I
- Já Herberto Helder morreu, podemos destruir Portugal.
- Mas e o azeite? – disse a voz que se ergueu do meio
das folhagens. E nos perguntamos, todos nós, se mais valia a ausência do
poeta ou a presença de oliveiras.
- Até hoje – disse alguém – os brasileiros não sabem
que as azeitonas pretas e verdes consistem no mesmo fruto. Não se pode
destruir Luzitânia antes de cumprida a tarefa maior. Os inquisidores se
ergueram. Herberto Helder não lhes importava uma azeitona.
II
Meses antes, numa livraria no Porto, o velho livreiro
ergueu as sobrancelhas para dizer em tom professoral:
- Herberto Helder não escreve desde os anos setenta.
Seus livros só se encontram em antiquários e custam caríssimo. Não há nada
novo desde o fim do salazarismo.
Como quem diz “poeta preguiçoso e inservível”.
E empurrou uma edição francesa de A colher na boca.
III
- Onde estão as viúvas do poeta?
- Eram putas de nacionalidades diversas. Não eram
leitoras suas. Não justificam sequer uma daquelas edições limitadas que
ele gostava de fazer. Ele as mantinha, não o contrário.
IV
- Talvez o Brasil possa ser um bom destino para os
Poemas Completos. São duzentos milhões de potenciais leitores. Certamente
há mais leitores no Brasil que na Rússia. – não quis desenvolver o
argumento. – Façamos logo uma edição brasileira. Uma edição continental!
O autor jovem de edição limitada, que tinha inveja do
autor jovem premiado no Jovens Talentos, teve um esgar na comissura
direita da boca. Logo movia apenas os lábios para soltar o ar que vinha em
espasmos. Então o braço direito começou a se agitar e fortes contrações
abdominais fizeram a gargalhada sair grossa e contínua pela boca
retorcida. O riso tomou conta de todo o corpo e algumas lágrimas lhe
verteram pelos olhos esbugalhados. Devia fazer uso de entorpecentes. Não
valia a pena perder tempo com ele.
V
- Vamos destruir Portugal. Vamos preservar a Pátria
Educadora – engrossaram o coro. – É evidente que o desejo do poeta era ser
celebrado na maior colônia de seu império português. Os alemães morrerão
de inveja. Aquele enorme país tropical, coalhado de negros, judeus,
japoneses, italianos, nordestinos, curvando-se aos poemas do artífice
português. O spleen de sua lírica enregelando até o sol que se refrata no
mar.
VI
E assim seguiu o Colóquio. Não houve deliberações sobre
encaminhamentos.
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