Na morte de Luiz Pacheco
a 5 de Janeiro de 2008
DIÁRIO DE UM PRE-SENTIMENTO
Risoleta Pinto Pedro

2008, Sábado, dia 5 de Janeiro: Abria mecanicamente a televisão, em canal ao acaso, tanto que já nem sei qual foi, e sou apanhada pelo Luiz Pacheco a falar do Herberto Helder, depois a Estela Guedes, e Vitor Silva Tavares, e outros, e outras. Não percebi por que razão aquele programa naquele dia, mas qualquer coisa ficou a tilintar em mim e no ar...

Domingo, dia seis de Janeiro, ou dos Reis: à entrada do salão do Palácio da Pena, vai começar o concerto de Reis, o público já está sentado, nós os cantores organizamos a nossa entrada, o Paulo Brandão diz-me:

- Sabes quem morreu?

Pois, não precisei que me dissesse.

- Quando?

- Parece que foi hoje, esta manhã, esta madrugada...

- Ontem de tarde ainda estava vivo?

- Ontem ainda estava...

Segunda-feira, dia 7 de Janeiro: leio o e-mail da Estela Guedes: "figura absolutamente singular, de génio único, por isso não desaparecerá das nossas Letras"

Mesmo dia, alguns pensamentos mais tarde: nunca tendo falado com ele em pessoa, e estando certa que me seria insuportável ao vivo, pelo medo que me faz tão total ausência de medo como a que ostentava (seria real?), sempre encontrei na escrita dele, para além da total mestria, uma sensibilidade tão funda que era incompatível com este mundo. O homem não era mesmo de cá, daí talvez ter mergulhado tão profundamente no lodo e na terra, na aflição de se enraizar. Faltava-lhe o chão, isso era óbvio. Daí o esforço permanente, a pose do esgar, a máscara de vulgaridade com que ocultava o que só ele sabe, o que só a escrita levemente denuncia.

Um dia, já há uns anos, recebi uma carta. Tinha-lhe ido parar às mãos O Corpo e a Tela e ele tinha lido e falava-me disso como muito poucos haviam conseguido ler um livro tão… sem rede. Passámos a corresponder-nos de vez em quando. Mais tarde, num postal, dava-me conta que já lhe era difícil ler, a rádio era-lhe insuportável, mas ouvia as minhas crónicas na Antena 2, que lhe embalavam as manhãs de quarta. Enterneceu-me a ideia de tê-lo a ouvir-me sem me devolver palavrões, sem me achar pirosa ou romântica desbragada, mas a fechar os olhos e a descansar... talvez dele mesmo.

De vez em quando mandava-lhe dizer que um dia o ia visitar. Uma parte de mim gostaria de ir. Respondia-me que me esperava. Uma parte de mim sabia que nunca iria. Não me arrependo. Prefiro recordá-lo assim. Não sou uma pessoa muito corajosa.

Gosto de pensar que os Reis Magos o vieram buscar e que vai agora aí não sei por que deserto ou via láctea ao colo de um deles, ou sentado num camelo a vociferar contra qualquer coisa ou a dizer um poema de Herberto.