AMBIVALÊNCIAS ENTRE INOVAÇÃO E TRADIÇÃO? ANA LUÍSA JANEIRA |
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Introdução Identidades transmitidas Faz «um» tijolo tradicional, por certo Dinâmicas inovadoras Memória versus mudança? Bibliografia |
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Para a Marca Introdução Dúvida que é tanto mais pertinente quanto a nossa realidade revela ambivalências de fundo, neste particular. Qualquer olhar atento dirá que a situação actual, nomeadamente no interior do país, é susceptível de ser identificada com um (des)encontro desgastante entre: - a perda de elementos provindos das identidades transmitidas; - e a aquisição lenta de dinâmicas em termos de «pro-jectos». Além disso, a referida circunstância ocorre num contexto onde: - várias tradições foram desaparecendo, mas permanece um espírito conservador com laivos obscurantistas; - e várias iniciativas acabaram por serem vencidas, devido a desmotivações e medos endémicos com foros de generalização. Com este desmantelamento de presenças reais do passado, associado a um conservadorismo larvar, é preciso lutar para que o apelo à tradição esteja desligado de passadismos e não bloqueie a inovação. Aplicando-lhes a arqueologia-genealogia de Michel Foucault, o rigor da descrição vai implicar requisitos de carácter epistemológico, onde haverá um lugar primordial para modelos processuais com descontinuidades. Identidades transmitidas A expressão «identidades transmitidas» parece mais significativa, quando usada no plural, porquanto estas identidades são múltiplas e não estão presas a nenhuma hipóstase de tipo subjectivista. Sendo assim, o que recebemos por tradição não é uma instância singular, nem individual. Também não é homogénea e muito menos simples. Este reconhecimento opõe-se a qualquer afirmativa sobre a sua mesmidade ao longo do tempo: as identidades terão sofrido alterações, apresentando componentes com maior ou menor constância. Por isso, o modelo de abordagem não permite juízos atemporais e questiona tudo o que corresponda a um «sempre assim foi» ou a um «sempre vi fazer assim» contundentes. Na verdade, as frases feitas revelam ignorância, camuflada por uma capa de imperativo categórico. Ignorância que não serve qualquer tipo de senso histórico: por um lado, nega a historicidade ao invocar uma imutabilidade; por outro lado, outorga ao presente um passado impossível. Não sendo unitária, ela será também uma multiplicidade. Não sendo fixa, sofrerá mudanças. E isto, porque a tradição não está referida a nenhum sujeito, mas está sujeita à prática onde é exercida. Daí que os contextos de existência e as transferências por devir sejam fundamentais para mostrarem, em última análise, de que conteúdos o discurso está a falar. Quando estes adquiridos intervêm em temáticas culturais é impossível iludir quanto a teorização consequente acarreta perspectivas pouco comuns. Sendo assim, não admira que esta forma de pensar, de índole marcadamente teórica, viesse a desembocar em formas de questionamento reflexivo sobre determinados casos, com relevância para uma situação concreta, que vem sendo enquadrada por um projecto de ensino-investigação luso-brasileiro, desde 2000. Foi assim que pareceu necessário ir mais longe e indagar de que se fala, quando se diz que o Telheiro da Encosta do Castelo, em Montemor-o-Novo, faz «o» tijolo tradicional. Faz «um» tijolo tradicional, por certo. Mas segundo que tradição a romana? a árabe? a do século XIX? a do princípio do século XX? Isto está a ser analisado (1), usando conhecimentos químicos e geológicos, nomeadamente. Talvez não desemboque numa conclusão com surpresas, mas, o facto do problema ter sido equacionado revela, por si, uma posição diferente daquela que o senso comum veicula geralmente, e repete sem discutir. Este modo de fazer intervir professores e alunos do ensino superior num espaço de produção tradicional decorre da certeza de que as ciências e as técnicas podem revelar-se úteis, quando sabem actuar, longe de qualquer ideia que lhes caberá sempre a última palavra e contra qualquer quimera de comensurabilidade, certa e segura, entre as ciências e os saberes. Importante será também contribuir para desmistificar a ideia de uma tradição só daqui e desde sempre aqui. Isto não significará defender qualquer pseudo universalismo, por reprodução cega sem qualidade e por transferência sem criatividade. Isto apesar do intercâmbio, da cópia e do mimetismo demonstrarem uma complexidade especial, pois são difíceis de traçar as rotas de influências passadas, na ausência de elos, ou as rotas de influências presentes, dado o emaranhado globalizante. Outra coisa ainda é o genuíno. A atracção pela origem tem actuado com força durante os tempos modernos. Liga-se-lhe a dominância do tempo, a «corrente de consciência» e outras coisas mais. Todas expressões de uma razão à procura da supremacia da racionalidade, logo de si mesma. Todas acompanhadas pela norma, a igualdade, o nivelamento, ao usarem como exercício um maior ou um menor controlo. Contraditoriamente, o genuíno atrai por um não-sei-quê de fuga para trás, para aquilo sobre que se não tem mão. E que pertence a um limite de onde retiramos, por fantasia, uma autenticidade perdida. Autêntico vem de autor(ia)(idade), a filologia o mostra. Só que houve épocas onde não era preciso a assinatura para autenticar. Nas artes e ofícios isso ainda vai perdurando, testemunhando outras condições de existência. Isto sem dizer que não existam positividades específicas nas artes e ofícios: neste particular, os critérios e as regras de constituição dos fazeres são gerados pelos saberes, práticas aquém das ciências. Enfim, que razões evocar para localizar a qualidade no pretérito? O século XX trouxe um redimensionamento do conceito de tempo. E isso aconteceu devido à descoberta do tempo virtual ou devido a uma das suas consequências, o alargamento do tempo real. Aconteceu também, porque começou uma nova concepção do pretérito e do porvir. De facto, foi a partir daí que duas ideias novas emergiram: se é certo que o surto patrimonial aponta para o passado, enquanto elemento fundamental do presente, também é certo que o surto ecológico aponta para o futuro, enquanto valor-medida a que devemos sujeitar o presente. Sendo assim e porque a vida exige a dimensão prospectiva, ela corresponderá sempre a um critério imprescindível das dinâmicas que suportam e individualizam os fluxos de actualidade. Por natureza, qualquer «pró-jecto» é um futuro antecipado. O que não invalida que não seja ainda um presente prolongado. Neste sentido, projectos inovadores equivalem a uma quase hipérbole, por causa das potencialidades de novo imanentes ao conceito de tempo-para-vir. Será que a insistência nesse tipo de adjectivação tem a ver com um prolongamento positivista, aliado à ideia ingénua de um progresso larvar? Como só é válido no seu contexto e encontra grande resistência académica, o saber tradicional alimenta tendências de auto-fechamento e de auto-fixidez. Não sendo susceptível de generalizações, a produção materializa séries e seriações com pouca adesão ao devir e pouca abertura ao exterior. Aspectos que nem sempre são negativos, porquanto favorecem sedimentações ancestrais e acumulos, depurados pelo conhecimento testado e pela experiência apurada. Contrapartidas que favorecem uma existência prolongada para estes produtos. Nem tudo que é antigo vale. Nem toda a memória merece ser salvaguardada. Nem tudo que está a desaparecer poderá ser preservado. Para evitar o descrédito e o pessimismo decorrente, parece importante deliberar antecipada e acertadamente sobre a viabilidade financeira de iniciativas relacionadas com a memória. Este pressuposto tem muito peso, se queremos evitar escolhas votadas ao fracasso e negócios mal parados. Muito possivelmente devemos procurar, no momento e na forma como o Estado-Providência emergiu em Portugal, as razões estruturais que rodeiam a conjuntura presente. Por outras palavras, muito possivelmente a nossa história poderá explicar esta sequência de nexos: tendência para esperar demasiado do Estado + desapontamentos por apostas individuais mal sucedidas = medos larvares perante riscos a assumir = desresponsabilização do que cabe a cada um fazer para gerar o bem de todos. Daí que pareça necessário que se encontre uma saída, de modo a que a actividade associativa se desdobre em aconselhamento empresarial, apoiando técnica e afectivamente as cooperativas num primeiro tempo, e permitindo, por isso, a viabilidade inicial da empresa, saída de um curso de formação. MONTEMOR-O-NOVO, Maio 2003
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NOTAS (1) No âmbito do projecto Inovação, tradição, globalização - formas de viver, formas de pensar, formas de habitar: ciências, técnicas e saberes (www. saberes.no.sapo.pt e www. fazeres.no.sapo.pt) - coordenado por Ana Luísa Janeira, estão a ser feitos estudos orientados pelo Prof. Doutor Manuel Oliveira, Geologia, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e pelo Dr. João Luís Antunes, Química, Instituto Politécnico de Tomar. ANA LUÍSA JANEIRA. Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL) - Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral - Calçada Bento da Rocha Cabral, 14 - 1250-047 Lisboa janeira@fc.ul.pt e analuisajaneira@clix.pt |
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