VICENTE FRANZ CECIM: KARTA A K
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06-09-2004

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prostram as Contaminações do Lodo, do Lodo, ó K, em nós

   a fascinação do Outro me incomoda: meu Ímã em mim se Inverte: repugna, rechaça

também são horrendos os rouxinóis: suas Cores - Simulacros

ó K - estou muito preocupado, como Rilke com seu Deus sem sandálias, com o futuro literário do nosso amigo comum NS. Estofo para ser um escritor e tentar criar seu próprio mundo verbal, ele tem e já demonstrou & vocação para a vida literária. Disse que seu primeiro livro foi oportuno, que seu segundo livro foi melhor. E sem rancor, se ressentimentos - ah, sem ressentimentos, Vicente Franz, tu me confirmas - apesar de tudo digo que esse seu terceiro livro haverá de vir a ser ainda melhor - já li fragmentos - mas sob uma absoluta Condição: - Tem que se libertar do fascínio de Andara, escapar de suas Seduções.

Ou será, desde já, e inevitavelmente no futuro, só um subproduto de Andara - Inútil. Grotesco. - Patético?

E se NS não fizer isso logo, Já: o que será do quarto? E do quinto? Toda uma vida perdida? Sim, se nosso retornante NS, se partindo ao meio, para regressar ao Eu Único Que É, não sacrificar nele o também Inútil Pesquisador Exterior & descobrir em si que “possuímos exatamente o que desejamos” & que “as coisas que a gente procura nos acham”.

- Ó Mãe Terra semi-revelada, ó Céus semi-ocultos: estou muito preocupado com todos que se desviam de seus próprios Caminhos verbais sob o Signo do Fascínio pela Palavra Alheia . E lhes peço: - Orientem, re-encaminhem para seu próprio caminhar todos que possam vir a ser Autores em si-mesmos, de Si-Mesmos - seja esse caminhar o começar a percorrer uma pequena via ou já os Imensos, os Sem-volta, os Caminhos que nos ampliam nos aléns-do-homem com que Nietzsche se sonhava Zaratustra

se a via é estreita ou ampla, isso não importa, não importa : “ Tudo vale a pena se a vida não é pequena” - e mesmo que a via: a Vida, seja pequena, ela se amplia quando a Literatura nasce do Si-Mesmo em nós

 

A Angústia & a Influência

 

Vejam porque tudo isso me dói tanto:

em mim se dá a ‘Angústia da Influência' de que fala Harold Bloom ao contrário: é, não a angústia de ultrapassar ancestrais ou recentes mestres, modelos, matrizes - mas a Angústia de eu mesmo vir a ser ou já ser uma Matriz perversora com a minha Alucinação Invisível de Andara alucinando por aí outros autores.

o que eu Desejo, K? Ah, Sim, também desejo “a linguagem de que não conheço uma só palavra, a linguagem na qual as coisas brutas falam para mim” , como consta da ‘Carta de Lord Chandos' enviada a Francis Bacon, de Hofmannsthal. Vertigem. Só igual a que sentimos ao ler o ‘ Ensaio sobre o Teatro de Marionetes' de Kleist - o que preferiu o suicídio porque já “não suportava mais a luz do sol.”

Desejo, ardentemente, me interditando a qualquer Vaidade

- Vento de Vento, tudo é Vento”, nos adverte Coélet no seu não-seu ‘Eclesiastes'

desejo que todos os escritores seduzíveis instalem nos Portais das suas Obras um mecanismo de defesa contra as contaminações, todas as contaminações, sobretudo as contaminações de Andara, Mecanismo inexpugnável e semelhante àquele Arcanjo de Espada Cintilante, Cegantemente erguida que não nos permite regressar ao Paraíso.

E justamente porque nós só regressaremos ao Paraíso - ou descobriremos que ele só existe em nós - quando voltarmos a ser, enfim, nós mesmos

Pois só assim veremos como somos vistos - segundo profetiza São Paulo, em seu Hino à Caridade

    não me tomes, ó K, ao ler esta Investigação, por pretensioso, se escrevo isso assim tão convictamente, mas como um Irmão se comunica ao Outro, diretamente, claramente, frontalmente - sem Temor

    e nesse Irmão se oragasalha em murmurantes verdades e orações - também sem Tremor - se me foi permitido inventar, graças a uma Falha do dedo nas letras do teclado em que escrevo isso, essa nova palavra, para exprimir o que de outra forma é quase indizível

    esses Temor & Tremor de que nos fala com sua autenticidade orgânica e irônica Kierkegaard

    Tão poucos somos aqueles com quem nos sentimos à vontade e naturais para falar dessas coisas

    Que te falo é confiando em ti - ó K - se buscas praticar a Literatura com a tua dimensão ontológica,

   como só confio nos autores que buscam seu próprio Abismo ou Céu em si mesmo - jamais no Céu ou Abismo de um outro.

  tudo nessa Busca me emociona até às Águas Amargas: as Lágrimas

   e te digo porque: porque há uma Tristeza infinita nas coisas quando elas se dão fora dessa Ética & Amizade profundas

 

  Kafka & Max Broad

 

Imaginemos agora, por um segundo infernal, esta horrenda hipótese:

E se Max Broad não apenas não cumprisse o último pedido do Amigo para que queimasse todos os seus originais ainda inéditos

E se Max Broad , estando Kafka já imerso no Silêncio Simulado dos Mortos, e quase nada havendo publicado em vida, em vez de escrever a sua Biografia e se lançar à dura lida de editar toda a sua obra - apresentasse aos homens a Obra de Kafka como obra sua

Horror

Horror

 

Kafka & Dino Buzzati

 

me explico melhor? Deixando agora os vôos mais baixos das aves de rapinas de asas mínimas anteriores? E suas vítimas também mínimas, os autores menores, entre as quais sem ilusões me incluo

me explico:

   deves conhecer 'O Deserto dos Tártaros' de Dino Buzatti, não?

   não é mesmo um romance uma parábola fábula alegoria extraordinária? uma rara obra prima, integralmente?

   mas - que pena - por mais amável e encantadora que seja, essa obra prima, quem sabe, não permanecerá - será corroída pelo Tempo, temo por ela, progressivamente

   por que se fez à Sombra de Franz Kafka - porque é, dolorosamente,

um Reflexo genial de Kafka - e corre o risco de não permanecer por isso

       devemos sofrer em nós mesmos, sinceramente, quando coisas assim se dão

   porque: quanto ganharíamos com uma nova Originalidade Originária se nosso Dino nos tivesse dado uma não tão mínima cintilação de Si mesmo

   em vez de se deixar reduzir a um reflexo agonizante num Espelho irreversivelmente evanescente.

lamento por Dino, em mim - porque ele é um admirável escritor - seus contos, apesar de claramente kafkianos, também, a sua maneira, são intrigantes e deliciosos exercícios de espreita e invenções oblíquas em relação ao

banal-cotidiano que nos mistifica em miragens complacentes

Tu poderias agora me perguntar, ó K: - Vicente, ó Franz, então não podemos, não devemos nos aproximar em nossos textos daqueles que mais amamos?

  E eu te responderia: - Sim, e sempre - mas sem pronunciar uma única vez seus nomes como se fossem os Nossos Nomes, sem transcrever uma única de suas palavras como se fossem Nossas Palavras

  Em Literatura - eu penso assim: Amar é preservar o intocável imaculado objeto do nosso amor

& até mesmo transcrever suas palavras, indicando, neles, a Fonte de onde nos jorraram - poderia ser tanto um ato amoroso quanto uma Maculação infame.

Mas o ato da Transcrição citando a Fonte incorporada aos nossos Textos

fosse, dos Crimes, o menor.

Não sob o álibi artificioso contemporâneo que quer justificar suas freqüentes & banalizantes apropriações sob o nome pré-moldado: Intertextualidade

Mas unicamente sob a forma de fraterna acolhida e devida e cúmplice Homenagem pública e em nós

Eu? Perguntarás. - Mas não acolhes aqueles que tu amas em teus livros de Andara?

E te respondo: - Sim. Acolho. Mas somente com o Sentimento de acolhida dessas Aves flutuantes que, por carências & solidões humanas, por Companhia, imploro que meu Ímã em mim atraia a mim. E me torne delas merecedor, em extremo estado de Amizade

Amizade em que nelas todo me anulo, me Dissolvo me doando - o oposto exato de sugá-las, de anulá-las em mim - em meu egocêntrico: Concêntrico sorvedouro.

E é assim que tu verás soar em Andara, por exemplo, a voz de Eckhart dizendo com suas palavras e sua Voz única, a dele, explicitamente identificada:

“ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhante, diz Eckhart" (12)

Ou a Presença de Angelus Silesius nomeadamente dizendo: “A criatura é o seu gosto de brincar, diz Angelus Silesius” (13 )

Ou, ainda, pousar em Andara a Ave Kant

e com suas aves de pedra entoar em Cantos uma Súmula da ‘Crítica da Razão Pura', Sumo extraído de suas mais de 500 páginas concentradas em meia dúzia de páginas vazias de Andara - mas em suas próprias palavras - pois ali é a Voz de Kant que fala, não se faz passar pela minha. (14)

Poderia dar a isso o nome de Abrigo ? Ninho acolhedor. Revelação das vozes

de Eckhart, Silesius, Kant àqueles que, que pena, ainda não as ouviram

Nos apropriarmos dessas Vozes

  Isso é Horrendo , o mais horrendo em nós - se me permites ainda usar uma palavra em cínico desuso nos dias atuais que parece ter nascido & morrido com Poe.

 

Poe & Baudelaire

 

  Ah, sim - que agora belo outro exemplo veio se oferecer a nós: a devoção da Baudelaire por Poe - o destemor amoroso de Baudelaire por Poe

  Baudelaire que se colocou aos olhos do mundo tão explicitamente em seu amor por Poe

  e sacrificou as Tentações de sua possível vaidade, de seu possível egoísmo

  à revelação de Poe ao mundo

  O Laço, a Armadilha: o Pecado mais mortal - dele, Baudelaire, também estiveste na borda, roçaste sua lama, sua forma de sanguessuga astuciosa

  & foste salvo por uma Verdade inegociável com quaisquer vícios da nossa frágil humana condição

  Por isso, te admiro.

  Por isso fico em paz quanto ao destino da tua Alma - esta Palavra Ave que voa dentro de nós & que nossos contemporâneos se empenham em apagar em suas páginas mortais.

 

Dante & Virgílio

 

Porque fizeste como Dante a Virgílio as autênticas homenagens

   Esse Dante que, tão imenso, não hesitou um instante em se colocar sob a guarda de um Poeta Guia eleito como Mestre e se revelar ao mundo conduzido não por si mesmo, mas por ele, Virgílio.

“Ó vós que entrais, deixai toda a Esperança.” Dante sabia dos riscos que corria ao se dispor a penetrar no Inferno.

É essa humildade - é dela que se trata e se tratará sempre - que nos salva em nós

   Vejo assim, creio assim - e Sei assim, em mim

       Olha, K, como se diz nesta Floresta Sagrada de onde te escrevo esta

Karta a K : repara : Nós nascemos sós - ninguém nasce por nós. Nós morremos sós - ninguém morre por nós.

   Entre a porta secreta de entrada e a tão igualmente secreta porta de saída só poderemos viver em nós, por nós - esta vida que ninguém mais poderá viver por nós, escrever por nós, sorrir por nós, sofrer por nós, exceto nós mesmos

   É a Lei Severa.

 

Kafka & Eliot: Diante da Lei

 

  Diante da Lei havia um guarda - conheces a parábola de Kafka, não preciso citar na íntegra

   e a Lei Severa se revela quando no limiar da morte o homem diante da Porta da Lei pergunta ao guarda: - Por que ninguém mais veio tentar como eu entrar por essa porta?

   E o guarda lhe responde: - Porque esta Porta estava destinada unicamente a ti - e agora eu vou fechá-la

   Que Estrondo se faz ouvir em todo o Universo & no nosso Universo Interior quando ele a fecha

   Nos lembremos dos Homens ocos de Eliot:

   é assim que acaba o mundo

   é assim que acaba o mundo

   é assim que acaba o mundo

 

   não com um estrondo,

   mas com um gemido

 

   Ah, que gemido estrondoso ecoa pela vida inteira, da Visível à Invisível, dolorosamente, quando um homem se perde de si.

Estaríamos evocando aquele homem Deserto em Si mesmo irremediavelmente extraviado para sempre de sua vida do conto infinito de Nathanael Hawtorne, ‘Wakefield' , quando falamos disso?

 

O Temor & o Tremor

 

Eu? Eu temo muito por aqueles que se aproximam de Andara - essa Voz Estrangeira que se fala através de mim - com exageradas genuflexões devocionais - me deixa dizer assim, ó K, ainda com algum bom-humor, embora imerso em Cinzas.

Porque estão se afastando de si mesmos - e esse é o maior Pecado - na verdade o único Pecado Humano. Não há outros

E tremo até a Lividez quando situações da vida me colocam Face a face com aqueles outros que dela: Andara, se aproximam com um grande e feio Brilho de Cobiça nos Olhos.

Porque Andara nem minha é, nunca foi - sempre e por toda parte declarei isso:

- Que sou dela somente um Instrumento, mero Porta-Voz dessa Voz que através de mim se Fala - e ela só pertence a Si Mesma agora em meu filho em Sonhos

Porque eles estão se cegando de si a si mesmos

   

A Sede & a Fonte

 

Porque o Encontro, K, só pode se dar sob a Espontânea Convergência

E a Convergência se dá somente assim, como agora te conto:

- Em um dia qualquer do ano 2001, de repente saltei da minha rede em Chamas, eu, não a rede, e anotei em grandes toscas palavras na parede da minha Casa:

“As coisas que a gente procura nos acham.”

Porque uma Voz em mim havia me gritado, um Grito de Luz, essa Revelação.

Elas, essas Palavras, ainda estão gravadas lá, na Parede, mas cada vez mais foram se cravando em mim, como a Sentença gravada no corpo do Condenado na ‘Colônia Penal' de Kafka, para se tornar Inesquecível nesse Corpo .

Sabes quem é Simone Weil, ó K? Sabes? Pois eu não sabia. Nem de nome. Até este ano de 2004, em te escrevo esta Karta

e só agora, enquanto te escrevia esta Karta a K, fiquei conhecendo o seu livro ‘A Gravidade e a Graça'

Sacra Ignorância Maravilhoso Desconhecer

Porque as primeiras palavras que li no livro dela foram estas - estas, e não outras, K:

Se descemos em nós mesmos, descobrimos que possuímos exatamente o que desejamos.”

 

&

 

tu queres saber mais, K, queres?

Te conto então mais sobre o Encontro, que só pode se dar sob a Espontânea Convergência :

Também em 2001, num dia qualquer, ou já foi em 2002, tendo lançado mais um livro visível de Andara - ‘Ó Serdespanto'

- Ah K, tudo é tão Belo e Estranho

Porque numa entrevista então eu disse:

O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua Queda que irá descobrir sua Leveza possível. Assim agarrado em seu próprio tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de semear-se, de semear a coisa humana na Terra e ser a chuva inversa dos Céus?

E neste exato, K, fugaz instante de ser um homem e estar aqui, agora , abri com a mão do Acaso o mesmo livro de Simone Weil, pela segunda vez, e li nele:

“Descida, condição da subida. O céu descendo à terra eleva a terra ao céu.”

 

Bach & os Filhos de Bach

 

  por isso sempre que lembro de Bach e seus Ascendentes & seus Descendentes (15), digo a Eles, meus próprios filhos e netos: - Se vierem a se tornar como eu escritores, ó filhos netos amados por este já inclinado & declinante & já alçante em vôo Pai Avô,

    & se Andara surgir ameaçadoramente nos seus Horizontes, ignorem Andara, dêem as costas aos livros de Andara: esqueçam Andara

& tentem na mais Absoluta Solidão se elevarem Pais e Avós & Filhos e Netos de si mesmos - sigam o Caminho da Abóbora Amarga

   não se consintam serem Sombras evanescentes de um Outro qualquer nem do que eu fui

& não se preocupem, não se preocupem, eu Sempre estarei com vocês - como comigo em mim & em todos nós o nosso Franz em Sonhos

Vocês, ó Filhos, Netos - vocês Conhecem o Segredo

Psiu, só entre nós, Sussurremos - e que nem K mais nos ouça:

- O Segredo é caminhar no Caminho que passa por dentro de Si-Mesmo

- Venham por Ele ao meu Encontro quando eu tiver passado, Sombra, mas à Sombra de mim mesmo que em mim mesmo Fui e passei em meu Caminho só roçante por entre os homens

 

O Visível & O Invisível

 

Mas não precisamos, Inertes, esperar por esse Encontro no tempo-sem-tempo enquanto ainda só aparentemente Entes no aqui, na: Vida Manifesta

Por isso, no Portal de Entrada de ‘Viagem a Andara, o livro invisível' está escrita

esta frase, esta Senha de acesso imediato ao Um no Vários : Ó Um Vários em si mesmo em nós :

“Tu escreves um livro invisível. Por que fazes isso?

Nós somos homens invisíveis

Depois de nascidos, visíveis.

Entre o início invisível e o invisível final, nós somos os homens visíveis.

Aproveitemos para ver-nos”

 

Píndaro & a Sombra

  

ah Píndaro, Tu também sempre vens roçar nossa Memória para não nos deixar esquecer que para além das Paisagens das Florestas Sagradas

em nós

“o Homem é o Sonho de uma Sombra”

Vêem,

aqueles pontinhos se perdendo longe, vês ó filho K? É para além das paisagens do Aqui, indo para o Lá sem Onde desde já em nós