A resposta poderá ser encontrada num livro inesperado, de título expressivo – Cartas ao Léu (Ed. Quási, 2006) – por si só despertador da curiosidade leitora. Na capa, o nome de António Cândido Franco aparece em caracteres minúsculos como responsável pela “organização e notas”. É ele, no entanto, o agente transfigurador de um conjunto de cartas (às vezes não passam de simples bilhetes) minimalista em exercício de estilo marcado pela tenacidade do biógrafo e pelo bisturi do investigador-ensaísta, manejado a rigor. Da deslocação do centro do objecto em análise para arredores onde nos é facilitado o confronto com descobertas fortes a partir de indícios, pistas avulsas, recados subliminares ou dramaticamente alusivos mas sempre descodificados de maneira a salvaguardar não tanto a complacência como a solidariedade intelectual entre investigador e investigado, emerge uma das mais insinuantes propostas da colectânea.
Em substância, as cartas contam pouco enquanto núcleos textuais coesos. O que nelas verdadeiramente conta são as pequenas provocações que de lés-a-lés as polvilham. Provocações aproveitadas por ACF para mais ou menos amplos excursos iluminadores, não raro de polémico traço interventivo, mas sempre no sentido de expandir a auréola do autor epistolar a partir da sua trajectória insubordinada e insubordinadora. Por essa via segue rastreando situações e identificando pessoas e lugares contemporâneos do protagonista e da sua viagem. Trata Pacheco com a humanidade devida a um escritor que se admira. Absolve-o e defende-o em esferas sensíveis da chamada vida privada. O pedófilo, o bissexual, o promíscuo, que ostenta no seu reportório comportamental pecados qualitativa e quantitativamente suficientes para justificar a diabolização por uma sociedade de bons costumes, tem, a seu favor, a autenticidade jamais dissimulada de uma existência libertino-abjeccionista assumida até às últimas consequências - património pessoal e intelectual cheio, digno de apreço próprio e alheio: próprio, porque não terá sido fácil arrostar com as vicissitudes da marginalidade em contexto social e político tão desfavorável como foi o período da ditadura; alheio, porque à sombra da marginalidade dos “sessentas” foi construído o mito que, na cristalização da sua coerência, gerou vagas de interesse que hoje mesmo, como aqui se lê, transcendem o esboço interpretativo de carácter acidental para se afirmarem como aproximações indispensáveis à compreensão do tempo histórico português a que reportam. Pelo meio, a obra do escritor Luiz Pacheco é pacientemente analisada; António Cândido Franco não iludiu as dificuldades da tarefa que abraçou.
No remate desta nota de leitura, é forçoso referir que as cartas foram dirigidas por Luiz Pacheco a Raposo Nunes, conhecido “poeta, editor e livreiro” de Setúbal, e que Cândido Franco não limitou o enfoque a uma área restrita de ligações e horizontes de pesquisa. É possível ficar a saber-se da existência, real ou virtual, de pessoas como Raposo Nunes, Fernando Madureira, José Manuel Capêlo, Carlos César, Pedro Mexia, Jaime Salazar Sampaio, Henrique Manuel, para só citar algumas, a par de nomes mais conhecidos e reconhecidos como Agostinho da Silva, Natália Correia, António Lobo Antunes, etc.; toparmos Prado Coelho, Inês Pedrosa e José Cardoso Pires em pose não muito edificante no quadro do que Pacheco considera “uma máfia”; lidarmos com as ondas de choque suscitadas pela proposta, na Universidade de Évora, do nome de Pacheco para Prémio Vergílio Ferreira, que acabou por ir para Maria Velho da Costa, “uma repetente de bolsas, bolas e prémios”; reavivarmos na memória o escândalo do exercício de literatura comparada trazido à colação, o tal de que resultou o arrefecimento das relações entre Fernando Namora e Vergílio Ferreira; depararmo-nos com a “definição”, por LP, de David-Mourão Ferreira como putain respecteuse, (a que o visado, acrescento eu, reagiu com grande sentido de humor)… Além destas, esperam o leitor muitas outras singularidades, próprias de um modo peculiar de deixar sulco no mundo, comentadas sem pruridos moralistas por mediador credenciado. E com o aliciante de, neste assaz original retorno ao universo de Pacheco (da experiência vivida à experiência literária), a truculência deste último e a desenvoltura jocosa de Cândido Franco, que em bastos momentos se distendem e completam, não se acanharem a fazer gala, consoante os alvos, de uma pontaria a muitos títulos invejável.
Nota: Na morte de Luiz Pacheco só achei uma forma de o homenagear: enviar para Triplov uma recensão que não chegou a ser inserida na publicação a que se destinava e que, por descaso meu, foi ficando de “remissa”, assim penalizando o autor estudado e o autor da colectânea, António Cândido Franco. De toda a maneira, que a recuperação deste atraso me seja ressalvada como aceno de despedida a Luiz Pacheco, um escritor cuja irreverência fez mossa na carcaça do nosso proverbial conformismo.
S. João do Estoril, 6 de Janeiro de 2008
Júlio Conrado |