Memórias da guerra colonial – 1
MARIA ESTELA GUEDES

Da minha participação na guerra colonial
Em 1959 eu estava em Bissau com os meus pais, numa ponta (quinta) em Santa Luzia, portanto fora da cidade. No mato, perto da carreira de tiro, lugar que se tornou muito perigoso para uma jovem de 12 anos. Em 1959, sabem aqueles que alguma coisa sabem da guerra colonial, esta desencadeou-se na Guiné por causa de um lamentável massacre de trabalhadores do porto, que faziam greve. Então a população dividiu-se em duas cores bem opostas, e a cor branca ficou apavorada. Toca de distribuir armas aos que estavam desprotegidos, no mato, e toca de arrebanhar os homens para a defesa civil. O meu pai saía à noite, de jipe, com outros, a fazer rondas. A minha casa, para defesa da família, foi parar uma velha carabina que devia ter sobrado como sucata da I Guerra Mundial. A minha mãe, pessoa silenciosa, que engolia todas as ofensas sem ripostar, e que só encostada à parede ousava um palavrão, quando viu a defesa que o Governo da Província lhe destinara gritou: – Eu não pego nessa merda!
A minha mãe e eu, junto da goiabeira, na ponta de Santa Luzia. Foto da época, c.1959
A merda era a defesa da família, alguém tinha de pegar nela, caso aparecesse um bando de terroristas. A mim calhou a defesa da casa, e eu até gostava, sentia-me heróica, viril, a limpar aquela merda com qualquer graxa que lhe dava brilho, e até sabia disparar, mas só se pousasse o bacamarte em cima do muro da varanda, porque aquela merda, razão tinha a minha mãe, era pesada pra burro, e nada garantia que disparasse, fosse esse o caso de vida ou morte.
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E ficámos assim, a carabina estava sob a minha proteção, volta e meia limpava aquilo e pronto. Nunca tive razões de queixa dos terroristas, se existiam.
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Na sequência fizeram de mim porta-bandeiras da Mocidade Portuguesa Feminina, só dava barraca nas paradas porque em vez de obedecer às vozes de comando do meu pelotão já tinha obedecido às dos rapazes, e isso permitiu-me, como boa aluna que era do Liceu Honório Barreto, andar de avião pela primeira vez, devia ser um avião militar, e visitar Portugal de Norte a Sul, com os meus colegas das outras províncias ultramarinas escolhidos para aquele grandioso ato de propaganda da ditadura salazarista.
Ganhei alguma fama e prestígio, de tal forma que nos anos seguintes, dava explicações aos soldados que queriam acabar o Liceu para serem promovidos. Lembro-me de um deles, o Acácio. O Acácio pertencia à Polícia, mas não era militar nem Pide, era outra Polícia. Uma vez, tantos anos passados, encontrei-o na Avenida da Liberdade, em Lisboa, era Investigador da Polícia Judiciária.
Não conto estas cenas para me darem medalhas ou honras afins, afinal fui usada como os outros para servir um ditador. Estas coisas já as devo ter contado noutros lugares, talvez em «Chão de Papel», caderno de poemas-memórias da Guiné. As medalhas seriam uma segunda ofensa, dispenso e reprovo as que agora estão a ser distribuídas para dar graxa a vaidades. Vaidade de quê? Foi uma geração atropelada, com feridos e mortos, que só em ato de profunda reprovação do fascismo podem ser trazidos a lume como prova.

19 de Agosto de 2024