18 de fevereiro
mil novecentos e cinco
Anayde veio ao mundo
e só hoje é que sinto
a história de seu nome
e por não ter sido homem
vou narrar e eu não minto.
Uma luz alumiou
as terras da Parahyba
quase alumiava
as terras de mais de riba
mas foi aqui que nasceu
criou-se e assim cresceu
que nem meio caraíba.
Menina simples, formosa
de olhar por sobre a proa
brincava mirando as águas
de nossa linda Lagoa
pousada qual borboleta
no remanso do planeta
como uma nuvem que voa.
Alegria era seu nome
altivez seu alazão
crescia contando os dias
de um futuro vulcão
na leitura sua mente
no coração a semente
de sentimento e razão.
Bonita moça se fez
de olhos amendoados
e na escola normal
entre todos diplomados
de sua turma a primeira
deu seu passo de carreira
de formal professorado.
Tinha 17 anos
em maio de vinte e dois
se formando professora
que seu desejo não foi
pois queria medicina
o verso mudou de rima
o rumo foi outro pois.
Foi plantar em Cabedelo
sua sublime missão
professora do ABC
em alfabetização
crianças fazendo ler
adultos no anoitecer
aproveitando a lição.
O mundo arroseou-se
nos olhos dessa menina
não o mundo do comum
não seria a sua sina
tomou-se por ideal
e meio intelectual
fez verso de outra rima.
Apoderou-se do vento
da escrita fez pincel
construiu o seu castelo
e encheu o seu farnel
botou-se de mundo afora
despojou-se da espora
incorporou seu corcel.
Arrodeava o coreto
enamorados flertavam
a poesia de bom gosto
em mil saraus recitava
crônicas lindas fazia
o deleite de quem lia
palavras que lhe brotavam.
Um dia, sem se saber
seu coração deu ouvidos
ao amor que irrompeu
de emoção e sentido
seu anjo caiu do céu
embriagado de mel
na flecha de um cupido.
Viajou sem viajar
num campo sem tanta flor
com espinhos pra contar
a fundura de uma dor
afoitou-se em ganhar
uma alma de abraçar
numa história de amor.
O seu nome era João
Dantas era o sobrenome
o anjo de seu desejo
doce pão de sua fome
um favo cheio de mel
um facho vindo do céu
iluminado de homem.
Essa nossa ninfa alada
Anayde era Beiriz
só queria desse mundo
o querer de ser feliz
pousando seu coração
em uma pura paixão
de poderosa raiz.
Viveu tão docemente
seu romance mais vivaz
em corpos não dizíveis
de deleites não formais
pele e alma ascendentes
num vulcão incandescente
de guerra brotando paz.
Essa alcova especial
era chão de oratório
era puro paraíso
sem ter carta de cartório
era sangue, coração
brancura de uma paixão
um altar de ofertório.
Lua, rua e estrelas
assistiram o casal
em passeio de mãos dadas
em noites longe do mal
trocando duas mil juras
sintonia de alvura
que nem roupa no varal.
Foi na Rua Sto Elias
o painel de tal pintura
a natureza nutria
o amor das criaturas
sob o olhar da esperança
que no brincar de crianças
vinham trocar suas juras.
Mas o destino mudou
com sua mão tão cruel
como vassoura varreu
o chão pintado do céu
os ideais se confrontam
e a beleza desmonta
com o amargor de seu fel.
Perrepistas, Liberais
sua fronteira encerra
déias de intenção
de comandar sua terra
e o eito republicano
entorna o caldo insano
alimentando tal guerra.
Numa investida atroz
de uma depredação
se resolve de peitada
partir pr´uma invasão
e foi nesse promotório
invadir o escritório
de João Dantas cidadão.
Esperava-se encontrar
um erro de sua lavra
um documento, um papel
ou uma coisa mais brava
e o resultado ruim
o rescaldo do butim
foi de amor pela palavra.
Nessa manhã tenebrosa
numa briga de partidos
suas entranhas tomadas
derramadas sem sentido
esparramadas no chão
e o escritório de João
injustamente invadido.
Publicou-se n´A União
sem medir qualquer pudor
o que foi particular
d´um cidadão de valor
e por três ou quatro dias
na Parahyba se lia
as suas cartas de amor.
No poder o presidente
fez de conta que não viu
se espalhar pela cidade
e assim tudo assistiu
em seu belo camarote
um cruel infame trote
frente a isso se omitiu.
Na sarjeta enlameada
uma graça de valor
uma história sublime
uma história de amor
sofria seu alto preço
com o pior endereço
origem de seu furor.
Com sua honra ferida
o seu amor maculado
João Dantas enfurecido
e não se deu por rogado
em um caminho sem volta
procurou de porta em porta
o que queria tombado.
Na Confeitaria Glória
com seu coração pungente
na cidade do Recife
o desafeto presente
liquidou sua cobrança
em um tiro que alcança
quem não era inocente.
Foi preso após o crime
não tinha como voltar
viver o que lhe fizeram
não é viver, é penar
engrandeceu seu amor
perdido em plena flor
sofrendo por mais amar.
No dia 6 de outubro
na cela de seu presídio
último quartel de 30
no sofrer de seu exílio
sua vida foi ceifada
numa história mal contada
duvidoso suicídio.
Anayde amargou
o seu derradeiro fel
acuada e fugitiva
do mundo o pior réu
a 22 de outubro
foi o seu dia mais rubro
partindo pro mesmo céu.
Restou um mundo tão vil
de cartório a delegado
de abutres carniceiros
de documentos roubados
de anarquia de rua
debaixo da mesma lua
de amor-papel queimado.
A Parahyba perdeu
no século do alvorecer
por tanta alma mesquinha
rodiziando o poder
o estado é uma intriga
pela mesma rapariga
se enfrentam sem saber.
Diferente do amor
de João por Anayde
um amor personalista
que o coração incide
que sem ele não se tem
o saber de querer bem
verde-azul de um Caribe.
Esse amor que lhe falei
esse amor de querer bem
não se mistura a Estado
nem a cargo de ninguém
é um amor de estrelas
um fogaréu de centelhas
somente vistas do além.
Dantas foi aviltado
o inimigo assim o quis
Anayde humilhada
perseguidos os Beiriz
criaturas inocentes
numa história recente
de desejar ser feliz.
Rogo minha homenagem
para este centenário
de Anayde Beiriz
sua vida, seu calvário
esperando que no céu
se ouça esse cordel
no alto do campanário.
Com tinta rubra se escreva
que nos anais desse templo
a figura de Anayz
não se desmanche no vento
a liberdade da vida
é nessa história contida
acima de qualquer tempo.
Acima de nós, de vós
acima mesmo do nexo
a liberdade do ser
não tem nada de complexo
o amor tem a medida
do continente da vida
não tem a ver com o sexo.
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