Marize Castro e a poesia da libertação feminina

 

ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


I

 “Uma das fortes vozes femininas da poesia brasileira contemporânea”, na definição de Nelly Novaes Coelho (1922-2017), a poeta Marize Castro (1962) acaba de lançar o seu décimo livro, Jorro (Natal, Editora Una, 2020), o oitavo de poesia, consolidando uma carreira que começou em 1984 com a publicação de  Marrons Crepons Marfins, “que surpreendeu crítica e público pela força e originalidade de sua palavra”, conforme escreveu aquela mestra, ex-professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília (de 1961 a 1972) e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (de 1981 a 1992), em seu Dicionário crítico de escritoras brasileiras – 1711-2001 (São Paulo, Editora Escrituras, 2002).

Como bem observou o pesquisador da literatura potiguar Thiago Gonzaga, Marize Castro faz parte de uma geração que renovou a tradição poética do Rio Grande do Norte, ao lado de Socorro Trindad (1950) e Diva Cunha (1947), tornando-se uma respeitável expressão da poesia brasileira dos últimos anos. Vale dizer que foi esse trio de poetas que conseguiu alçar a sua voz num meio em que sempre predominou a visão machista em todos os setores, inclusive na área da literatura, abrindo espaço para falar dos desejos, dos anseios e, principalmente, dos direitos da mulher na sociedade, como assinalou Gonzaga.

Este Jorro vem para confirmar essa brilhante trajetória da poeta, cujo trabalho tem sido publicado, de maneira esparsa, em jornais de todo o País, como o Caderno 2 de O Estado de S. Paulo e o extinto Jornal do Brasil, e em revistas de cultura, como Exu, de Salvador, Nicolau, de Curitiba, Revista do Escritor Brasileiro, de Brasília, e Poesia Sempre, do Rio de Janeiro. Seus versos já foram vertidos para o inglês pelo professor e crítico literário Steven White e publicados nas revistas The American Voice e International Poetry Review, dos Estados Unidos.

Em Jorro, percebe-se que a lima horaciana da poeta está cada vez mais afiada, pois seus versos mostram a lucidez que a maturidade traz, confirmando o que dela disse o poeta e tradutor Haroldo de Campos (1929-2003): “Em seus versos há algo de fundamental, algo entre o belo e o verum, a verdade em beleza, um cuidado especial com a síntese, um encontro com a poesia”. É de se lembrar que verum, expressão do latim, quer aqui significar o verdadeiro. Eis um bom exemplo:

Enterro a morte com a lentidão dos seres da terra / Aqui não há carro fúnebre, o cortejo se faz a pé / entre rostos estranhos e curiosos / Abrigada em meio a musselinas, persevero / Lá dentro, ouço vozes de topázio: aposte tudo na vida / suas cartas / suas joias / seu destino / Entorpecida bebo a mim mesma / Celebro meu corpo que envelhece / prenunciando o início de seu silêncio / Também corto meu cabelo com afiado ferro / Não mais vocifero, amo (…).

II

Adepta do verso livre, em que dispensa o uso de pontos e vírgulas, Marize Castro destaca-se por sua linguagem fluente, mas rica e variada, que atrai o leitor que toma contacto com sua poesia pela primeira vez, surpreendendo-se pela maneira como passa para o papel suas vivências e sua maneira de olhar o mundo. Nestes versos, ela faz referência a duas mulheres que foram vítimas do arbítrio do poder oficial e do poder paralelo.

A primeira é a poeta, pintora e fotógrafa chinesa Liu Xia (1960), cujo marido, o crítico, escritor e professor Liu Xiaobo (1955-2017), ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 2010, sem que tivesse sido liberado pelo governo chinês para receber o galardão em Oslo, pois estava condenado a 11 anos de prisão, acusado de “perturbar a ordem pública” por criticar o Partido Comunista Chinês e defender os direitos humanos. Liu Xia também seria impedida de representar o marido na premiação em Oslo e ficaria em prisão domiciliar até julho de 2018, época em que o marido já havia falecido em função de um câncer hepático.

A segunda mulher homenageada é a socióloga brasileira Marielle Franco (1979-2018), vereadora no Rio de Janeiro, que defendia os direitos humanos e denunciara vários casos de abuso de autoridade por policiais e milicianos contra moradores de comunidades carentes. Foi assassinada a tiros, juntamente com o motorista do veículo em que estava, segundo a Polícia, por um ex-policial militar e um militar, sem que até hoje a Justiça tenha apontado o mandante (ou mandantes) do crime. Eis um excerto do poema:

(…) Há um longo caminho a percorrer / Melhor abraçar a flor / esculpir um jardim onde a beleza pousa e ecoa / Ser mais e mais humana / trajar-se de mulher-esfera / e não obedecer / e não obedecer / e não obedecer / Depois procurar o céu e exigir uma saída / para este país de sol e morte / Eis que com a tempestade a delicadeza surge / e guarda em cântaros de aço palavras como / pélago, guirlanda, alabastro / À noite lembro que a poeta Liu Xia / continua presa e seu homem amado está morto / lembro que Marielle está morta / e permanece senso assassinada / – nove balas não são suficientes – Monstros nos gabinetes ordenam: / destruam o êxtase e a verdade / São eles os inimigos, gritam os atrozes.

III

Marize Castro, nascida em Natal, é jornalista, formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tem mestrado em Educação e doutorado (2015) em Estudos da Linguagem pelo Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFRN, com a tese “Areia sob os pés da alma: uma leitura da vida e da obra de Oswaldo Lamartine de Faria”. Escritor e sertanista, Oswaldo Lamartine (1919-2007) deixou vasta bibliografia acerca do cotidiano no sertão nordestino e, entre suas publicações, estão: A caça nos sertões do Seridó, Encouramento e arreios do vaqueiro do Seridó e Os açudes dos sertões do Seridó.

De 1988 a 1990, Marize Castro foi editora do jornal cultural O Galo, da Fundação José Augusto, de Natal, que circulou com regularidade nas principais cidades brasileiras, reunindo em suas páginas o que de melhor e mais significativo havia nas letras norte-rio-grandenses e nacionais. Nos anos 1990, editou Odisseia, revista multidisciplinar do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFRN, da qual foi a idealizadora e primeira editora.

É autora ainda dos livros Rito de poesia (1993); poço. festim. mosaico (1996); Esperado ouro (2005); Lábios-espelhos (2009); Habitat teu nome (2011) e A mesma fome (2016). Edita seus livros por sua própria editora, a Una, que define “como deliciosa e desamparada viagem”.

Ganhou os Prêmio de Poesia FJA (1983) e o Prêmio Othoniel Menezes (1998). Grande difusora da literatura potiguar, é também autora de O silencioso exercício de semear bibliotecas (2011), sobre o trabalho da poeta e bibliotecária Zila Mamede, e de Além do nome (2008), livro que reúne entrevistas com os mais expressivos nomes da literatura escrita no Rio Grande do Norte. Alguns de seus poemas podem também ser lidos na Internet na Germina – revista de literatura & arte (www.germinaliteratura.com.br), na Vallejo and company (https://www.vallejoandcompany.com/esa-sombra-minima-13-poemas-de-marize-castro/); e na Ruído Manifesto (http://ruidomanifesto.org/nove-poemas-de-marize-castro), entre outros sites.

 

Jorro, de Marize Castro.
Natal: Editora Una, 64 págs., R$ 20,00, 2020.
E-mail: unanatal@gmail.com