Luiz Pacheco por António Cândido Franco

MARIA ESTELA GUEDES
Foto: Maria do Céu Costa


Continuando a sua hercúlea tarefa de reunir dados sobre o surrealismo e áreas limítrofes, que n’ A Ideia – Revista de cultura libertária expõe o seu ponto mais alto, António Cândido Franco dá agora à estampa um livro sobre um dos nossos escritores mais marginais e subversivos da ideologia e modo de vida burgueses: Luiz Pacheco – Essencial.

O livro é um belo objeto, aprecio de um ponto de vista meramente bibliófilo. É o terceiro de um conjunto, Maldoror; dá-se porém o caso de não estimular muito o potencial cliente das livrarias porque mostra um Luiz Pacheco bem feioso. Não era assim tão para deitar fora, morfologicamente classificando. Nem vale a pena criticar Luís Henriques, responsável pela capa e grafismos, pois aquilo com que somos confrontados é com o realismo, ou mesmo o naturalismo, que transbordam do livro e da obra surrealista de Luiz Pacheco. O carão deslavado e feioso é próprio da idade, António Cândido não deve ter encontrado fotografias da juventude e maturidade do Libertino que se atreveu a pôr os sinos de Braga a gemer, ou tê-las-ia publicado. Eu reprovo que, mortos os autores, se publiquem, quer em livro quer em lápides de cemitério, as imagens mais recentes dos retratados. Deve deixar-se para a posteridade a imagem do que a pessoa foi na sua época de maior esplendor.

Esta conversa não é fútil, diz respeito àquilo que a arte é ou não quer ser: imagem da realidade. No caso deste livro, uma biografia, António Cândido chama a atenção para o facto de existir uma forte colagem da obra de Luiz Pacheco à sua própria vida. De um lado, o caso particular de Luiz Pacheco antecipa o que viria depois, sobretudo nas artes plásticas, o hiperrrealismo, essa escultura que, fora do museu, posta (e não exposta) em locais de trânsito comum, ilude os transeuntes, a ponto de os mover a estabelecer contacto. A ilusão do real é excessivamente forte. Depois, saltando para outros casos, como o de Herberto Helder, vemos que a colagem da vida à obra também ocorre, mas a selecção de notas vividas é muito escrupulosa. Só se escolhe da vida o que é incomum, fica na obscuridade o relato dos acontecimentos quotidianos, domésticos, sem história. E muitas vezes, o facto biográfico selecionado para a obra não pertence ao mundo real 1, no sistema de Karl Popper, aquele em que tropeçamos, sim aos mundos reais 2 e 3, o dos conteúdos dos textos e da nossa mente.

O acervo bibliográfico coligido por António Cândido Franco é vultuoso, implicou muito trabalho de investigação, leitura e organização, o que espanta, pois não se faria ideia de que Luiz Pacheco tivesse produzido tanto e obtido tal repercussão. Mas teve, e não apenas no Bairro Alto. Apraz-nos verificar que um dos contributos do biógrafo para o conhecimento desse escritor tão escandalosamente singular – sobre os seus ombros recai a responsabilidade de um movimento, ou escola literária, o abjecionismo (não será consensual esta observação, mas o esforço para a refutar trará benefícios à Literatura) – esse contributo é o de apresentar ao público um Luiz Pacheco internacional.

Realmente, a obra/vida do Libertino só nos últimos anos tem vindo a romper o círculo da pequenina análise incidente no exclusivo de que o seu mérito se deve a escrever em belo português. Não, a obra de Luiz Pacheco  pertence à Literatura, e além disso é inseparável da vida. Daqui, o não podermos analisar só o que escreveu, temos de analisar, como demonstra António Cândido Franco, o fruto da hibridação de ambas: a bio+grafia.

 

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO
Luiz Pacheco – Essencial
Lisboa . Maldoror . Letra Livre

Lisboa . 2017