Manual de Sísifo

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS


A fuga


Corri o mais depressa que podia. Mas os buracos continuaram a abrir-se à minha frente, atrás, de todos os lados, com um som cavo de vísceras cegas de um qualquer gigante apodrecido. Não sabia o que se passava, o alcatrão e o cimento deviam ser robustos, não desta qualidade quebradiça e frágil de porcelana ou de finíssimo gelo no primeiro Sol de Primavera. E quisera confiar, ainda, que a anomalia estrutural era circunscrita, logo chegaria à segurança, um terreno firme que todos dão por garantido, mas que quando o não há é um ai Jesus e todos os Santos, onde vamos pisar e construir e abrigarmo-nos das intempéries e dos lobos e como o homem — já sabeis — é o lobo do homem, até dos homens? Por isso, corri, mesmo tropeçando a cada passo, cair, levantar, levantar e cair, que não há tempo para cuidar das feridas, não há tempo para nada, nem sequer para pensar porquê, correr e correr e correr, senão a terra nos traga. E tragou.

E assim que entrei pela terra morna perguntei-me «quantos abismos são precisos para um homem se encontrar?»


  • Pela Graça

Disse o monge que o que não era deste mundo não devia nele entrar. A não ser pela Graça. Disse, mais, que não compete ao homem ter e deter. A não ser pela Graça. Asseverou, então, que o melhor era a renúncia, dos bens e dos prazeres, da honra e das mercês, dos sortilégios e da conquista de bens e terras e prebendas, a não ser que, por virtude de tanta abdicação, se ofenda a Graça.

Não queira o homem o que é de Deus. E de Deus é tudo; a  Graça é a Sua vontade e por isso põe e dispõe, oferta e retira. Não é, talvez, sem ironia e Dele é o próprio tempo, se antecede e restará no seu momento sem hora, serenidade sem mácula. Não compete à nossa natureza dizê-lo, cheia de dúvida do que seja, angústia do que não foi, antevisão delirante do que nunca será. Corpúsculo de pó e de chama breve, nem dura um suspiro.

E, dito isto, segundo uns, alçou-se nos ares em direção àquela noite tão nítida e plácida e, segundo outros, desceu e sumiu-se no breu.

Pela Graça do Senhor.


O Muro


Todos já passaram o muro, mas eu não sou capaz. Embora me assuste devo reconhecer que o muro não é assim tão alto nem tão escarpado que constitua, só por si, um obstáculo intransponível.

Talvez eu seja demasiado pesado, pouco ágil e, de natureza temerosa, tenha medo de cair. Passo os dias na ociosidade, sou contemplativo. Os meus companheiros estão em perpétuo movimento, são agilíssimos, andam por aqui e por ali, impacientes e ruidosos. Eu, pelo contrário, amo a paz, o sossego de um riacho vizinho onde passo as tardes olhando o tão agradável bosco que o rodeia. E as mutações das correntes, na velocidade, nas cores da superfície, azul-céu, verde-esmeralda, e, depois da chuva, de uma cor indefinida e terrosa, e os animais que são atraídos pelo manancial que se vêm saciar ou que habitam esta frescura aquática. Em nenhum momento tenho de ultrapassar obstáculos, é suave a descida até à água e o nosso povoado é limpo, de estradas amplas e nada para nós é agreste neste vale fértil, ao abrigo das intempéries na sombra tutelar de duas montanhas imponentes cujo cume, como já deveis ter calculado, nunca visitei.

Assim, só o muro foi e é barreira e eu deixei-me obcecar por ele, olhando-o, de perto e de longe, conhecendo-lhe o perímetro, procurando alguma reentrância onde pôr o pé, agarrar-me com mais força, uma qualquer imperfeição que torne possível ultrapassá-lo. Podeis pensar que seria então de ir buscar uma escada ou escadote que tornasse fácil a conquista. Mas meus amigos tomariam isso como um sinal de fraqueza e isso isolar-me-ia ainda mais perante todos. Eles, aliás, são bastante cruéis, nunca me auxiliaram a ultrapassá-lo e deixam-me aqui sozinho. Desaparecem tardes inteiras detrás do muro, exploram o palácio abandonado e, outrora, imponente, mas que guarda segredos magníficos que me são tão inacessíveis como se estivessem na longínqua Ásia, rodeados de selvas perigosíssimas, com tigres e bandidos e animais fantásticos de toda a sorte capazes de engolir um homem inteiro de uma só vez. Na verdade, só o muro que guarda, impassível, essa construção cega de ruína se mantém sólido e forte e inteiro, um impedimento diabólico à minha felicidade.

O muro, este muro. Não suficientemente alto, não suficientemente intransponível para que qualquer um o suba, apenas eu o não logro. Eu que sou cobarde, eu que tenho vertigens, eu que não sou adestrado na arte de subir muros e que não sei improvisar subindo este.


  • O Homem Transparente

Como qualquer homem transparente, não logrei atingir este estado de um dia para o outro, mas num progressivo e suave esmaecimento de mim. Um esbater. Imprecisos os contornos, em primeiro lugar, uma anatomia visível de veias e órgãos, depois. Por fim, o nada à vista e, embora ainda sólido, desconfiando que a eteriedade será o passo natural. Incorpóreo  fantasma será não pior destino do que ser ignorado e, em constante, experimentar uma vivência d’atropelos pela afanosa gente que ignora o que não vê. Desconfio, também, que esse estado-de-menos-do-que-gasoso me fará ingressar na imensa comunidade de espectros, agora que já não mantenho contacto com uma humanidade, para mim, estrangeira.


  • O Escolhido

Nada, não sou nem nunca fui nada e — em boa e honesta verdade — também nada nunca quis ser. Bem vedes, contento-me com pouco, ponto inextenso no espaço, ou nem isso, em breve, brevíssima fulguração de um instante que agora se acende. Mas, como é pálida a breve chama do que sou. Bruxuleante por entre as sombras para logo se apagar como se jamais tivesse sido. Uma tremeluzente oscilação é o máximo que posso almejar embora, almas hajam, aí por aí, teimosas mas bem intencionadas, que insistem em atribuir-me virtudes e importância que, de todo, não possuo. Algumas chegaram mesmo a proclamar-me como o salvador, o melhor entre todos, que vindicará tantos e tão vastos sofrimentos que o nosso povo arrostou por entre guerras e pestes e fomes, e os variegados cataclismos que se abatem,  impiedosos, sobre os frágeis concidadãos, no momento em que mais vulneráveis e expostos se encontram, como que convidando à descrença. Ora, esses espíritos tenazes argumentam e defendem que essa tão grande dor será, um dia, remida por alguém que é sábio e maior e mais forte e mais virtuoso que os demais e que esse eleito é, nada mais, nada menos, do que eu, a mais humilde e também a mais insignificante de todas as criaturas, a tal ponto que a minha voz, se falar ousasse, jamais chegaria aos audazes prosélitos que proclamam tal glória de mim.


  • Ultramontano

Eis a última barreira antes das terras encantadas. O que têm de especial, essas terras? Respira-se serenidade, nos arvoredos e campos, na luz suave e lagos plácidos. Tudo é igual ao que conheceis por cá, mas numa versão apenas menos amarga, com tanta luta e batalha que há aqui, paixões funestas, invejas e maledicências. Intrigas. Do lado de lá, toda essa natureza belicosa se esvairá quando o espírito, afinal, se aperceber que não vale a pena lutar, não merece o esforço da posse, que cada um exista numa Primavera de si. Também aí se morre, porém o estertor é gratidão pela tranquilidade experimentada, a renúncia é veramente entendida como dádiva e assim não custa morrer. Podeis perguntar, então e aqueles que só conhecem o aço e a plenitude na refrega? Pois também eles serão acolhidos e se, ao princípio, quiserem manter os seus hábitos marciais, então, há a caça: irão para as altas montanhas onde as antigas bestas de grande porte lhes darão a luta amada, até que percebam que todo o combate é vão, e que está, à partida, perdido porque cega para o demais da existência; e da maravilha dela. Então, voltarão para o vale abençoado.

Também eu o quero alcançar, todavia agora encerrado nesta armadura maciça, eriçada de espigões, tenho de me preparar para a derradeira prova que, mesmo coberto de sangue e vísceras, hei-de superar. Então, só então, poderei ir. Para essa terra bendita onde conhecerei o que é estar em paz.


João Pereira de Matos