Karta a K 2: Sombra de pássaros imóveis

 

Seqüências & Seqüelas:

Originais: Originantes: Originários

 

VICENTE
FRANZ CECIM


   
 

Sombra de pássaros imóveis (1)

 

Para semear a sombra humana,
basta a altura,

a Altura

Coisas escuras procurando a luz com dedos finos cheios de ervas

Imaginem

Uma região, lá embaixo, onde o pântano agoniadamente do viver.
Dorsos lisos
às vezes vêm à tona, e há águas escuras

E por cima dela, imaginem, no alto, umas brisas passando. O ser aí suavemente

A região, negra, então, ela fica por baixo,
a Negra

E elas, as brisas, passam, é bem acima de todo o mal. É só aqui que vemos a face
branca a branquíssima, mas quem sabe, em si, o quanto dura a serena.

De qualquer maneira, tudo isso se movendo em duas correntes, que não se tocam,
e através dos seres que ali havia.

Imaginaram?

E onde é? Em que geografia é, e está instalada essa região assim em duas camadas,
que não se tocam,
que ainda não se tocariam, entendam,
pois Andara é sempre desmoronamentos
É onde? Ela? A região, esta, negra, sobrevoada por essas brisas brancas?

Deixem que eu diga
Não é por fora essa geografia.
Deixem que eu lhes diga: Ela é por dentro do humano,

o que vocês já fatigados de saber, isso: que Andara é mais geografia interior, feita
de ossos e sonhos, a carne a residência contendo uns fogos imensos, em nós. Ora brandos
esses fogos

Ei-la, então: a região. E agora já quase instalada em nós, será bem dentro de nós,
se consentem em ter, pelo tempo que durarem essas palavras, uma coisa assim negra
dentro de vocês
Diz-se disso: literatura
Se diz, O jogo se dando

Se dando. Mas a ninguém. Literatura

E tendo visto esse lugar, mas ainda sem imagens,

pois onde estão as descrições: as retas e os círculos, as formas,

tendo visto, pois, sem ver, esse lugar, gostariam agora de realmente vê-lo?
Assim tudo penetrará mais fundo

Eis:
Aí há uma floresta, escura, é lá embaixo, as águas escuras
passando

e rumores, e vidas que escuramente se agitam, os dorsos lisos,
às vezes se mostram, já foi dito,
às vezes estão lá só intimamente,

ah,

enquanto, pelo exterior de tudo, imenso, solene, vazio, o mundo dorme.
Pelo exterior de tudo. Eu falo dessas pe­nugens com que a vida se oculta, se revela,
se recobre
Viram? O animal do mundo. O animal, o mundo
E nele, também nós

O pântano é o coração inferior dessa paisagem. Entendam.
O grande pântano, o lugar
ainda mais terrível desse lugar terrível: o animal, o mundo

Mas nada temam: imaginar o mal. Pois coisas ainda piores virão, e é útil, para
aprender a resistir ao mal, aprender a conviver com ele, o negro negro
enquanto ainda é pequenino

Entendem?
Está nascendo. Olhem. O recém-nascido mal agora em nós. Um ponto negro, e
depois um ponto ainda mais Negro vem, se espande

Como contê-lo?

Não contê-lo. Observar. Seu crescimento, e essas águas escuras passam sob nós
Estamos aqui para observar o mal, crescendo, para testemunhar, depois, que vimos,
e fomos só homens, vendo, homenzinhos vivendo
Mesmo que com arrepios imensos, a cada vez que um desses dorsos lisos vem à
tona, na vida, neste animal enorme, no mundo, e é em nós

Se vocês consentem em ter dentro de vocês, enquanto durarem estas palavras, essa coisa
assim negra se instalando, se dirá disso literatura. O jogo se dando
Entenderão

Então.
Se manter firme na pedra do ser
Manter-se e observar o pântano.
Mesmo que em pânico
Mesmo que

Então

Qual a melhor posição para vê-lo se formando? Esse lugar, esse pântano em que o
ser

Talvez do alto. Talvez se instalando na corrente superior a tudo isso lá embaixo, aos
dorsos lisos e as águas escuras,
passando
Se instalar entre as brisas, na corrente branca, onde o ser é leve. É mais leve

Aí, o que existe?

Se erguendo, vem da terra, varando as nuvens, uma grande pedra a imensa, uma
montanha se diz

por onde passam essas brisas, que quase não existem, e onde quase podemos
também quase não existir.

Daqui então observar a evolução do coração do mal, com menos receio em nossos
pequenos corações

- diz o homem,
à mulher ao seu lado.
Esse homem. Ele está aí.
E ele diz a ela:
- Por isso estamos aqui. No alto. Do alto apren­demos a aprender o mal, lá embaixo,
é lá embaixo, é na floresta, é no pântano, é na lama que ele está.

Mas quem são eles, esses, assim surgidos de repente para nós?

Digamos: eles, esse homem e essa mulher, são os habitantes da grande pedra, se diz
montanha. E dela se poderia também quase dizer refúgio, castelo, catedral

Em Andara, vejam vocês, um castelo sobre uma pedra,
e sob a pedra da memória, já que por sermos humanos guardamos em nós as visões antigas que os homens sempre sonham,
agora foi descoberto.
E nele há esse homem e essa mulher.

Fossem anjos, eles.
Ou se quisessem alados. Não descidos do céu, mas subidos da terra. Como saber

E agora, aqui em cima, estamos ao lado desses dois que se querendo leves

E basta.
Já tendo penetrado neste sonho até os ossos, agora o resto se precipita:

Se voavam esses dois, esse homem e essa mulher, bem baixo, às vezes, roçando as
águas escuras
que passavam,
para observar ainda mais de perto o mal na luz dos dias,
e aprender mais sobre ele

Se voaram uma vez tão baixo, que ela, tocando um daqueles dorsos lisos negros,
à noite, enquanto ele dormia, quis voltar sozinha

e se tendo voltado, ao despertar ele se viu sozinho e o lugar dela ao seu lado vazio

E se ele, por ela, desceu com asas grandes de desespero para procurar pela perdida
companhia

E se ali só viu, abandonadas numa das margens das águas escuras, passando,
as asas brancas dela, agora para sempre desprendidas,
largadas, jogadas ali

enquanto da lama, enegrecida, a face dela lhe sorria e o convidava a se lançar
também no fundo, e lhe dizendo, Bem-vindo ao coração do mal

teria ele se mantido sólido? Na pedra sólida do ser?

Ou sórdido, sorvido, teremos que vê-lo desaparecer também nessas águas escuras,
que passam

Para emergir, depois, ali adiante,
um outro dorso liso, negro, que essa água negra negra já não lavará

Melhor será nos mantermos de pedra. E estender para esse homem, ou se quisesse
anjo, ou fosse só um animal, humano, um grito longo, também de pedra,

escada, se diz, do ser para o ser caído.

O mais provável, porém, ah
é que caiamos como pedras, afundando ainda mais fundo do que ela antes

Pelo menos, do meio das pedras entre as brisas, ó relva aérea

umas serpentes já começam a aflorar.

Imaginem.

Uma região, onde lá embaixo as águas escuras agoniadamente do viver.

E agora, aqui em cima, também essas serpentes

Seus círculos que se expandem


Ah, caminho dos olhos fechados.

Para semear a sombra humana,
basta a altura, a Altura
Coisas escuras procurando a luz com de­dos finos cheios de ervas  

 

(1) De 'Ó Serdespanto' , Vicente Franz Cecim (Íman, 2001, Portugal)

 
 
 
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