MANUEL RODRIGUES VAZ
Natural de uma aldeia perdida nos confins da serra da Nave, concelho de Moimenta da Beira, só fui para Almada em 1959, com 15 anos, por motivos muito pragmáticos.
A minha irmã havia casado com um conterrâneo possuidor de uma mercearia em Almada, na Rua Capitão Leitão, pelo que o alojamento que ela me dava já equilibrava mais as despesas do meu pai, que era um pequeno comerciante de batata, cereais e presunto, que ele preparava a preceito, tanto que chegavam a ir de Lisboa à minha aldeia para comprar o dito.
Naquele tempo, Almada não era nada a cidade que é hoje. A Cova da Piedade, onde ainda continua a viver o pintor Carlos Canhão, testemunha peculiar de uma época, ficava distante, era preciso atravessar o Pombal, onde ainda havia a Quinta do Pombal, propriedade da família Teotónio Pereira, que vivia na Casa da Cerca, hoje um Centro Cultural, e cuja especialidade era o vinho de missa Pombal. Para ir ao Cristo Rei era preciso apanhar um autocarro. Cacilhas era o Ginjal e pouco mais, não esquecendo a tradicional burricada – corrida de burros – sobressaindo os armazéns da Companhia Portuguesa de Pesca, do Almirante Tenreiro, onde havia gelo à venda e um primo meu, ali empregado, conseguia as melhores sardinhas que eu algum dia comi.
Além do Mercado Municipal, que naquele tempo pontuava o centro comercial de Almada, o outro ponto era a Praça da Renovação, agora denominada das Forças Armadas, com três estabelecimentos de evocação obrigatória: a Pastelaria Dragão Vermelho e o Café Central, e a papelaria Nova Almada, mais conhecida por Papelaria do Alberto, que marcou a vida de muitos estudantes de Almada, por ser aí que se compravam os livros escolares, e tinha um empregado muito dado à cultura com quem vim a fazer amizade.
A nível cultural, o primeiro grande evento a que assisti em Almada foi em 1960, a I Exposição de Poesia Ilustrada, organizada pelo Francisco Peniche Galveias, na Pastelaria Dragão Vermelho, onde a estrela foi o Louro Artur, jovem artista almadense que viria a dinamizar a vida cultural almadense de várias maneiras, nomeadamente com a fundação da IMARGEM – Associação dos Artistas Plásticos de Almada, ajudando a concretizar uma ideia do Francisco Bronze, um artista plástico algarvio que foi das grandes promessas da crítica de arte em Portugal, e que ainda continua a viver em Almada.
No Dragão Vermelho, – a escolha deste nome não era estranha às circunstâncias políticas da época – que tinha uma decoração modernista, era comum aparecerem os irmãos do trio Odemira e vários fadistas e cançonetistas baratos. Foi a experiência com arte ali começada pelo Francisco Peniche Galveias, que viria a dar origem à Galeria São Francisco – do seu nome – que ainda está aberta na Rua Ivens, em Lisboa, assim como à Galeria Galveias, que esteve aberta na Rua da Misericórdia, também em Lisboa, com que a sua viúva o homenageou.
O Café Central, embora frequentado pela maioria da malta, por ser mais amplo e ter alguns refúgios recatados, onde estudei muitas vezes com o meu colega Jorge Prates, era o preferido dos chamados intelectuais. Ali escrevia desalmadamente Romeu Correia, sempre que não estava a conversar, despontava o crítico de arte Fernando Pernes, que havia um dia de estar à frente da Casa de Serralves, no Porto, e advogados, como o Herculano Pires, da esquerda moderada, e o Luís Álvaro, uma ave noturna da direita também moderada, além do jornalista Alfredo Canana, felizmente ainda vivo.
Jorge Quaresma, anarquista, natural de Setúbal, filho de José Quaresma, também anarquista, cuja barbearia foi local de encontro e conspiração (secreta) de muitos anarquistas, frequentava também o Café Central, onde se reunia e encontrava com outros anarquistas, nomeadamente José Correia Pires, José Brito (o “Velho Brito”), Sebastião de Almeida e Jaime Rebelo. Não esquecer, entretanto, a tertúlia do Carlos Durão, onde pontificavam: António Calado, Arménio Reis, Fernando Coelho, Francisco Bastos, Henrique Mota, Jaime Feio, Ludgero Braz, Manuel Machaqueiro e Miguel Cantinho, entre outros.
Nesta evocação da Almada de há cinquenta anos, marcada pela personalidade de Romeu Correia, que era presença recorrente no ringue de boxe que havia atrás do quartel dos bombeiros, era célebre a casa do fotógrafo Paixão, na Rua Bernardo Francisco da Costa, perto do Mercado, quase em frente à antiga Sapataria Madeira, que quase me batia sempre que lá ia fazer fotos para documentos, tal o seu perfecionismo das poses que exigia agressivamente. Juntamente com a Fotal (Fotalmada) do Faustino, na Praça do Comércio, foram à época talvez as mais conhecidas e importantes “casas de fotografia” de Almada.
A sapataria Madeira era de um popular almadense dos anos 50-60, António Madeira, cantor, que tinha um programa semanal – Ondearte – todas as segundas-feiras às 19h 30m, na antena de um dos então Emissores Associados de Lisboa (Radio Graça, Radio Voz de Lisboa, Clube Radiofónico de Portugal e Rádio Peninsular).
Naquela altura, princípios dos anos 60, as conversas no Café Central começaram a ser mais animadas, pois, além do Romeu Correia, apareceu a poetisa Maria Rosa Colaço, que, com o seu marido, o advogado Malaquias de Lemos, ligado umbilicalmente ao teatro e ao desporto e que chegou a ser presidente da Associação de Futebol de Lisboa, dinamizaram vários grupos, onde também aparecia o padre e poeta António Leitão, que, entretanto desapareceu, pois fugiu para a Nazaré com uma das suas freguesas.
Todos os anos, pelo Outono, aparecia entretanto, o Teatro Desmontável Rafael de Oliveira, que assentava arraiais logo a seguir à Renovação, à esquerda de quem sobe a atual Avenida Nuno Álvares Pereira, ao lado do dispensário da Luta Antituberculosa, onde hoje está a Caixa Geral de Depósitos.
Almada tinha realmente tudo, até tinha uma tasca onde se cantava o fado à moda lisboeta, o famoso Pancão, no final da Capitão Leitão, muito próximo de onde morava o escultor Carlos Soares, mais conhecido como o Irmão, e antes do bairro social onde moravam os marítimos de Angola. Tinha também outra tasca, na rua Capitão Leitão, conhecida como a Carvoaria, onde havia sempre caracóis e pontificava o senhor Viegas, cobrador da firma Jerónimo Martins, um erudito letrado que ia pontuando a conversa normalmente animada com uns copos de três.
E tinha um jornal semanário, o Jornal de Almada, na Avenida D. João I, em frente onde é hoje o restaurante Lagoa Azul, por sinal bem feito e muito dado à cultura. Foi lá que publiquei o meu primeiro conto, com que ganhei um concurso por ele promovido. Era dirigido pelo padre Manuel Marques, um sacerdote desempoeirado, que viria a ser reitor do Seminário de Almada. Curiosamente, outra figura da Almada da época foi um conterrâneo meu, de Moimenta da Beira, o padre António Sobral, professor no Externato Frei Luís de Sousa, – ainda hoje em atividade, em frente à praça da Renovação – grande dinamizador de jovens sem beatismos.
Por último, merece especial realce o movimento associativo em Almada na época, com algumas dezenas de instituições em que sobressaem a Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense e a Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, dois marcos inolvidáveis da vida em Almada. Pena é que a última coletividade esteja hoje reduzida apenas ao Cine Incrível.
RODRIGUES VAZ