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Ao lado: Luiz Pacheco, por Carlos Ferreiro
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Saio para a rua e vou à cata dos dois pequenos libertinos ricos. Passeio pelas ruas de Braga, sigo ora uma miúda ora outra, deito olhares de megatoneladas, fumo. O cinema ainda não acabou. Vigio de longe o jogo amoroso duma mocinha a palrar na rua com um marçanito, muito gesticulosa, muito espalha-brasas, e com o corpo todo pendurado para cima dele que com a mão esquerda na algibeira vai entretendo o caralho com as promessas que a vista lhe está a demonstrar.
Até aqui, tudo muito bragal. Mas está-me a apetecer agora abjecção; saí da porta do cinema chateado com a demora dos rapazinhos, até porque não sabia se teriam ido ao Teatro Circo se ao Geraldo, onde também havia sessão. E aconteceu então o inesperado: tudo aliás muito naturalmente encadeado.
Faço o meu primeiro engate de magala, na rua. Não me digam tragédias: é facílimo. É a coisa mais natural do Mundo! Venho diante do café das Arcadas e de repente noto a meu lado um magala, de passo a par do meu. Olho-o uma vez e ele olha-me; olho-o segunda vez e ele volta a encarar comigo. Silêncio. Puxo do tabaco e ofereço-lhe: ele pára, pega no cigarro, dou-lhe lume, acende o meu, seguimos lado a lado. Entabula-se a conversa: trato-o logo por tu, mas sem superioridade, singelamente, como um velho camarada. Tem bom tipo: cara magra, olhar triste, rosto varonil e um pouco fatigado. Não é bonito, mas também não é boçal nem repelente. Magro de corpo, altura média. Um tipo calmo. Sei-Ihe a história num quarteirão de casas. Não é daqui, mas de Vila Franca de Xira ou perto, tem família em Lisboa, tios e tias, está danado de estar aqui (há dois meses), já emagreceu, por causa da comida; e mulheres, nada ou quase nada, não se safa: o tal 28 é a trinta paus cada virada, onde terá ele massa para isso com o pré da tropa (uns tostões, coisa que nem chega a 5 coroas). Segue amanhã às 3 para Lisboa, vai levado para a Amadora (?) fazer um treino e lá para o fim do ano, ala para Angola-é-Nossa. Parece que é mecânico ou coisa assim. A meio do cigarro apaga-o, para guardar a beata para o dia seguinte. Desconvenço-o. Acendo-lha outra vez e dou-lhe mais dois cigarros, que ele guarda um pouco avidamente na bolsa. Vamos conversando como dois velhos amigos, de repente eu olho-o muito a direito na cara, admiro-lhe o rosto. Ele já deve estar convencido que eu sou um paneleiro rico e tem a noite safa. Mas a conversa mantém-se sempre num plano de grande dignidade: malvadez da comida nos quartéis, carestia das putas, política no Ultramar (restos da minha discussão com o sargento), guerra em Angola-é-Nossa. Não é um herói, tudo isso o entristece muito, mas sem emoção. Lamenta-se mas não choraminga. A nossa conversa tem por vezes longos silêncios de metros. Vamos agora na estrada que conduz ao quartel: é aquelas duas luzes lá ao fundo; digo que sei mas não distingo senão manchas esborradas de luz, que podem ser os candeeiros da estrada. Passam por nós, em andar cadenciado de marcha, um rancho de taratas, à pressa de chegarem ao quartel antes da meia-noite. Olham o par arrebenta mas não têm uma palavra. Dum primeiro andar umas raparigolas dão uns risinhos e dizem uns dichotes.
- Estão a meter-se comigo - diz o meu companheiro cheio de calma. Voltamos a ficar sós na estrada. Parece-me que já consigo agora distinguir as tais duas luzes do quartel. Devo-lhe uma explicação.
- Gostas de broche? - pergunto e encaro-o fito nos olhos, muito sério, muito natural.
- An, nem por isso - responde sempre calmo.
- Pois é só o que eu te posso fazer - digo, como se me desculpasse de não ser o Calouste Gulbenkian.
- E quanto me dá? - pergunta desagradável feita em tom meramente comercial.
- Olha, não te posso dar nada - diz o falso Calouste - dava-te se tivesse, mas estou tesíssimo, não tenho um tostão,já o tabaco foi fiado na pensão, só amanhã é que recebo um vale de Lisboa, amanhã às duas e meia.
- 'tão, nada feito - diz a sua honra camponesa, e pela primeira vez noto como me apetecia aquele corpo, ser dono ou servo daquele aparato movediço de carne, pele, ossos, pêlos, força. E também me pareee que ele está pronto a ir atrás de uma promessa, duma mentira qualquer, e que a recusa pela venda comercial é onde ele esconde a sua pronta adesão. Talvez o seu vício. Mas para comercial, comercial e meio.
- Se tivesse dava-te, já te disse.
Acreditou? não acreditou? O meu blusão rico de nylon, a minha barba mal feita, toda a nossa conversa, deram-lhe algum entendimento de mim?
- Ao menos, qualquer coisa para um maço de tabaco.
- Já te disse que não tenho um tostão Mas se queres tabaco, vens comigo à pensão e eu cravo lá um maço e bebes um copo ou uma cerveja. É fiado.
Paramos os dois na estrada. Aí - tenho a certeza - um pouco de insistência minha, qualquer promessa, fariam voltá-lo para trás. Mas não fiz nada disso; devo ter-lhe parecido um velho forreta, gabiru em chupar caralhos de borla. Resistiu.
- Só por isso não vale a pena, não interessa.
- Tens pouco tempo, não é?
- Não, posso recolher até à uma e mesmo ficar a noite fora. Mas não vale a pena - diz o ribatejano - é longe...
- Não sei - digo eu, quase no mesmo jogo, muito diplomata.
Voltamos a caminhar lado a lado. Calados.
- Vou ali fazer uma mija - diz o gajo.
- Vê lá se te vêem. Aqui há casas.
- Não faz mal, há aqui um sítio.
Descemos um carreiro em bico à direita da estrada. Escuridão. É o lugar ideal para mijar, cagar ou brochar discretamente. Calculo que ele está a provocar-me com o caralho fora das calças, quer festa, mas eu estou muito senhor de mim.
- É pena não ter dinheiro, aqui era um bom sítio.
- O senhor tem, há bocado disse que tinha - diz o franjolas a mijar à minha frente (e nem para a picha lhe olhei).
- Não tenho, já te disse que não tenho um tostão.
Sacudiu a gaita, voltámos à estrada.
- Ao menos, podia-me dar esse maço que tem aí...
- Toma.
E dou-lho, puxando um cigarro:
-Tiro este para mim.
Andamos, paramos. Estudamo-nos?
- Se quiseres aparecer, estou na Pensão Oliveira.
- Onde é que é isso ?
- Ali ao pé da Polícia de Trânsito, no Campo da Vinha, mesmo defronte.
- Ao pé do posto da Polícia?
- Sim.
- Então ficamos assim: amanhã das nove às nove e meia estou lá, perto do posto da Polícia.
-Tá bem.
Dou-lhe um aperto de mão.
- Como te chamas?
- António.
- E eu Luiz.
- Até amanhã, então.
- Até amanhã.
Volto para Braga. Mas o cinema já fechou. E como estou um bocado tonto, passeio um bocado. Onde será o 28? Volto para a Pensão. Lá estão os dois rapazolas; ou serão outros, parecidos?
Pergunto:
- Que tal esse cinema?
- Não foi mau - respondeu com ar de zangado.
Ora vão pró caralho! Não aturo meninos depois de ter tido homens na mão. Bebo não bebo mais verde? bebo não bebo mais cerveja? ou uma água de Castelo? Fumo? Peço mais fiados? Volto a passear e aproveito para meter aqui o episódio da excursão vianense.
Quando andava a passear à tarde fui ao Campo da Vinha. 3 autocarros da Viação Courense (? Paredes de Coura ?). Farejei minhotas. Dentro, maioria de velhas e velhos, gente cansada, garotos com sono. Duas ou três mulheres cantam, um velhadas bate palmas a compasso. O problema estava em que duas das viandantes tinham cá os namorados e andam à solta. A chefa da excursão está arreliada e diz-lhe um home:
- Nós agora tínhamos o direito dirmos embora e deixá-las acá.
Mas a chefa tem as suas responsabilidades. Eu giro à roda daquelas caixas de gente envidraçada, olho uns, olho outros cá debaixo. Elas cantam. Há uma mulheraça à janela, que quer entusiasmar a malta. Canta. Parece a minha Rosinha (Rosa da Costa Vaz, de Viana, Santa Marta de Portuzelo ), mais velha, mais fodida. Canta bem. Eu acabo por ficar fixado na janela dela. Olho debaixo. Não me apetece como mulher fito-a como fantasma. E eu próprio sou um fantasma do que era há cinco anos ou seis quando aqui estive com a Rosinha - Rosa da Costa Vaz que foste, minha mulher (que não foi) minhota. Como eu a amei! Chegam as transviadas. Vêm refilonas, suadas, queriam mais foda. Barafustam com a chefa, a chefa barafusta com elas. Os carros começam a andar. Eu estou especado outra vez debaixo da janela da mulheraça (Rosinha, Rosinha, onde estarás?).
E esta que fingiu nunca dar por mim, quando o carro arranca e me deixa esquecido, diz:
- Adeus, meu senhor .
Como quem diz: estavas aí e me viste e me desejaste, e quiseste o meu cono, e fui tua. Nunca mais me verás, fantasma de blusão negro e óculos grossos cara aparvalhada, fica-te, tarrenego!, sei lá quem tu és - não sou para ti.
E eu que era para ela. Outra qualquer. Dentro e fora da memória, fantasma para fantasmas.Vou para a cama. O vinho pesa-me na cabeça. Bebo água fria para desenjoar a gorja. Durmo como um bendito. Acordo no escuro, cedo, 6 ou 5 horas, há um grupo na Pensão que se está a levantar, batem portas. Estou excitadíssimo. O meu homem virá ao encontro? Onde o hei-de meter? Nestes quartos ouve-se tudo.
Abjecção. Remorsos. Decido não ir. Misturo a Deolinda com o António e sem mexer na picha estou quase a vir-me. De repente, tudo é tão violento que tenho de bater uma punheta.
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Como a Natureza previu todas as nossas fraquezas e ausências, dotou-nos também com outro caralho para o cu detrás. Meto o dedo (médio?) todo no cu, bato a punheta. E a ejaculação, forte porque há dias que estou sem deitar nada cá para fora, dá-me contracções no esfincter. Gozozíssimas. Venho-me imenso. Estou cada vez mais excitado. Cada passo na escada parece julgo que é o António que vem e me penetra e me obriga a chupar-lhe o delicioso caralho que não vi. Escândalo. Tribunal Militar.Vergonha. Filhos a saberem tudo. Loucura. Suicídio. Tomo meio Calmax. A pouco e pouco a corda vai-se aligeirando, estou melhor. Mas que vontade de ter pecado. De pecar. Como assim: de viver.
Descubro que o êxito e o fracasso são uma e a mesma cadeia e em tudo. O êxito para cima, o fracasso para baixo, e quando digo baixo digo baixo: sujidões, dívidas, vergonhas, podridão, loucura. Mas o que toma tudo igual é que ambas as cadeias se encontram, nada a fazer, meus caros, daqui a cem anos ninguém se lembra.
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E a nossa lição-abjecção a quem aproveitará?
Já tanto faz.
Tanto nos faz.
Braga, 16 ou 17 de Outubro, 1961.
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