ADELTO GONÇALVES
«Lucia», a biografia da grande biógrafa
Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012) e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015). |
I A uma época em que das mulheres da burguesia só se esperava que fossem boas donas de casa e cuidassem bem dos filhos, Lucia Miguel Pereira (1901-1959) foi uma personagem incomum. Ensaísta, romancista, crítica literária e tradutora, ela cumpriu uma trajetória singular, ao se tornar biógrafa dos dois maiores expoentes da Literatura Brasileira no século XIX: Machado de Assis (1839-1908) e Gonçalves Dias (1823-1864). Para recuperar essa história de vida, o poeta, ensaísta e cronista Fabio de Sousa Coutinho escreveu Lucia: uma biografia de Lucia Miguel Pereira (Brasília, Outubro Edições, 2017). Filha de um médico de muito prestígio – hoje nome de uma cidade do Estado do Rio de Janeiro – e formada no Colégio Sion, da antiga capital da República, tradicional escola católica de ensino básico privado para moças, Lucia foi, acima de tudo, uma mulher de coragem e de personalidade invulgar, que enfrentou “as amarras da sociedade de seu tempo”, como assinalou a escritora Ana Miranda no texto de apresentação que escreveu para este livro. A um tempo em que mulheres só entravam na Academia Brasileira de Letras (ABL) se fossem acompanhar seus maridos acadêmicos, Lucia, desde cedo, procurou cumprir uma carreira literária, colaborando em jornais e revistas, a partir da Elo, publicação fundada por antigas alunas do Colégio Sion, que durou de 1927 a 1929, com continuidade no famoso Boletim de Ariel, onde exerceu crítica literária até 1937, e na Revista do Brasil, de 1938 a 1943 e, mais tarde, nas páginas dos tradicionais diários Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e O Estado de S. Paulo, em cujas páginas do seu famoso Suplemento Literário pontificou com textos profundos que mais se assemelhavam a estudos literários. A erupção de Lucia no panorama literário brasileiro, porém, deu-se com aquela que é considerada a sua obra-prima, Machado de Assis (estudo crítico e biográfico), cuja primeira edição é de 1936 pela Companhia Editora Nacional. Com um estilo elegante e preciso, Coutinho faz uma análise irretocável desse trabalho da então jovem Lucia Miguel Pereira: “Lucia fixou, para a eternidade, a vida de um mestiço de origem humilde – filho de um mulato carioca, pintor de paredes e dourador, e de uma lavadeira lusitana da ilha açoriana de São Miguel – que, tendo frequentado apenas a escola primária e sido obrigado a trabalhar desde a infância, alcançou alta posição na burocracia e obteve a consideração social numa época em que o Brasil era ainda uma monarquia escravocrata. É certo frisar que, graças às tendências literárias do imperador Pedro II, o valor intelectual era então mais acatado, em comparação com o econômico e, até mesmo, com os valores hereditários”. Igualmente importante foi a biografia que fez de Gonçalves Dias, o maior dos poetas brasileiros na segunda metade do século XIX, “perfeitamente caracterizado como romântico e indianista, ao lado de José de Alencar (1829-1877), o fundador do romance brasileiro”, na definição de Coutinho. O livro foi publicado em 1943 pela Livraria José Olympio Editora, 37º volume da Coleção Documentos Brasileiros, com excepcional acolhida pela crítica. Só agora, em 2016, saiu a sua segunda edição pela Edições do Senado Federal. |
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II Se tivesse ficado resumida a essas duas biografias, a carreira literária de Lucia já seria importante, mas de sua obra constam ainda livros clássicos como Ensaio de interpretação da literatura norte-americana (Rio de Janeiro, Sociedade Felipe d´Oliveira, 1943), Prosa e ficção de 1870 a 1920 (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1950), e Cinquenta anos de literatura (Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1952), além da tradução que fez de O Tempo Redescoberto, de Marcel Proust (1871-1922), e de sua co-autoria (organização) com Câmara Reys em Livro do centenário de Eça de Queiroz, publicado em 1945 pela Edições Dois Mundos: Portugal-Brasil. |
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III Sobrinho afim de Lucia Miguel Pereira, Coutinho, que tinha apenas oito anos de idade quando a historiadora literária morreu, desde cedo alimentou a ideia de escrever a sua biografia. Na verdade, sempre foi considerado “a pessoa ideal para levar a efeito essa grande navegação biográfica”, como disse o poeta Anderson Braga Horta no prefácio que escreveu para esta obra. O parentesco vem do fato de que o médico Miguel da Silva Pereira (1871-1918), pai de Lucia, era irmão do desembargador Cesário Pereira, pai de Anah, mulher do pai de Afonso Arinos, filho, o político udenista Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990). Também o poeta e acadêmico Lêdo Ivo (1924-2012), o professor Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017), cuja mãe era irmã da mãe de Lucia, e o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), amigo do casal, entre outros, contribuíram para que fosse traçado o bem-acabado perfil de Lucia. Conhecendo profundamente os laços familiares da biografada, Coutinho valeu-se ainda de pesquisas de arquivo para estabelecer a trajetória de vida e literária de Lucia, marcada especialmente por seu trágico desaparecimento a 21 de dezembro de 1959, ao lado do marido, num acidente de avião próximo ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, em viagem de retorno de São Paulo, onde o casal havia cumprido um roteiro cultural ao lado de Antonio Candido e sua esposa, a filósofa, crítica literária, ensaísta e professora Gilda de Mello e Souza (1919-2005). Aliás, o biógrafo recorda ainda que, no dia 3 de dezembro de 1928, Lucia deixara, por insistência da mãe, de viajar no avião que faria um vôo em homenagem ao retorno ao Brasil do aeronauta Alberto Santos Dumont (1873-1932), considerado o pai da aviação brasileira. Esse avião, que iria saudar o navio que trazia o herói brasileiro, entraria em pane ao fazer uma curva brusca para evitar colisão com outra aeronave, espatifando-se nas águas da Baía da Guanabara. Morreriam seus cinco tripulantes e nove passageiros. |
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IV Fabio de Sousa Coutinho (1951), nascido no Rio de Janeiro, é diplomado em Direito, com mestrado em Direito Internacional e Comparado pela Southern Methodist University (SMU), de Dallas, Texas-EUA. Advogado, já atuou como vogal da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro, subsecretário de Justiça e do Interior do Estado do Rio de Janeiro e advogado do Banco Mundial. Foi membro da Comissão de Ética Pública da Presidência da República (2009/2012). É membro titular do Pen Clube do Brasil, da Academia de Letras do Brasil, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e da Academia Brasiliense de Letras, além de sócio-fundador da Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Em 15 de abril de 2015, foi eleito presidente da Associação Nacional de Escritores (ANE), de Brasília, para o biênio 2015/2017, tendo sido reeleito para 2017/2019. É colaborador de vários jornais e revistas do País. É autor de 30 anos de poesia (Poebras, 2008); Differences between civil law and common law procedure as illustrated by Brazil and the United States (1977); O princípio da legalidade (em parceria, 1981); Princípios constitucionais tributários (em parceria, 1993); Leituras de Direito Político (Brasília, Thesaurus Editora, 2004); Juristas na Academia Brasileira de Letras (2006); Três irmãos do Recife (2009); Alfredo Pujol (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Série Essencial, 2011); Elogio de Fernando Mendes Vianna (Brasília, Thesaurus Editora, 2010); Na cadeira de Castro Alves (Brasília, Thesaurus Editora, 2013), Lafayette Rodrigues Pereira (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Série Essencial, 2011); Em louvor a Drummond (em colaboração, 2012); Cadeira 24: dos rios do Pará aos verdes mares do Ceará (em colaboração, 2013); e Crônicas de um leitor apaixonado (Brasília, Thesaurus Editora, 2015). Participou da coletânea Espelhos da palavra/Espejos de la palabra (Brasília, Abrace Editora, 2001).
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