MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov.com
Comunicação ao Festival de Poesia e Música de Vila Nova de Foz Côa. Poéticas da transgressão, em homenagem a Maria Teresa Horta. 21 de Abril de 2022
Um ciclo de ações centrado em Maria Teresa Horta, como acontece no Festival de Poesia e Música deste ano, ao trazer à baila a poética da transgressão, exige que recuemos no tempo até um ano ou dois antes da Revolução de 1974, faz agora 50 anos. É hoje reconhecido que a Constituição dela saída, no que toca à igualdade de direitos das mulheres, em muito deveu a outra revolução, empreendida por três corajosas feministas, ao escreverem as Novas Cartas Portuguesas. Foram elas Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta. Vamos ver, e para vermos utilizo parte de uma conferência que apresentei em Marrocos ao XIII EIDE / Encuentro Internacional de Escritoras, dedicado precisamente a essa obra e à reação que desencadeou. Numa segunda parte desta intervenção falarei da poesia de Maria Teresa Horta, baseada sobretudo em livros recentes, Poesis, de 2017, uma arte poética, Paixão, de 2021, e Eu sou a minha poesia – antologia pessoal, de 2019.
Três mulheres contra o fascismo
A primeira causa feminista internacional teve lugar em Portugal. Em 1973, o Estado português, ainda uma ditadura, mandava apreender os exemplares de um livro, Novas cartas portuguesas, e acusava as três mulheres que o assinavam, Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, de ultraje aos bons costumes e de abuso da liberdade de imprensa. Razão de ainda maior escândalo, eram acusadas de pornografia.
Daqui em diante, este caso passaria a ser conhecido internacionalmente como das Três Marias. Uma televisão americana e alguns dos mais importantes jornais do mundo estiveram em Lisboa para cobrir a primeira sessão no tribunal. Em Paris, duas mulheres famosas e influentes, entre outros destacados intelectuais, tomaram as Três Marias sob a sua proteção: Simone de Beauvoir e Marguerite Duras, responsáveis pela pronta tradução e edição das Novas Cartas Portuguesas em França.
Antes porém das Novas Cartas, já Maria Teresa Horta publicara diversos livros, entre eles Minha senhora de mim, apreendido pela polícia política sob acusação de ofensa à “moral tradicional da nação”. Na sequência de dissabores e ameaças, certa noite a autora foi espancada na rua por três homens. Outra atividade passível de perseguições fascistas foi a circunstância de ter dirigido o ABC Cine-Clube. É sabido que os cineclubes, locais de encontro de intelectuais e estudantes universitários, era uma arma de ataque ao fascismo, não só pelo teor dos filmes apresentados como pelos debates que se lhes seguiam, em que naturalmente predominavam ideias progressistas.
Não era apenas a sexualidade o assunto perigoso das Novas cartas portuguesas: elas atacavam a ditadura em todas as frentes, a mais sensível das quais era a guerra colonial, e punham a nu a falta de direitos das mulheres.
Considerando que o assalto ao paquete Santa Maria, pelo capitão Henrique Galvão, e a tentativa de tomada do quartel de Beja, por Humberto Delgado, nos anos sessenta, foram atos interpretados como ações de propaganda democrática contra o salazarismo, concluo que o caso das Novas cartas portuguesas obteve nos meios de comunicação do mundo ocidental audiência igual, ou mesmo superior, devendo por isso ser considerado similar bastião de revolta e ataque ao regime fascista.
A edição das Novas cartas portuguesas, em Lisboa, foi comprometida pela Polícia, ao apreender os exemplares nas livrarias. Por isso, não será erro declarar que a sua primeira edição foi realmente a tradução em França, alguns meses mais tarde.
As Três Marias só não foram condenadas e presas porque, no ano seguinte ao da interpelação judicial, se verificou o 25 de Abril. Sabe-se que a Constituição portuguesa saída da Revolução muito lhes deve, nos pontos que dizem respeito à igualdade de direitos das mulheres.
Maria Teresa Horta, a mais apaixonada e simultaneamente mais votada à lírica, é decerto a Maria que contribuiu com os textos mais eróticos das Novas cartas, se bem que elas nunca tenham identificado a autora de cada uma. Não por motivos literários, sim como defesa, uma vez que a Polícia queria saber quem tinha escrito os segmentos mais agressivos da moral burguesa do tempo. Elas escudaram-se na recusa do dizer, mas hoje é outro o milénio, outro o regime político, das três só Maria Teresa Horta sobrevive, e já vimos imagens e lemos textos muito mais eróticos, para não dizer que os mais chocantes de todos, ainda hoje, são os clássicos. Entre tantos exemplos, vejamos na TV os documentários sobre o que os arqueólogos vão pondo a nu nas paredes das casas de Pompeia.
O direito ao corpo e ao desejo femininos constitui, nas Novas cartas, uma legítima reivindicação. Ela atravessa toda a obra poética de Maria Teresa Horta.
A paixão como ato transgressor
Num período em que assistimos a uma nova investida da extrema direita no mundo, com o seu programa de horrores, entre os quais, mais uma vez, a desvalorização da mulher como cidadão; num período que nos espanta pela misoginia, que chega ao extremo de, no Brasil, o próprio Presidente da República defender a legitimidade do estupro e da tortura, neste momento tenebroso da História, a obra de Maria Teresa Horta não podia ser mais atual. O seu apelo ao corpo é permanente, é permanente a expressão do desejo feminino; simultaneamente, nesta poesia, ou na vida de Maria Teresa Horta, fica comprovada a igualdade da mulher ao homem em termos de cidadania, capacidade de trabalho e de liderança. Convém por isso chamar a atenção para o quanto são transgressores estes elementos, ao constituírem uma barreira contra o fascismo e o neo-nazismo.
A energia que de modo mais intenso desencadeia a necessidade de o corpo se alimentar eroticamente é a paixão. Ora a paixão, tema dominante da poesia em Maria Teresa Horta, começa logo por ser uma transgressão relativamente ao conceito que dela temos, o de ser um afeto passageiro. Não cometo nenhuma indiscrição ao comentar aquilo que é público e publicado pela autora, em epígrafes e dedicatórias ao marido, Luís Barros, que aliás participa da obra, não só como destinatário privilegiado mas também como autor, assinando fotografias de Maria Teresa Horta, como vemos na bela capa da antologia Eu sou a minha poesia. A paixão é um afeto que acompanha a obra até ao seu mais recente livro, precisamente intitulado Paixão. Donde, ao contrário do que em geral se espera, esse afeto nada tem de fugaz, ele sobrevive durante décadas de casamento e permanece para além da morte do companheiro.
Se a paixão e o amor afrontam sempre a moral burguesa, a arte poética também, porque envolve muita autobiografia – notemos o título da sua antologia – Eu sou a minha poesia. Notemos também o desafio daquele “eu”, manifesto da primeira pessoa. Ora escrever na primeira pessoa, cometer a transgressão de dizer “eu”, para cúmulo um “eu” de mulher, é ato a que o social costuma pôr reservas. A verdade é que a autora tem feito muito mais pela questão social, sobretudo questão da mulher, do que a grande maioria dos críticos de esquerda, cadeiral de onde parte a censura.
Acrescem a estas facetas da arte poética de Maria Teresa Horta elementos da temática, mais minudentes, mas que não deixam de se inscrever à margem do bem dizer. A sua função apoia em geral o manifesto erótico, enquanto linguagem do desejo feminino, seja em situação terna, seja de sedução mais agressiva. Alguns desses elementos são animais e pode a pulsão erótica tender para a intelectualização. Por exemplo, o livro Paixão, diferentemente de outros, apresenta poemas maioritariamente espiritualizados, em que o erotismo cede o passo ao sentimento. No entanto, a noite, a insónia, a fazerem do quarto o centro da casa, a sua maior intimidade, iluminam a permanência do corpo. Veja-se o poema “Chama”: Vem meu amor / tu és a chama / ardente como uma rosa / em nossa cama.
Entre todos os animais que se passeiam no jardim das palavras de Maria Teresa Horta, chamo ao palco uma espécie que eu não conhecia, e por isso tive de fazer alguma pesquisa para a identificar. É chamada vulgarmente Aranha-dourada-gigante, de origem asiática, Nephila maculata de seu nome científico. As fêmeas alcançam até 50 milímetros de comprimento corporal, os machos vão só até 6 milímetros. Esta desproporção não é rara no mundo animal, que apresenta inúmeros casos de enorme dimorfismo sexual, isto é, as fêmeas são fisicamente tão diferentes dos machos que parece pertencerem a espécies diferentes. É bem possível que tivesse sido esta disparidade aquilo que seduziu a autora, defensora da igualdade de direitos, em todas as suas diferenças biológicas. E tê-la-á seduzido também a teia, uma vez que a tecelagem a fascina, como fica patente no livro À mon seul désir. La dame à la licorne – À mon seu désir é uma série de tapeçarias consideradas entre os expoentes da arte medieval, arte de timbre feminino, em que se valoriza a mulher. Aliás, a exposição da mulher a ombrear em valor com o homem fica patente em diversos poemas, entre eles os dedicados a Leonor, Marquesa de Alorna, e a Hildegarda de Bingen, a Sibila do Reno, monja beneditina considerada uma das figuras mais importantes do século XII. Hildegarda de Bingen é uma santa e doutora da Igreja Católica. Mais uma vez deparamos com a empatia de Maria Velho da Costa com a cultura medieval.
Para voltar à aranha gigante, Nephila maculata, a sua teia aparece no poema “Pontos de Luz”, em Poesis, traduzindo então algo que diz respeito à sabedoria própria dos poetas, das musas e das sibilas, mestres de um conhecimento secreto: Há pontos assim / de Luz: // na música dos fios de seda // nephila maculata / – sabem os poetas / entre a musa e a sibila / o violino e a harpa .
Mais frequente entretanto, na lírica de Maria Teresa Horta, é a transgressão apresentar-se de forma agressiva, mediante elementos como armas brancas, facas e punhais, e animais poderosos, caso dos cavalos. “Delírio” (Eu sou a minha poesia), povoado por cavalos, lembra Patti Smith: “São cavalos / na noite /são cavalos / meus lentos cavalos de doente”, remata ela. Dominam porém os predadores: lobos, leopardo, pantera, o “lobo-tigre”, que é título de poema, e as rapináceas. Título de um belíssimo poema, “Falcoeira”, em Poesis, é constituído por vinte e um versos em uma única frase.
Esta agressividade define o tom desejado para os poemas, “Linguagem de farpa / linguagem de faca”, “versos amotinados”, em suma, algo que fira a consciência, que desperte para o conhecimento como uma estocada. Conhecimento da dor sofrida pela mulher, vítima de tantas violências, incluída a que se auto-inflige com o cilício.
Necessário também atentar no erotismo deslocado do parceiro humano para o poema. O prazer, o gozo, bem explicitados como ato sexual, realizam-se de forma poética, que transgride o natural. O poema “Despir a poesia” é exemplar sob esse aspeto. O corpo reina nesta poesia, nada se esconde dele, pelo contrário, o que continua a ser transgressão: muitos sentem-se incomodados com uma literatura que nomeia os órgãos sexuais.
A par dos venenos, das armas brancas e dos animais ferozes, como elementos transgressores, temos de pôr as bruxas, as “poetisas espadachins”, as corsárias, as sibilas e pitonisas, enfim, uma legião de modos de ser mulher e modos de entender a poesia, em que de resto não faltam os anjos e as rolas, contrastar. A presença de freiras e feiticeiras, o facto de o sujeito lírico se apresentar como elas na primeira pessoa, invoca as fogueiras da Inquisição, e isso é mais um elemento de transgressão por parte de uma autora que foi martirizada pela censura e pela polícia política. Vejamos a sua força e rebeldia no final do poema “Exaltação”, em Poesis:
não ganhei medo às fogueiras
apago-as com o regozijo
e o tumulto das palavras
Finalmente, a própria autora afirma que ser poeta é correr riscos, mas também que a poesia salva. O único messianismo que transparece desta poesia tão viva, ou tão vivente, na sua corporalidade desejante e na sua carne tão cheia de humanidade, é a poesia. Uma vez que o nosso fio de meada é a transgressão, leia-se neste messianismo poético, que tantas vezes é um apelo à utopia, uma transgressão à mais lusitana maneira messiânica, o sebastianismo, e aliás uma transgressão também religiosa. Escreve a autora, em “Descrente”:
Sou uma descrente
ensombrada
que acredita somente
na invenção da palavra
poética e sol poente
Só da poesia sou crente.
LEITURAS
– Maria Estela Guedes, “L’affaire des Trois Marias”. Conferência apresentada ao XIII EIDE / Encuentro Internacional De Escritoras – En honor a Fátima Mernissi. Tetuán, del 25 al 28 de octubre, 2018 .
– Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta & Maria Velho da Costa – Novas cartas portuguesas. Edição prefaciada, anotada e com organização de Ana Luísa Amaral. Lisboa, Dom Quixote, 2010.
– Maria Teresa Horta, Poesis. Lisboa, Dom Quixote, 2017.
– Maria Teresa Horta, Eu sou a minha poesia – Antologia pessoal. Lisboa, Dom Quixote, 2019.
– Maria Teresa Horta, Paixão. Lisboa, Dom Quixote, 2021.