Lisboa Tropical

JOÃO PEREIRA DE MATOS


Bem hajam as criaturas da noite. Aquelas de uma boémia triste. Solitária e descontente, nesta Lisboa tropical, onde habita a nostalgia na memória difusa de uma cidade secreta, semi-abandonada. Em ruína mas autêntica. Para onde se irá quando tudo fecha e se apaga e ainda a manhã demora? Quiseram a solidão habitada mas não o estrépito, um refúgio, talvez. De quê perguntarão os ingénuos que não conhecem — porque querem desconhecer — o peso da vida, o peso da memória, o peso do Sol que brilha, radiante e cruel e dissolve a sombra. E a sombra é tudo para estes seres ensimesmados, escorregadios na viscosidade dos dias, plenos tão-só no chiaroscuro das noites pois, é certo que só esta luz falsa os não magoa e é só depois do ocaso que se instala o verdadeiro tempo — que muitos chamam de boémia já que nessa dilação amplíssima não há afã de trabalho, há apenas serenidade, visão póstuma da vida que se escoa para a eternidade magoada de quem, a bem dizer, não vive excepto para o exercício perfeito de uma sã e santa melancolia.

Porque estes aspiram à santidade.

Que este calor tórrido abatesse. Nem à noite se respira e, de dia, altura propícia para o sono deles, o calor é tanto que, quando conseguem adormecer, entram numa amálgama de pesadelos, camadas espessas e opressivas, onde toda essa melancolia, tão suave, amena e, a seu modo, protectora, se transfigura numa urgência de pânico. Se estão, na vigília, a contemplar o lento decair das coisas em direcção ao nada, no sonho, há queda vertiginosa e, lá no fundo, agiganta-se a morte travestida de górgona horrível e desdenhosa que ri, ensurdecendo-os. Se suam no forno da alcova sentem o gélido Inverno a congelar-lhes os ossos por muitas mantas imaginadas com que tentem exorcizar o frio. Acordam, de facto, enregelados mas apenas porque estão banhados no próprio suor, revolta onírica contra a canícula. Não. Estas são criaturas delicadas. Não suportam o frio e muito menos este calor, inferno em vida, que persiste e aumenta, que parece amenizar-se só para retornar com maior tenacidade e escândalo, competindo consigo próprio pelo tormento que causa.

Estará próximo, o fim?

Imaginemos que o calor não baixa. Sintamos o sangue ferver, os órgãos que, um a um sucumbem, desistindo da sua função  «para quê continuar?», a água secou nos poços, reservatórios, charcos e piscinas ou é insalubre.  O Oceano escalda. Há semanas que a rede eléctrica derreteu num rumorejar de estalidos, em longos silvos agonizantes, em explosões de luz azul e derradeira. Não há refúgio. Só mais calor.

E, enquanto o calor subia entrecortava-se a seca, tornando sedentas as ruas e os homens nelas ao mesmo tempo que  uma humidade difusa e invasiva besuntava as paredes de líquenes esverdeados, fazia brotar uma vegetação doentia, omnívora e tenaz, gretava as pedras enegrecidas e transformava toda a Baixa num incerto lodaçal de venenos e miasmas.

O rio, outrora, um caudal de prata é uma língua de diamante: o Sol baixo e baço faz reverberar o salitre que é tudo o que ficou do rio como milhares de pequenas gemas, cada uma a querer-se mostrar a mais resplandecente. Mesmo à noite sob a Lua vermelha uma cintilação doida transforma esse ressequido caudal numa profusão de rubis que desorienta os pássaros que, fascinados, são presas fáceis para os lobos esfomeados que substituíram os cacilheiros na faina do Tejo. Agora, pode-se ir a pé de Lisboa a Cacilhas mas não há ninguém que tenha a coragem ou até a serventia de empreender a viagem.

Descendo as Escolas Gerais, penetrando numa Alfama ou numa Mouraria onde pululavam os insectos descomunais e alguns mamíferos carnívoros e semiloucos, qualquer um se sentia observado pelas pacatas iguanas, novas rainhas do mundo, que se refugiavam do calor opressivo nas antigas janelas cegas onde, há tão pouco tempo, se pendurava a roupa multicor. Haver-se-ia de subir mais, alcançando a Graça, para respirar um igualmente pútrido ar mas, ainda assim, um pouco menos denso que nesse dédalo de pesadelo. Já nas Avenidas Novas, por exemplo, nos seus grandes rios de lamas escusas, último estertor dos lençóis freáticos que talvez em desespero tinham assomado à superfície rompendo a calçada e o alcatrão inúteis havia um rizomático pântano entregue aos ávidos répteis submersos no pó. Os poucos que por lá se arriscam só o fazem pela necessidade imperiosa da sede, mesmo que aí só haja uma água pegajosa, negra e insalubre. Um passo irreflectido e em segundos o lodaçal, só em aparência raso, engolia um homem e só se tornava a vê-lo quando o Estio ainda mais seco revelava as carcaças devoradas, inchadas e decompostas que depois iriam ressequir-se como estátuas lunares no monturo de resíduos da antiga civilização, quando esse pantanal improvável se transformava num indistinto e compacto lago de sal.

Nesta metamorfose geral todos estavam em fluxo numa orgia de formas novas como que a tentarem adaptar-se ao novo ofício da sobrevivência. Onde antes haviam dentes agora transformaram-se em fauces de presas afiadas e letais, assim como as unhas eram garras e a inteligência que pareceu erguer esta civilização de futilidades se aplicava na astúcia de sobreviver um dia a mais. Assim, os que ficarem se ficarem alguns, serão quase mutantes, enxutos de carne, aptos a conservar a humidade no corpo. E o calor que reverbere lá fora. Caçarão o que ficar desde que os não cace também e, mesmo assim, poucos seres haverá com a tamanha ferocidade destes sobreviventes. Na ruína da antiga cidade sabem usar vários subterfúgios em seu proveito: numa galeria abandonada urdem a armadilha, da chapa dos automóveis reluzentes, inúteis sob o Sol que impera, tecem a armadura que os defende das dentuças e do desespero de outros predadores menos hábeis, ou mais confiantes e, por isso, mais estultos.

Não, não restará nenhum desta tribo contemplativa, sem preparação para nada a não ser para a saudade. Do que nunca foi e, antecipadamente, do que nunca será. São frágeis em extremo, habituados a observar a ínfima variação na brisa mas não a suportar a ínfima variação na brisa. Serão, até, dos primeiros a sucumbir, a afundarem com a grande nave delirante que é a cidade como o capitão com o seu navio. É curioso, com tanto hábito de contemplar o fim nunca lhes ocorreu cismar na sua própria extinção.

Todavia, talvez uns quantos desta tribo da noite, afinal, sobrevivam. É pouco provável mas talvez aconteça. Poderão definhar no mundo real e seco mas conhecerão o esplendor se se voltarem para uma boémia interna. Na geografia da mente conjurarão brisas frescas em jardins perfumados. Erguendo cidades de arquitectura sabiamente disposta, onde se escuta o rumor das fontes e de aves canoras em cada viela, poderão depois partir à sua descoberta, exploradores oníricos do seu próprio sonho. E poderão aí talvez encontrar, no fim de tanta procura, os interlocutores ideais, serenos e melancólicos discutindo uma arte desconhecida da História, uma arte secreta feita durante séculos na obscuridade do inconsciente, bizarra, grandiosa e de belo requinte mas, singularmente, singela.

Enquanto a hecatombe não chega e se sonha o Inverno: a solidão. Esta é seita de isolamento e profissão-laica-de-fé. E, essa é enorme, a ponto do mundo parecer colecção arbitrária de cosmos, de micro-cosmos, que se não juntam ou reúnem ou comunicam nem sequer na impossível eternidade. Fragmentos de fragmentos, cacos-velhos, resíduos que não chegam a ser pó, células sem órgão nem organismo. Que vivem, cegas, embora eles as vejam todas.