Memórias da guerra colonial – 2

 

 

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


JOSÉ CARLOS SCHWARZ
Disse que ia escrever sobre ele, eu não conheci o José Carlos, dizem que eu o conheci! O António Taveira, colega de turma no Liceu Honório Barreto, quando leu um poema meu do livro Chão de Papel, chamou-me a atenção para uma passagem em que eu lembrava que uma vez, no liceu, houve um grande tremor entre todos, conversas segredadas, medos, porque um dos estudantes tinha fugido para o mato. Quando os rapazes fugiam para o mato, isso queria dizer que se tinham ido juntar às tropas de libertação, aos “terroristas”. Então o António disse que esse rapaz era o José Carlos Schwarz, mas eu não me lembro, não me lembro nada, e ainda menos me lembro de ver esse estudante ir para o Liceu a cavalo. Hoje até sei que o cavalo se chamava Gaúcho!
No meu espírito, na Guiné não havia cavalos. Eu só li sobre cavalaria a propósito, salvo erro, das campanhas de pacificação de Teixeira Pinto, mas não eram as tropas de Teixeira Pinto que andavam a cavalo, sim os grupos de fulas que tinham descido do Gabú para o ajudar. Esses, sim, tinham vindo a cavalo da zona alta do Futa-Djalon, provavelmente de Bafatá, e pelos vistos não se incomodaram com a Tzé-Tzé, a mosca da doença do sono, que se dizia matar os cavalos.
Em Bissau existia uma estátua de Teixeira Pinto, no jardim do mesmo nome, para onde costumávamos ir da um passeio, aos domingos, quando morávamos no Alto Crim. A sombra e o perfume das casuarinas eram um refrigério. O destino dos monumentos deste tipo heróico e político, cujo valor é apenas o de propaganda, dura o tempo do regime que os erigiu. Hoje diz-se, em vez de propaganda, visibilidade. O seu destino é o da escuridão. Os guineenses dão luz aos seus próprios heróis, caso de José Carlos Hans Schwarz, cujo nome, ao declinar a ascendência paterna alemã, merecia só por ele um artigo. Em alemão, “schwarz” quer dizer “preto”. É possível que o pai fosse um judeu alemão escapado aos crematórios nazis. Imagino, nada vi escrito sobre o assunto, porém na Guiné e em Cabo Verde, tal como noutras partes do mundo, havia outros refugiados, e de outras guerras, caso dos sírio-libaneses, A nossa professora de Francês, aliás promotora da construção do Liceu Honório Barreto, também se chamava assim: Clara Schwarz da Silva. Hei de escrever sobre ela.
Espantoso ter-me escapado o facto, tanto mais que ele morava em Santa Luzia, e eu também lá morei, mas mais para o interior, na zona das tabancas, estrada de Prábis. Hei de confirmar, quando achar um bom mapa. Sim, confirmado: a estrada à mão direita da de Santa Luzia, no sentido do quartel, era a que ia dar a Prábis, de onde vinham as mulheres de balaios à cabeça, com ostras, ovos, galinhas, outros produtos alimentares, que vendiam nos mercados de Bissau.
O Zé Carlos morreu com 27 anos, em 1977, num acidente de avião, em Cuba, era então ministro ou similar da Cultura. Mandá-lo a Havana fora pretexto do governo para o afastar, porque as suas críticas ao desvio dos ideais incomodava. Que diria ele hoje?
Apesar de tão jovem, o Zé Carlos é responsável pela modernização da música guineense. A sua banda mais famosa foi a Cobiana Jazz. Cobiana é nome de uma etnia. Fica claro o propósito de juntar a música africana ao jazz. Os poemas passam a ser cantados em crioulo, o que também é forte inovação. O crioulo era interdito aos estudantes, dentro das salas de aula.
É um herói fundador, o Zé Carlos. Ligado aos movimentos de libertação, de uma parte. Da outra, à música. Passou pelo Ilhéu das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós, no tempo em que o general Spínola era governador. Dois anos de prisão com direito a tortura. Conta-se que lhe propuseram a fuga, mas ele respondeu que só se evadiria se os outros prisioneiros fossem libertados também. Só ele, não.
…….
Da passagem pela prisão do ilhéu das Galinhas resultou uma das mais conhecidas canções de José Carlos Schwarz. Em homenagem, Miriam Makeba, sua amiga e companheira de canto, gravou essa canção a solo.
Tenho pena de não o ter conhecido, ele era mais novo que eu dois ou três anos, por isso não foi meu colega de turma. E nem sei quanto tempo andou no Liceu Honório Barreto, visto que estudou em Lisboa e em Dakar. Deixou filhos no Senegal, um deles músico. Lembro-me no entanto tão bem das conversas segredadas contra a parede exterior do recreio do liceu, porque um colega tinha fugido para o mato!