Manoel Leal – Voz Equívoca (as flores eloquentes)

 

 

 

 

 

LUÍS DE BARREIROS TAVARES (Org.)


“Voz Equívoca (as flores eloquentes)” — Poemas inéditos de M. T. R.-Leal

“La poésie ne s’impose plus, elle s’expose.” [A poesia já não se impõe, ela expõe-se”] Paul Celan – 26.3.69

 

I

(cidade)

 

oh cio. idade. fluxo feliz

de fogo. que fere

as palavras mais íntimas. mais subtis.

flores perversas. flores profusas.

que dispersas. e usas.

em urnas breves e lisas.

 

Lx. 6-3-75

 

II

oh litoral de silêncio liso.

oh vasos de antiguidade.

que se vertem e agonizam.

 

Lx. 3-75 – Há uma outra versão na revista Caliban:
https://revistacaliban.net/literatura-litoral-sete-poemas-in%C3%A9ditos-de-manoel-t-r-leal-36f2e807c019

 

III

colhes as rosas.

que floresceram em vão.

em vão te deste aos deuses terrestres.

que recusaram o que. pedir. ousaste e ousas.

 

Lx. 12-3-75

 

IV

memória da manhã antiga.

em cuja praia teu corpo. pagão.

cintilava. puro vão. pura ogiva

obsessiva. tão antiga. senão

olvido. vil e antiquíssima.

 

Lx. 23-3-75

 


Artigo com poemas de Voz Equívoca (as flores eloquentes), publicado na revista brasileira “Mirada – Janela Cultural”:

https://www.miradajanela.com/2023/07/seis-poemas-ineditos-de-manoel-tavares.html


Nota sobre a letra minúscula e a pontuação

Optámos por seguir as indicações do autor quanto às novas pontuações e à letra minúscula para Voz Equívoca. Numa fase tardia da sua obra, Manoel Leal decide pontuar os seus poemas com múltiplos pontos finais, por vezes de palavra em palavra, como que frenando certas facilidades do fluxo verbal (oh cio. idade. fluxo feliz / de fogo.). Embora o tivesse pensado há muito tempo (anos 70, mais propriamente, ao que parece, num caderno perdido: Assimetrias), estas alterações ocorreram muito particularmente neste caderno em 2005 (as datas encontram-se nos manuscritos): “São pontos para estancar, digamos assim, a poesia, o fluxo, o afluxo da poesia. E, portanto, é uma maneira de estancar essa corrente de literatura ou de poesia. E, como dizer? Tentar enxugar o texto poético! Quer dizer, uma maneira de elevar o texto poético à essência, à essencialidade através da pontuação” (numa conversa em vídeo com Manoel Leal). Segundo o poeta, a par da pontuação a letra minúscula contribuiria para este efeito de escrita e leitura. Leia-se este passo: “esse ofício. fulcral. / o de escrever. ainda aflora.” (primeiros dois versos de um poema de 2003–2004, in A Duração da Eternidade, edição de autor – 2007).


Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941-2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até ao 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. O seu último emprego foi na Biblioteca Nacional, onde trabalhou durante longos anos (“a minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro, A Duração da Eternidade”). Publicou, a partir de 2007, cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram muito trágicas, morrendo absolutamente só.