Meu amigo Ernesto de Sousa

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Isabel Alves lê a carta de António José Saraiva, já digitalizada.

Várias instituições apresentam memoriais de Ernesto de Sousa (1921-1988) neste ano de 2021, data do centenário do seu nascimento. Entre elas, uma exposição no MNAC – Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa -, intitulada «Meu Amigo», que comporta sessões com alguns desses amigos. Como participarei, dia 23, numa delas, com leitura de cartas do Ernesto e para ele, tive um encontro preparatório com a co-organizadora, ou curadora, do Centenário, Isabel Alves, esposa, administradora, maior dos amigos, herdeira, mulher forte que tem oferecido um escudo contra a morte, mantendo vivo o estro de Ernesto de Sousa, não só para os seus contemporâneos, mas sobretudo para os demasiado jovens para o terem conhecido pessoalmente.

Pelas nossas mãos passaram memórias diversas, cartas sobretudo, para ler dia 23. O Ernesto de Sousa era uma fonte, falar dele exige rédeas na escolha dos elementos a tratar, pois a sua multidisciplinaridade, fluxo de ideias e diversidade nas expressões de arte facilmente nos mergulha num labirinto. Vou tentar concentrar-me então, neste artigo, na carta de António José Saraiva, aqui reproduzida em fotografia e passada a Word por Isabel Alves. Carta de 1961, muitos anos antes das portas abertas à explosão das vanguardas, que pela primeira vez se apresentaria aos olhos espantados dos portugueses, em 1977, com a «Alternativa Zero».

Ernesto de Sousa dedicou anos a estudar a arte popular, alentando nomes como o de Rosa Ramalho, Quintino Vilas Boas Neto e Franklin Vilas Boas. Em 1964, foi curador, na Livraria Divulgação (Lisboa, Maio–Junho), de uma exposição em que apresentou obras destes artistas. Integrava-se a exposição no ciclo de Etnologia e Cultura Popular organizado pelas Secções Culturais das Associações de Estudantes. Pertence a este evento o seu texto Barristas e Imaginários.

Tejolo romano usado na construção das colunas.

Em geral, os escultores populares também são santeiros, como foi o caso mais falado por Ernesto de Sousa de Franklin Vilas Boas. Porém, creio que anteriormente, já o Ernesto tomara contacto direto e profundo com a arte das catedrais, num périplo pela Península Ibérica, durante o qual catalogou, desenhou e fotografou inúmeros espécimes de arte sacra. ES não se aproxima destes temas de maneira especializada, pelo contrário, ele é uma inteligência interdisciplinar. De resto, contra a especialização, dizia-se ele com ironia um especialista de ideias gerais. Só a título de curiosidade, apresento a foto de um objeto bem pesado que me acompanha desde os anos 80, por mim recolhido em Tróia, na praia, entre outros resíduos romanos da antiga vila piscatória de Setóbriga, por ocasião de um passeio com Isabel Alves e Ernesto de Sousa. É um tejolo triangular, usado, segundo o meu amigo ES, na construção das colunas. Na sua casa de Janas, em Sintra, recordo-me de ver um esboço de coluna cilíndrica, formado pela sobreposição de vários desses tejolos. Parecem de barro, alguma argila hão de conter, pelo tom ferruginoso. Material idêntico ao usado pelos barristas.

Em suma, é com uma cabeça sem barreiras disciplinares, capaz de não se incomodar com a presença da não-arte entre a arte, pacífica quanto à anti-arte, e a todas as desconstruções e paradoxos da vanguarda, que funcionava e ainda funciona Ernesto de Sousa. Aliás, basta atentar no apreço que demonstra pelos santeiros e barristas, para verificarmos o quanto ele era avesso a preconceitos, por vezes referidos como pré-conceitos, à maneira das exposições intituladas «Pré-texto». Ele não alude apenas a um antes da conceção, também chama a atenção para a mesquinhez do pensamento num Portugal ainda amodorrado nas estéticas passadistas.

Na secretária deste espírito singular vem a abrir-se a carta de um homem muito mais racionalista e especializado, António José Saraiva, com o seu problema que, a meus olhos, não se encaixa na discussão da arte sacra, culta nem popular, sim na da vanguarda. O que perturba António José Saraiva? De um lado, que a arte popular, a dos santeiros, possa derivar da arte culta, isto é, da instalada nos nichos e altares das catedrais; porém, a seguir, vem o mais interessante, do meu ponto de vista: que os santeiros não visam representar nem Cristo nem os santos, isto é, que não mora nos seus propósitos nenhuma intenção de representar um real físico, histórico, pessoas verdadeiras, sim que eles trabalham de acordo com as imagens pessoais formadas na fruição dos santos no altar e nas procissões da sua aldeia. E aí entra a plavra «imaginário», com valor também coletivo.

Ora, a discussão é interessante porque se enquadra na problemática da mise en abyme, do romance com romance dentro, do filme sobre o filme, enfim, da metalinguagem, enquanto um dos mais fortes e expansivos vetores da modernidade. O texto aparece como texto e não como transparência passível de permitir que um foco de luz ilumine o real 1, para me socorrer de Karl Popper. Tudo o que se passa na pesquisa mental de António José Saraiva, e que ele crê irmanar-se com a de Ernesto de Sousa, é a concepção de uma arte que se move entre fatores de cultura e dados do imaginário pessoal e coletivo. Se algo existe, na arte popular, relacionado com o mundo real, aquele que nos oferece resistência, é o próprio objeto artístico, na sua matéria: se é de barro, pode partir-se ao cair ao chão. Tudo aquilo que permanece, por ser inquebrável, é do dominio da arte e da cultura. E aqui refiro a dupla frase tão conhecida de ES, «O teu corpo é o meu corpo é o teu corpo», foco dirigido para o corpo, naturalmente, corpo que temos como algo de valor sem preço, e corporeidade do texto, obra de arte na sua materialidade, barro produtor de ideias e de imaginações.

Tão diferentes, António José Saraiva e Ernesto de Sousa! Mas acredito piamente que ambos se situavam num ponto de modernidade, na compreensão do fenómeno artístico, muito longe daquele que decerto a estreiteza de vistas do salazarismo então permitia, e isto para rematar, dizendo que a carta se escreveu por o historiador estar exilado em Paris, como tantos, e que Ernesto de Sousa também foi vítima da estupidez e crueldade próprias de todas as ditaduras.

 

Carta de António José Saraiva para Ernesto de Sousa. Paris, 12 de Abril de 1961.

 

Cité Universitaire – Maison de l’Italie  Boulevard Jourdan
Paris XIV

12 Abril 1961

Caro José Ernesto de Sousa,

Vi ontem uma exposição intitulada Les Naïfs Espagnols que talvez esteja na linha das buscas que  V. andava fazendo à volta da escultura religiosa em Portugal.

Trata-se de uma arte “popular” sobre temas religiosos, tais como santos milagreiros, Nossa Senhora das Sete Dores, o Cristo da Cruz, etc., tratados, segundo pretende o catálogo, por artesãos. Há evidentemente uma visão popular em muitas destas pinturas, embora elas derivem, em muitos casos, da pintura culta (de Murillo, p.ex.). Algumas delas parecem ter nascido independentemente da pintura culta, como uma curiosíssima Samaritana que lhe mando inclusa.

O Autor do Catálogo, que me parece desconhecer certas coisas essenciais, não viu, segundo creio, que algumas pinturas são reproduções de imagens de altar. O que se pretendia não era representar Cristo, ou o Santo, mas a imagem venerada na capela da aldeia e exposta nas exposições. Desta forma, esta arte popular deriva em parte do imaginário e não só do pintor.

Ora parece-me que em Portugal há coisas parecidas, e, digamos, em vários graus, desde o grande quadro a óleo do pintor semi-culto ou inculto, até à estampa litografada, mais recente (mas que deve ter origem em pinturas antigas). Ocorre-me pensar se este tipo de arte popular, tão espalhada e persistente nos séc. XVII, XVIII e parte do XIX, não será alguma  coisa de muito característico da Península Ibérica, resultante de circunstâncias culturais que neste momento não vejo com clareza.

Outro ponto.

Na exposição figuram unicamente pinturas em vidro. O Andres Laszlo, autor do catálogo, diz que esta técnica poderia ter vindo da Polónia. O que me interessaria saber (e talvez V. o saiba) é se se cultivou em Portugal a pintura em vidro na arte popular entre o séc XVII e o XIX.

Agradeço a sua preciosa oferta do livro sobre o Pomar. E faço votos por que continue trabalhando com o mesmo entusiasmo. Como Português que sou, irremediàvelmente, penso sempre que poderemos fazer alguma coisa da nossa terra.

Lembranças aos nossos amigos e à Helena. Um abraço para si do

amigo grato,

António José Saraiva.