de amanhã? Será ele o jovem nascido e crescido à sombra dos prédios das grandes cidades sem outro sentimento no seu ser senão o do modo como subir na vida enquanto os velhos sobem a custo a escada de cada dia sem pão e sem conforto, mês após mês, desde o dia do subsídio da segurança social até ao dia do subsídio no mês seguinte. É com o veneno da biotecnologia que ele pensa que achará o remédio para o futuro? O que nos define como humanos é a consciência. À sensação de poder que o uso da tecnologia proporciona corresponde a uma redução do campo da consciência e a uma perda gradual do sentido da identidade.
Os poetas e escritores cumpriram a nobre missão de ampliar as fronteiras do conhecimento e de iluminar as consciências. A utilidade da arte está na sua própria existência. No epitáfio composto para o seu túmulo, Rainer Maria Rilke, numa afirmação da sua solitária alteridade, lega aos seus leitores a rosa de luz da sua poesia: «Rosa, ó pura contradição, volúpia de não ser o sono de ninguém sob tantas pálpebras»
NOTA
Henri Michaux já era conhecido dos meios literários portugueses. Natália Correia, no seu livro O Surrealismo na Poesia Portuguesa, publicado pela Publicações Europa-América em 1973, no capítulo intitulado As Máquinas Infernais refere o livro de Henri Michaux, L´Infini Turbulent. Também em 1973, com tradução e prefácio de Natália Correia, a Galeria S. Mamede publica o texto Postes Angulares de Henri Michaux com 4 ilustrações da sua autoria. Por sua vez, recentemente, através de Isabel Meyrelles, soube que Claude Roy e Henri Michaux, a quem ela expôs o seu trabalho de tradução da poesia portuguesa, tendo ficado encantados com a poesia portuguesa que não supunham tão boa, empenharam-se junto da Gallimard que acabou por publicar a Antologia em 1971.
Joana Ruas
Lisboa, 8 de Dezembro de 2018
SÉTIMO ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
CASA DAS MONJAS DOMINICANAS
Lumiar . Lisboa . 17 de novembro de 2018