VICENTE
FRANZ CECIM

Tarkovski: Através de uma fina película transparente

   

Parece-me que Berkeley percebe a matéria como
uma fina película transparente situada entre o homem e Deus.
Henri Bergson/ A intuição filosófica

 

De certas obras de arte devemos nos aproximar com passos tímidos de aprendizes de viver. E sendo inúteis as aproximações frontais, pois mais as ocultam de nós do que as revelam, só quase nos resta a opção de um tatear no escuro a sua luz, de um esboçar balbuciante a sua compreensão.

O Cinema de Andrei Tarkovski é uma dessas obras assim. Nos excede. E tudo o que dissermos dele ainda será insuficiente.

Diferente é a experiência de nos iniciarmos diretamente em seus filmes.

Quando sós, face a face com eles, sempre nos falam com ampla generosidade, se entregando profundamente, em retribuição ao nosso silêncio.

Respeito e prudência, ao falarmos deles, então se impõem. Deixar que eles se digam. E, previamente, apenas deles falar por alusões.

A alusão aqui eleita é a frase acima de Bergson sobre Berkeley, que nos remeterá à própria idéia central do pensamento de Berkeley mais adiante. E assim, passo a passo, quase sem nos darmos conta disso, teremos dito algo sobre o cinema de Tarkovski. Mas obliquamente: por reflexos de vozes ecoando em espelhos.

A frase de Bergson já nos dá o exemplo: o hesitante parece-me com que ele a inicia é signo de humildade e aceitação das Incertezas. E, precisamente por isso, também se aplica ao cinema de Tarkovski. Aqui, a fina película transparente de que Bergson fala se referindo a Berkeley vem se fundir à fina película transparente que é um filme: sua película , sua matéria prima, esse Olho aplicado à epiderme do Real, destinado a receber as impressões que a vida - Ela, que no dizer de Heráclito: Ama ocultar-se - se consentir nos doar, nos consentir a graça de ver.

Já haveria, num filme qualquer, Mistério em abundância para esse Olho mecânico, o olho da câmera, registrar, se visse apenas por si, isolado de toda presença humana. Tamanha é a Presença das coisas em si mesmas diante de nós, se dizendo a nós: Esse est percipi/Ser é ser percebido - nos diz Berkeley. E quando o olho humano vem fazer companhia a esse Olho mecânico, vem humanizá-lo , digamos assim, no sentido pleno das visões, intuições, carências, indagações, ilusões, possíveis saberes, esperanças, miragens, que fazem dele um olho humano, e se isso se dá não mais num filme qualquer, mas num filme de Tarkovski? Esse est percipere/Ser é perceber - nos diz Berkeley.

Um filme de Tarkovski sendo então uma dessas raras oportunidades que nos são dadas pela Via Estética de confrontar - no sentido já dissimulado pelo uso mais ainda vivo na palavra, de colocar frente a frente - vida e homem, o percipi e o percipere , o percebido e o perceber.

Bergson nos diz: Se 'percipi' é passividade pura, o 'percipere' é pura atividade.

A fina película então é o elemento intermediador entre a epiderme do Real, que se entrega a Tarkovski em percipi , se deixando ser percebida, e lhe permite o ato de percipere , perceber e, o por ele percebido, nos revelar.

Mas, a esta altura, ainda estamos falando da fina película que é um filme, ou imperceptivelmente já ingressamos no coração obscuro do nosso assunto: já nos surpreendemos falando da matéria como uma fina película transparente situada entre o homem e Deus?

A ambivalência das palavras, ah: tanto nos naufragam como nos socorrem.

E o que leremos a seguir, ao lermos a palavra doutrina , seja lido como sinônimo da palavra vida.

Pois é implicitamente a ela, como visão de mundo de Berkeley, que Bergson se refere, quando nos diz: Dela nos aproximaremos se pudermos atingir a imagem mediadora (...) - uma imagem que é quase matéria, pois se deixa ainda ver, e quase espírito, pois não se deixa tocar - fantasma que nos ronda enquanto damos voltas em torno da

doutrina e ao qual é necessário que nos dirijamos para obter o signo decisivo, a indicação da atitude a tomar e do ponto para onde olhar.

É permitido ao homem, através da mediação da Arte, não somente percipere/perceber mas também dar a perceber aos outros homens o que, através da fina película transparente , percebeu?

No cinema, em todas as épocas, a alguns isso foi consentido: Bresson, Ozu, Antonioni, Dreyer, mais recentemente a Alexander Sacha Sokurov e ao próprio Tarkovski.

Diante do Abismo que é o Assombro de existirmos, humanos, face a face com a espessura e as transparências da Vida que nos habita e na qual habitamos, sutis como uma sombra, densos como um corpo, devemos ser gratos a eles, pela vertigem que em nós sempre despertam, pelas quedas para o alto em que sempre nos precipitam, nos impedindo de adormecer na desoladora fronteira que inventamos para nossas omissões, no passo que não damos, entre o Imanente e o Transcendente.

Tarkovski entendeu o Cinema como a arte de Esculpir o Tempo .

E no livro que escreveu com esse título, e não apenas através das imagens dos seus filmes, nos fala de uma urgência alarmante: - O homem moderno não quer fazer nenhum sacrifício, muito embora a verdadeira afirmação do eu só possa se expressar no sacrifício. Aos poucos vamos nos esquecendo disso, e, inevitavelmente, perdemos ao mesmo tempo todo o sentido da nossa vocação humana.

Que vocação é essa?

A vocação de uma entrega total, de um consentir permanente que luzes lampejem em nós, nos permitindo ver - mesmo que por breves clarões, na vida como numa escura sala de projeções, sacrificando nossas consolações vazias, nossas paixões condenadas a cinzas, nossa avidez de um agora efêmero - aquela que ama ocultar-se e que, em seu Pudor, é a Fonte permanente do nosso mais intenso fascínio?

Clarões.

Ainda que estonteantes, cegantes. Mas de uma cegueira que nos liberte de continuar vendo através de um cristal escuro e nos conceda outros olhos capazes de ver através dessa fina película transparente situada entre o homem e Deus - sabemos o que essa Palavra significa, em todas as suas metamorfoses.

É esse o olhar que reivindicava Berkeley, segundo Bergson.

E esse é o olhar que buscou Tarkovski, com seus filmes que são fendas abertas na espessura da matéria, e que ele, também, reivindica, quando afirma:

- E o que são os momentos de iluminação, se não percepções instantâneas da verdade?

Ou quando denuncia:

- A moderna cultura de massas (...) está mutilando as almas das pessoas, criando barreiras entre o homem e as questões fundamentais da sua existência, entre o homem e a consciência de si próprio enquanto ser espiritual.

São palavras que devemos manter acesas em nós quando as luzes

se apagarem e os filmes de Tarkovski começarem a cintilar para os nossos olhos.

Nesses Templos de um tempo sem templos em que podem se transformar as salas de projeções, ante filmes como os de Tarkovski, já não se trata de simplesmente ver, mas de penetrar profundamente, através da fina película transparente que o seu cinema nos oferece, até nos revelarmos a nós mesmos, e orando em silêncio:

- Agora, abrir os olhos. Agora, começar a sonhar o sonho de ver como somos vistos .

 

 
Vicente Franz Cecim
e-mail: andara@nautilus.com.br
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Belém, Pará, Brasil: Amazônia/Literatura