Sobre o Mário já muito se disse, algumas narrativas ouvi dizer. Muito mais se escreveu, seguramente, sobre o Cesariny. Também já li alguns textos mais ou menos iluminados. Mas pouco se disse sobre o seu espaço de nudez-de-alma, sem artefactos ou caricatura. Menos se terá escrito sobre a sua estatura emotiva, a sua dimensão enquanto ser-homem. Creio haver observado, ao longo do tempo em que tenho tido o privilégio de com ele privar, uma mutação admirável - de astro-estrela em pose para o admirador admirado, a homem verdadeiro com dúvidas, carne, sangue, suor, tristeza, espanto, alegria súbita e autêntica e, isto o mais impressionante, necessitando do acto criador, da matriz, do fazer artístico como a essência fundamental da existência, mais importante que comer, tão vital como respirar, fundante como as primeiras memórias, inabalável como a certeza de estar vivo.
É verdadeiramente espantoso que ao longo do sua longa vida tenha deixado acabar tudo o que podia dar-lhe mais - protagonismo, dinheiro, admiração. Primeiramente deixou de tocar piano (conta quem sabe que era muito bom), depois foi a vez da escrita (e ainda a semana passada ouvi um admirador confesso pedir-lhe que escrevesse mais "qualquer coisa" - "secou" é a resposta invariável). Recentemente, foi a vez da pintura, para desgosto do seu galerista de sempre e do público com acesso directo à fonte. "Secou".
Ainda recentemente, tentou convencer-me (e convencer-se) que o mesmo se havia passado com os seus objectos-instalação, acabando com o que, no fundo, restava como factor afirmativo da sua artística vida. "Já não faço nada e é muito difícil não fazer nada todo o dia", disse-me. Eu pensei "impossível" e quase ao mesmo tempo mostrou-me o "Ready-made auxiliado", belíssimo, muito recente.
Na verdade, o Mário, que é Cesariny e, já agora, Rossi e Vasconcelos, tem uma pulsão artística a que eu chamaria inesgotável se nossa vida não fosse finita. E isso tem sido para mim notável observar. Muitos dos objectos presentes nesta mostra derivam de outros, entretanto feitos e desfeitos ao sabor das vagas criativas: "Olharapo" começou por fazer parte de uma peça magnífica que havia sido construída na parede da sua casa de praia. Era uma representação dos (seus) "Medos" e era assombrosa. Depois da morte da sua irmã Henriette (a quem dedica o "Guarda-luz" também apresentado na exposição), reparei que os "Medos" haviam desaparecido da parede (como se se tivessem concretizado), sendo transformados, de súbito, numa peça intitulada "Olharapos", que viria a dar lugar, finalmente, à obra no singular.
Poderia ainda falar das inúmeras peças que vi serem feitas e desfeitas ao sabor dessa necessidade de expressão artística que cumpre o seu desígnio após serem vistas por alguém que as entenda, algumas durando o espaço de um minuto-hora-dia-mês-ano-vida. Mas o que na verdade importa aqui é que foi possível reunir este conjunto admirável de obras que irão perpetuar as narrativas clarividentes de um autor capaz da nudez-de-alma em público e que, na peça "Palavras actos", cita Artaud escrevendo "já não gosto de poemas de palavras. Os poemas de palavras não servem para nada".
Carlos Cabral Nunes |