O AVESSO DA ONTOLOGIA: A CIDADE SITIADA DE CLARICE LISPECTOR - ALESSANDRO ZIR
No romance “A cidade sitiada”, Clarice Lispector deixa vir à tona (usando uma terminologia heideggeriana) um mundo que não é mundo, que se mostra e se oculta ao mesmo tempo. Esse ‘deixar vir à tona’ implica uma tarefa das mais exaustivas, pois a escrita de Clarice borra uma série de distinções que estabelecemos ao raciocinar, às quais estamos já muito acostumados no nível da nossa consciência ordinária. Através dessa escrita, aparece para nós o momento em que os entes são traçados e constituídos, aquele rasgo dinâmico que marca a sua profunda unidade. Dessa forma, por exemplo, sujeito e objeto não estão mecanicamente separados, mas constituem-se de forma recíproca: “A praça estava nua. Tão irreconhecível ao luar que a moça não se reconhecia” (p.9). “A realidade precisava da mocinha para ter forma” (p.19). “E a cidade ia tomando a forma que seu olhar revelava” (p.19).

Há também uma superposição entre o cenário maior onde se passa a narrativa, a cidade, e os elementos que a compõem: “Essa era a noite de São Geraldo, os flancos de um cavalo percorridos por rápida contração” (p.24). Esse tipo de superposição ocorre igualmente entre o tempo e o espaço, o tempo ilimitado explodindo os limites do espaço: “Nos primeiros silêncios, uma égua esgazeava o olho como se estivesse rodeada pela eternidade” (p.24).

O próprio personagem principal da narrativa constitui a si mesmo como um objeto: “sua futilidade era um despojamento severo, e quando ela estivesse pronta, pareceria um objeto” (p.33). Nele, em Lucrécia, parece haver inclusive uma indistinção, ao menos relativa, entre vida e não-vida, orgânico e inorgânico, como se sua existência primordial pudesse se dar, em alguns momentos, na ante-sala do viver: “a mocinha estremecia de medo de estar viva” (p.10) — não estava viva, ainda, totalmente, mas já estremecia de medo. O que seria esse personagem, que é vivo, mas é também antes de ser vivo, é mero objeto, é coisa, é a cidade, reconhece-se pela cidade ao mesmo tempo que constitui, como um sujeito, as coisas da cidade? É adulto ou é criança? “Com a boca suja, o rosto se infantilizou, menor e culpado” (p.36). É algo realmente, ou seria um feixe de possibilidades? “Haviam [naquele momento, por um momento] cessado as possibilidades: estava vestida de azul, cheia de fitas e pulseiras” (p.36). “E sem sentir a moça tomou a forma que o homem percebera nela” (p.46). “Lucrécia Neves olhou-a e fez com o rosto, imperceptivelmente, a expressão da cadeira”, (p.102). Talvez Lucrécia seja, ainda, melhor descrita como um amontoado de coisas, um agregado paratático: “aprumava-se sem se mexer para não desmoronar, avançado com certa insolência” (p.37).

Poderíamos considerar São Geraldo, a cidade, também como um personagem, que se manifesta, concretamente, como uma força viva: “a moça se sentia inferior àquela nitidez sem apelo. Que atualidade! Que atualidade, via ela lançada no que estava acontecendo” (p.37). A cidade desafia e está em combate com os personagens:

  • E a dureza das coisas era o modo mais recortado de ver da moça. Da impossibilidade de ultrapassar essa resistência nascia, do fruto verde, o travo das coisas firmes sobre as quais soprava com heroísmo esse vento cívico que faz tremer bandeiras! A cidade era uma fortaleza inconquistável! E ela procurando ao menos imitar o que via: as coisas estavam como ali! e ali! Mas era preciso repeti-las. A moça tentava repetir com os olhos o que via, tal seria ainda o único modo de se apoderar. Sua voz não podia e se esgarçava, os cabelos espetados sob o duro chapéu — e entrando na rua do Mercado, o vento a levantar-lhe a saia, ela segurando o chapéu com as duas mãos (p.45).
  • Aos poucos ela não saberia se olhava a imagem ou se a imagem a fitava porque assim sempre tinham sido as coisas e não se saberia se uma cidade tinha sido feita para as pessoas ou as pessoas para a cidade — ela olhava (p.51).
  • Lá estava a cidade. Suas possibilidades aterrorizavam. Mas nunca esta as revelou! Só uma ou outra vez um copo se partia. (...) Se ao menos estivesse fora de seus muros. Mas não havia como sitiá-la. Lucrécia Neves estava dentro da cidade (p.69).

As coisas inorgânicas, vivas, vigiam: “a sala, preparando-se para a longa noite, estava de olhos abertos, calmos” (p.80). “Os edifícios altos e madrugadores” (p.90). Têm uma pulsão intrínseca: “Pois tudo o que fora criado fora ao mesmo tempo desencadeado” (p.101). São donas de si mesmas, como os bibelôs, que não pertencem nem à sala, nem às pessoas: “Não são nem de Deus, são deles mesmos, idiota!” (p.109). Podem atacar: “quem não vira nas noites sem vento como as flores de prata eram cruéis e assassinas?” (p. 162).

Além do caráter sui generis, dos personagens e dos objetos, das cidades e seus elementos constitutivos, do vivo e do morto, os sentimentos de Lucrécia, diante dos demais personagens e das coisas do romance são por vezes nem isso nem aquilo: “Ela o desejava porque ele era um forasteiro, ela o odiava porque ele era um forasteiro” (p.56). “Lucrécia acompanhou-o com os olhos até ele desaparecer de vista... Pôs-se então a esperar, sem compreensão, sem incompreensão” (p.39/40). Podem assumir de repente um aspecto terrível que ultrapassa a possibilidade de categorização, ou mesmo de imaginação:

  • ... coisas terríveis e delicadas jaziam no chão. O parafuso perfeito (p.52).
  • Tinha medo de ver num mesmo olhar um trem e um passarinho (p.61).
  • Assim era. E a seu lado, o menino de porcelana tocando flauta. Uma coisa sóbria, morta, como felizmente jamais se poderia imaginar (p.68).
  • O aposento se revelava em claridade, a porcelana faiscava — essas coisas longamente provocadas resplandeciam aos olhos: também assim não! Dizia estremecendo sob o mecanismo por ela mesmo desencadeado (p.73).
  • Oh, as infinitas posições da sala, como se alguém se deitasse no chão e olhasse no teto a lâmpada oscilar... podia-se ter uma vertigem à orla de um bibelô (p.100).

Até mesmo as palavras, com que o livro é escrito, provocadas na sua materialidade, independente do significado que possuem, como sortilégios, ganham vida e podem de repente saltar para fora da folha, nos olhos do leitor: “Então o rapaz disse aquilo que era lustroso como um escaravelho: — Os seres pelágicos se reproduzem com extraordinária profusão, exclamou afinal de cor” (grifo nosso, p.30). (As palavras soam lustrosas como um escaravelho, tanto quanto são lustrosos os animais em atividade a que elas remetem.) “Porque Lucrécia Neves não os entendia, não sabia como olhá-los: procurava um modo, outro, e de repente: lá estavam os bibelôs. Quase a palavra: bibelôs” (p.101). “Pasto... dissera ele. Voltava-se rápida à palavra que lhe lembrava sonhos de sonhos, o terror escapando das paredes e vivendo calmo, ela feliz” (p.131).

Opacidade, uma certa crueldade e afetividade

Os personagens guardam uns dos outros sempre uma certa opacidade, não sendo nunca inteiramente compatíveis, nas suas atitudes, ações. São recíprocos numa mútua indiferença: “E não havia mesmo motivo de lhe dar amor — ele apanhou uma pedra e limpou-a da poeira mostrando uma intimidade com coisas sujas que Lucrécia Neves olhou atenta sem entender — realmente não havia motivo” (p.41). Às vezes, estão lado a lado como coisas, e com as coisas: “embora soubesse, enquanto olhava as pedras, que ela nada faria dele nem ele dela — porque assim eram eles e mais adiante estava o riacho”, (p.42/43). Na sua comunicação, há algo bruto, brusco, imprevisível: “Ele era delicado. Pôs-se mesmo a assobiar um pouco. Mas o momento ficava cada vez mais insustentável, que sucedera? Ela disse com humildade e sonho: — Que dia cheio de vento, heim?” (p.46). A aproximação dá-se pelas vias do constrangimento: “Perseu procurou em vingança mostrar que bem sabia que ela andava com a bolsa cheia de coisas inúteis, flores murchas de baile, papéis; procurou com sabedoria mostrar ao menos que via porque não se podia sequer entender” (p.47). A afetividade está enredada com o constrangimento:

  • De outras vezes, quando a filha a tocava, Ana se sobressaltava e ainda tentava trotar entre as coisas. Mas hoje arfava ligeiramente. Foi mesmo? Repetiu inclinando um rosto a que algum pensamento de tranqüilo desespero deu uma expressão de amor tão luminoso que se alguém a visse teria visto o amor (p.63).
  • Mas diante do olhar contente de Ana a moça não suportou mais, e alguma coisa enfim se quebrando desafinada, ela engoliu a comida, ergueu-se correndo e estava ajoelhada junto da mãe que a fitava aterrorizada e vermelha de prazer... (p.64).

Não apenas a relação de Lucrécia com os outros personagens é opaca, mas a relação dela consigo mesma também é opaca, e por isso mesmo, concreta: “Lucrécia Neves tanto vivia se mostrando que algumas vezes chegava mesmo a se ver. Só que se via como um bicho veria uma casa: nenhum pensamento ultrapassando a casa. Era essa a intimidade sem contato dos cavalos” (p.79).

No universo apresentado por Clarice, o acesso ao outro que poderia ser franqueado pelo conhecimento aparece antes como uma ameaça: “Foi assim que ela escapou de saber. A moça tinha sorte: por um segundo, sempre escapava” (p.92). “Podia-se pensar tudo contanto que não se soubesse. Embora ainda fosse arriscado. Oh, mas ela tomava cuidado”, (p.98). As coisas não podem ser nem pensadas inteiramente, nem comunicadas de um personagem a outro, e aparecem sempre de lado:

  • Além disso como contar a Perseu ou mesmo conseguir pensar, se tudo aquilo era feito de coisas das quais se se quisesse pedir prova... Para mantê-las, era preciso apenas acreditar e mesmo não se dirigir a elas — toda a cozinha era uma visão de lado. Cada vez que se voltasse para o lado, a visão estaria de novo de lado (p.94).
  • As coisas eram difíceis porque, se se explicassem, não teriam passado de incompreensíveis à compreensíveis, mas de uma natureza a outra (p.100/101).

Mas talvez não seja preciso compreender, pois há um estágio anterior à compreensão, que não pode ser traduzido completamente em conceitos e que parece bastar à personagem: “O que não se sabe pensar se vê! A justeza máxima de imaginação neste mundo era pelo menos ver: quem pensara jamais a claridade? pelo menos Lucrécia pensava e batia a pata”(p.102). Esse estágio implica uma tarefa que nunca se esgota, de ir de concreto em concreto, aí está a verdade: “Uma inteligência tardia, tendo-lhe revelado o gesto, ela pensou que poderia descrevê-lo. Mas passando o instante de clarividência, o farol de novo percorrendo outros campos e deixando-a no escuro — de novo ela não conheceria a verdade senão revivendo mesmo os momentos inúteis” (p.164). O ideal é não concluir: “Se fosse possível alguém compreender e não tirar nenhuma conclusão — assim o rapaz olhava profundo” (p.41).

A afetividade é algo que aponta para o insubstituível de cada coisa, como a morte, exigindo, por vezes, como é o caso do amor, uma entrega completa, que perde o sujeito: “Desde que o amava encontrara simplesmente o sinal de fatalidade que tanto procurara, esse insubstituível que mal se adivinhava nas coisas, o insubstituível da morte: como o gesto, o amor reduzia até encontrar o irremediável, com o amor se encontrava o mundo, ela estava perdida” (p.165). Nesse sentido, o amor é uma ameaça à personagem e ao romance. Essa ameaça só não se torna efetiva, porque a perdição a que leva o amor conduz Lucrécia de volta às coisas na sua concretude:

  • Então era isso o amor por pessoas, reconheceu ela. Também esse amor era claro e inexplicável. Mas bom — pão e vinho e bondade. Sim , sim, ela estava bastante perdida. Bem lhe parecera sempre que antes de mais nada era preciso se perder. Bem sabia que, tentando através da sala de visitas olhar as coisas que existem, não tivera coragem de ser guiada pelos objetos: caíra, sim, porém tivera medo e agarrara-se onde pudera. Se tivesse caído até o fim, saberia que fim de queda era estar sob o céu estrelado? E era ver que o mundo é redondo, e que o vazio é pleno, e que milho crescendo é espírito? (p.167).

Mesmo conduzindo Lucrécia de volta às coisas na sua concretude, o amor traz consigo a consciência de um terrível perigo, a saber, da crueldade latente que seria a afronta da opacidade que separa os seres:

  • Foi entre a boca e nariz — não nesse espaço, mas numa possibilidade de movimento egoísta e sem culpa que ali se pressentia, nesse trecho que não tinha sequer um nome — que descobriu por onde o amava e por onde Lucas poderia ser ferido. Imaginou quanto sangue jorraria daquele ponto se através deste o homem fosse atingido. E viu num sobressalto de dor e arrebatamento, que uma criatura só era assassinável na sua beleza (p.168).

Alguns personagens mantém-se para sempre afastados do amor, aferrando-se à sua própria opacidade. É o caso de Perseu, que ressurge no final da narrativa:

  • Sem ser pai, já não era filho. Achava-se em ponto luminoso e neutro. E esta realidade ele não transmitiria a ninguém. A nenhuma mulher sobretudo. Como jamais daria a sua harmonia ou a forma de seu corpo. Poderia apaziguar uma mulher. Mas sua paz estranha, ele não comunicaria (p.171).
  • Nenhuma mulher receberia o calor de sua alma que ele um dia talvez desse a um amigo (p.174).
  • Nem a inocência de Lucrécia Neves, nem a danação da mulher de preto, nenhum desses ávidos seres femininos que se esbatiam em torno da realidade conseguiria tocá-lo porque ele era a realidade: um homem moço calado, metido num impermeável. Assim o viram de uma janela, a mão curiosa afastando a cortina: e ele não passava disso. Evitando as poças d'água. Além de tudo era livre: não pedia provas. Andava olhando os edifícios sobre a chuva, de novo impessoal e onisciente, cego na cidade cega; mas um bicho conhece a sua floresta; e mesmo que se perca — perder-se também é caminho (p.186).

O romance de Clarice parece ser, portanto, um olhar de lado e depois de outro lado, para cada coisa, sujeito, objeto, cidade, palavra, construída e perdida em vários combates, como as cidades erguidas e destruídas, renascidas dos próprios escombros, “porque assim sempre fora”. Essas coisas são vistas em sua intensidade à medida em que sua opacidade é preservada. A afetividade expõe-se (sem nunca chegar de fato) a um atravessamento que no limite implicaria sua própria aniquilação.

Bibliografia

LISPECTOR, Clarice. A Cidade Sitiada. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1949.