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- Andara não é Literatura: é pressentimento. VFC |
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"E quanto ao ser ou não-ser? O primeiro cogita o segundo, que o ignora inteiramente. Mas o Humano – o umanoh – inclui os dois – como se fossem Um ou Nenhum. Tanto fez, tanto faz. — Que extraordinária libertação nos vem desse entendimento umanoH. Dele, eu digo como o omem de areia no mais recente livro visível de Andara: - O Mel é beber a vida em sonhos." |
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Rita de Cácia: As narrativas tradicionais, pelo menos até o século XIX são uma seqüência de fatos bem articulados (enredados) compondo uma estória que o leitor, ao ler, é capaz de contar. As suas narrativas não são narráveis, possíveis de serem contadas. Quais são os recursos nelas usados que destroem a narratividade? Será o lirismo? Vicente Franz Cecim: Se há recursos, no sentido de técnicas, não sei exatamente quais sejam. Detesto as técnicas literárias: elas matam a Literatura e o Autor, juntos. É muito triste isso. Escrever é um estado de sábia inocência: lançamos uma Semente na página branca e a vemos crescer, até o Livro, após o estágio de Arbusto, se tornar Árvore e, mais ainda, em seguida, plenamente uma Floresta. Então, estará pronto, será por si mesmo e em-si. E poderá ir para o leitor. Embora jamais esteja concluído: um livro fecundo é semeadura eterna. No meu caso, essas são as fases a atravessarmos, unidos, eu e cada livro visível de Andara. Durante o ato de escrever, apenas zelo por este Jardim de Palavras, que às vezes têm sede de outras Fontes, e fomes de estranhas coisas: lhe dou o que tenho em mim, devemos dar aos livros o que temos em nós, e nos abrimos para a vida, eu e eles, para que as flores da escritura aspirem esses dissimulados perfumes sonâmbulos que estão no ar e ao nosso redor. Seria isso uma Embriaguês Lírica? Em Andara, meus personagens, que eu prefiro chamar de seres-neblinas, vivem bebendo uma bebida amarga e cada vez que dela bebem, dizem: - Oniá. É um ritual secreto, nem a mim é permitido penetrar no Círculo em que eles, esses seres de névoa, o celebram. Eu, quando Andara se escreve através de mim, eu simplesmente me entrego. Então, de um modo muito semelhante, só quando ele, ou Ele: o Livro, que se almeja em tantos pequenos livrinhos, nunca realizado, está inconclusamente concluído, vou também vê-lo com olhos de leitor, e sou e me torno mais um leitor que vai descobri-lo, porque nunca o leu. É assim. Essa entrega total seria um Transe Lírico? Sei que algumas perguntas que me serão feitas aqui não estarão ao alcance de uma resposta plena, talvez aqui e ali surja uma resposta interessante minha, mas o que sabemos nós das Perguntas que podem existir para além do humano. Nada. E se não sabemos as Perguntas, não saberemos as Respostas. Esse estado de consciente limitação e ignorância é um estado necessário para o surgimento de uma Inocência Lírica e de uma Ignorância Lírica? Porque me vejo menos como um Criador, e mais como um Instrumento de algo que quer se manifestar através de mim – uma súbita aragem de Inspiração Lírica? Esse Algo, depois de manifesto, ao surgir pela primeira vez em 1979, quase 27 anos atrás, quis se chamar Andara, essa Andara, região-metáfora da vida, transfiguração originária da Amazônia, que continua se manifestando pelos seus livros: Ela é Fonte, e vai fluindo do Invisível ao Visível. Sua Via essencial é o Imaginário. Digo melhor: é um Estado de Imaginário na mais absoluta liberdade alcançável. Veja, eu: se antes de escrever souber como uma possível história começa, avança e se encerra – não vou mais escrever a história, não há mais nada a descobrir. E Literatura é Descoberta ou não é nada. Sobre o que foi perguntado acima: quero dizer que não destruo a história, a narração: penso que o que se dá é uma Transferência e uma Inversão, que é assim: em Andara, o principal se torna a linguagem narrando, o secundário passa a ser a história narrada. Não gosto de falar da mesma coisa mais de uma vez: as primeiras páginas de “Os animais da terra”, de 1980, o segundo livro visível de Andara, já falaram incisivamente sobre isso e anteciparam uma resposta à pergunta. Será encontrada em sua origem, lá. Rita de Cácia: Por que razão um escritor destrói o enredo. Há consciência neste ofício? Vicente Franz Cecim: Não sei porque um escritor destruiria um enredo. Você quer dizer: voluntariamente? O homem é um contador de histórias, pelo menos aqui na Amazônia ainda é, lhe dêem um fogo aceso na Noite e ele imediatamente passará a contar histórias, ao redor desse fogo, até o amanhecer e às cinzas, e conta para outros homens, ou seja só para ele mesmo dividido em dois – um que se conta e um que se ouve. Se vê isso claramente em “O sereno”, o sexto livro visível de Andara. Nesses livros de Andara, uma história está lá, sempre está Lá – aliás, muitas histórias: porque em Andara os ventos sempre estão soprando, contando histórias – os ventos da voz humana e o Vento dispersado em vários ventos, vindos de distantes, remotos lugares, de outras dimensões, do Céu e da Terra e do Lugar Não-Lugar - quando não está soprando, mesmo, é de dentro de nós, e esses ventos-Vento trazem também suas histórias ou, com freqüência, só os fragmentos de uma história. Em Andara se dá uma rarefação da história contada, a ponto dela poder ser resumida com bem poucas, só algumas palavras. Mas uma história contada fora da sua linguagem, da linguagem que a criou, não serve mais para nada. Em Andara, a história subjacente à escritura que a conta é o que Ilumina essa Escritura, que, em manifesta gratidão, extrai fulgurações verbais da história sendo contada – porque a Linguagem quer, em Andara, sempre, ser um Ser vivo, ao longo de todo o livro e em qualquer um dos seus livros que se vê. Enquanto se lê o livro invisível, que não se vê. Rita de Cácia: Sempre que alguém escreve cria algo? Cria o sonho? Há um motivo? Esse motivo é o sonho? |
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Só nos sonos-sem-sonhos estamos libertos da nossa obsessiva vigilância – que não é Atenção, um estado de superior, Transparência do ser para consigo mesmo e em relação aos outros seres – e, então, parece que, para-aquém das Aparências – isso que Husserl estudou entre aspas como Fenomenologia e os Vedas e Buda chamaram de Maya – enfim retornados ao Uno original – e nos reabastecendo de Sagrado? Tudo indica que, por essa re-união, sem a intervenção do temerosozinho eu-individual: - Sim. Mas esta é uma resposta dAquilo que eu chamo, em, digamos, trans-mim mesmo, de o umanoH. Uma descoberta-admirativa que eu me fiz de uma in/existência liberta, libertável do Homem & do Ente & progressivamente também do Ser, in-existência essa que, já sem necessidades de escolhas e limites, aceita e se inclui o ser e o não-ser. – Mas disso, dessa dimensão, desse umanoh, um dia um novo livro de Andara talvez volte a falar. Aqui, agora estamos somente tratando desse estado onírico de todas as coisas visíveis, e nos indagando: por que seria diferente quando estamos criando alguma coisa, sobretudo criando qualquer forma de Arte? Escritores ruins, sabe quais são? Não são, certamente, os líricos. São aqueles que não sabem ou fingem ignorar que são homens-de-sonhos vivendo uma vida-de-sonho, e então contam a vida com palavras que a levam superficialmente a sério, deformando a realidade sonhadora e lúdica em realidade mimetizada reduzida à sua Aparência. - Onde não há o Sonho, não há o Humano. Não duvido jamais disso. Rita de Cácia: Há algum escritor que exerce uma técnica parecida com a sua? Quem é ele? Vicente Franz Cecim: Esta pergunta é interessante, porque vai me permitir fazer novamente, aqui, uma revelação intrigante: - Sabe por que eu escrevo? Eu escrevo para ler os livros que gostaria que algum escritor escrevesse para mim. Eu preciso desse Livro, e como ele não existe, escrevo “Viagem a Andara oO livro invisível”. Escrevo para mim mesmo? Sim. O que vem depois, a edição, leitores, a crítica – tudo é decorrência. Os autores, para permanecermos, aqui, só no que identificamos como Ficção, que eu amo, são os Originais – não é possível escrever como eles. E justamente porque tenho Amizade por suas originalidades, devo preservar suas originalidades. Então, só me resta escrever com a minha possível originalidade. Eis a maior verdade que um homem pode enunciar: - Quanto mais nos-somos, mais diferente ficamos dos outros – até atingir o Profundo, que é a nossa Originalidade individual. Outros que seguem o mesmo caminho, se diferenciando, se achando em sua Originalidade – também estão descendo ao fundo de si. E é aí, nesse ponto em que somos os mais diferentes uns dos outros, nesse Fundo do Profundo - onde estamos enfim unidos à Origem de cada um – que nós nos encontramos. Não é possível acharmos o outro enquanto não sabemos sequer quem somos. Se diferenciar para se assemelhar, se unir. Foi o que terão feito alguns daqueles que admiro e amo: Kafka, Beckett, Guimarães Rosa, Rulfo, Bruno Schulz, Jean Giono, Proust, Gyula Krúdy, Gombrowicz, Céline, Musil, não são muitos assim, mas ainda assim são tantos, embora ainda sendo tão poucos. E recuando no tempo há Dostoievski, Tolstoi, Melville, Hawthorne, Dickens, Swift, Cervantes. Conrad, Baltazar Gracián. Rita de Cácia:É possível escrever obras criativas e ser um escritor conhecido pelo grande público? Tomando por referência “O sereno”, ele responde a essa pergunta? Vicente Franz Cecim: Se o chamado grande público for criativo, digo: criador – sim. Mas vivemos num tempo em que a qualidade é o pequeno, e grande só a quantidade - ou sempre foi assim? Há um abismo entre o escritor criativo e o ledor-só-por-ler-sei-lá-o-quê. Uma das funções da literatura seja atravessar a seta em direção ao calcanhar Vulnerável de qualquer leitor, generosamente. Mas não depende só dela. Rita de Cácia: O conjunto de suas obras forma um todo lógico? Cada obra trata de uma questão diferente e é independente da outra? O lirismo é a teia que irmana, que dá as mãos de uma obra à outra? Vicente Franz Cecim: Há uma Voz única, atravessando as várias vozes que sopram e falam e murmuram ou silenciam em Andara, é o que unifica todos os livros visíveis de Andara – esses livros que eu escrevo. Essas vozes vão, sem dúvida, se tecendo e des-tecendo, umas às outras e umas nas outras, porque não há sempre uma concordância entre elas, entre as pequenas vozes – embora a grande, a Única, pareça saber o que diz, ou queira dizer. Seja uma Grande Mãe, e as vozes pequenas de Andara, seus filhos. Então se forma, sim, uma Teia. Tecida pela mesma Voz-vozes. Dessas vozes se faz Andara, assim: “Viagem a Andara oO livro invisível” - o não-livro, porque não é escrito – faz para ele convergirem os livros visíveis de Andara – que são os que se escrevem através de mim. Andara, o invisível, é literatura fantasma: não existe de se tocar. Mas, se quiser, você pode ler os livros que, escritos e ambientados em Andara, vão criando a Andara não-escrita, como, ainda, de algum modo, literatura fantástica. E literatura fantástica é literatura lírica? Então, como Andara é toda igual a si mesma, contendo todas as suas partes em si – por qualquer livro que você penetre, penetrou em Andara. Isso independe da ordem em que os livros foram escritos, editados, ou lidos. Lendo um livro escrito, ou visível, de Andara – você sempre estará lendo, ao mesmo tempo, mesmo que não saiba, que não se dê conta disso, a Viagem a Andara. Não sei o que é lógico, talvez nem creio em alguma coisa como lógica, porque para onde me volto só vejo - através de uma aparência, talvez lógica para os outros - o sonho de que tudo é feito. Será que há um sonho lógico, possível de ser sonhado? Onde os livros de Andara se dão a mão? Onde se fazem e se sabem de sonho. - Uma Teia Sonhada? Sim, é bonito isso, é possível. Porque nos suscita a pergunta: - E onde a grande Aranha que a teceu, onde a grande Mãe? Na verdade, ler Andara pode ser ler somente qualquer pedacinho de Andara – se você fizer isso, já estará perdido, contaminado, caiu na armadilha – mas não é uma armadilha que oprime, é a Armadilha que conduz à libertação dos sonhos lógicos e das aparências do real por fora de nós – libertação dele mesmo, do lógico – o lógico é sempre um excesso – impede o retorno ao Homo Ludens que temos em nós. Todos, o adormecido em nós. |
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Rita de Cácia: Como é o seu processo de criação? Que grau de consciência e inconsciência existe nele? Vicente Franz Cecim: Consciência e inconsciência são camadas de uma coisa só – nuances do Ser se manifestando no Ente. – Oh, não voltemos a falar do umanoH, fiquemos só nestes limites. – Então, se eu sou o Criador, então eu estou provavelmente todo o tempo consciente. Mas se eu for somente o Instrumento para que uma criação se realize através de mim, então eu deveria estar em transe, ou inconsciente — não parece razoável ver as coisas assim? Mas no meu caso é um Transe em que inconsciente e consciente se enlaçam, se tornam uma coisa só. E eu me torno essa coisa só, toda unida a si mesma. Parece um estado xamânico – você não quer ler a descrição que Mircea Eliade — o amigo de Cioran — faz disso? Estou em mim, e não estou. Estou Lá, mas é uma Lá que é Aqui, e vice-versa. Posso começar um livro de Andara – ou melhor: deixar que ele se comece em mim – por uma frase, uma imagem, um sentimento, uma percepção lampejante, enfim, por coisas que me chamam de dentro de mim ou de fora de mim. Às vezes começo um livro pelo fim, outras pelo começo, outras por coisas que estão no meio, no transcurso por onde os olhos do leitor irá passar, transcurso esse que eu ainda nem sei qual seja, não sei. Eu me entrego, eu sou levado. Mas, o curioso: eu sou levado como se O Que me leva soubesse do que eu preciso, o que eu, enquanto homem, busco. – O umanoH? – Psiu, silêncio. — Então é um estado excepcional que me acolhe com absoluta cumplicidade. Nem sempre. Às vezes me nega, renega. Devo ter paciência: saber que eu sou menos e que ele: Ele, esse estado Obscuro-Translúcido, é sempre Mais. Seria esse o Estado Lírico de um criador? Rita de Cácia: Você gosta de poesia? Que tipo de poesia? Vicente Franz Cecim: Uns escrevem uma coisa no formato de um poema e pensam que fizeram poesia. Não é isso. Poesia não tem Forma, e se tiver, não uma forma pré-definida. Toda forma é pré-definida? Uma coisa chamada Poesia nasce com a gente, e está em tudo o que vive e morre em nós e diante de nós. Poesia. Parece um sonhar mais profundo dentro do Sonho de Já Sermos. Vallejo, Rimbaud, Lautréamont, Hoelderlin, Novalis, Pessoa, Whitman, Saint-John Perse, Eliot, Rilke, Emily Dickinson. Nomes remotos. Há outros. Rita de Cácia: Você escreve prosa ou poesia? Penso que sua prosa seja prosa poética. Há acerto nisso? Vicente Franz Cecim: Não. Nem prosa nem poesia e ainda menos prosa poética – que não sei nem o que é, e me parece mais uma facilidade para explicar uma coisa que não se sabe como explicar ou definir. Feliz ou infelizmente, é assim. Fugindo dos gêneros, me achei sozinho em um, digamos: Universo Verbal que tudo permite e torna possível. Comecei fazendo ainda a Literatura, mas, asfixiado, passei a fazer puramente Escritura, livremente, e quando as palavras se tornaram rarefeitas e não queria dizer mais quase nada, cheguei a uma forma de expressão que chamei de Iconescritura – os últimos livros visíveis de Andara foram criados assim, como iconescrituras: “K O escuro da semente” e os inéditos “Breve é a febre da terra” e também “óÓ: Desnutrir a pedra” . Tive de retornar à antes da invenção do Alfabeto pelos Fenícios, milhares de anos, para reencontrar a Imagem em estado puro, as matrizes da futura Palavra escrita. Rita de Cácia: Para ler suas narrativas é preciso um certo grau de conhecimento filosófico, um conhecimento da vida, uma certa visão da Amazônia, enfim, um conjunto de conhecimentos, o que, em geral, os jovens ainda não têm. De que forma você pode contribuir para a formação de leitores? Vicente Franz Cecim: Eu não gostaria de formar leitores, nem de formar pessoas de um modo geral: cada um seja o seu Ser Original e estará devidamente formado por si mesmo. Assim, aponto vagamente caminhos, somente, esboços, sem muito peso e densidade — como aquele dedo que aponta a Lua Zen, de Dögen. Alguns olharão para o dedo que aponta, outros para a Lua no céu — muitos poucos sentirão a Vertigem, perceberão o fantasma: — Ver a Lua refletida numa gota de orvalho. Rita de Cácia: Qual o caminho capaz de facilitar os jovens a terem acesso ao trabalho literário? Vicente Franz Cecim: Dêem a eles livros para ler, muitos livros, livros à vontade – estimulem a convivência deles com os livros: que durmam abraçados com os livros em suas camas, redes, ninhos, que aprendem a conversar com um livro como a pessoa que o livro, realmente, é, a pessoa que ele, livro, sustenta e traz em si, e que é mais do que um autor, só um nome: deixem que saiam para passear e conversar um dia com uma pessoa chamada Schopenhauer, uma tarde com outra chamada Plotino, certa noite com outra chamada Rumi, que conversem com esses homens – homens e mulheres que são os seus livros – e não pensem mais que um livro é somente um livro, um objeto, um objeto-livro, porque a verdade é que todo Livro que merece ser lido é, tem e contém a vida de quem o escreveu. Nessa Convivência, se abrem os Caminhos. E se aprende qual livro é uma má ou uma boa companhia. Rita de Cácia: Como levar os jovens a refletir, ‘sem apenas ler as letrinhas’, uma vez que, a mídia os leva para uma formação medíocre? Quais eram suas leituras na adolescência? Vicente Franz Cecim: A mídia moderna é um veneno, mortal para os Sentidos, a televisão é a morte dos olhos, a imprensa é uma surda mensageira de mensagens convenientes para os que estão no poder – e o Poder é podre, não pode ser outra coisa, acaba aprisionando e roubando a liberdade daquele mesmo que o exerce — baste ler Shakespeare — como poderá libertar os outros? Em vez do poder: generosidade, em vez da ordem: a cumplicidade. Minha mãe tinha uma pequena biblioteca em casa, li tudo, por volta dos meus treze a quatorze e quinze anos. Lia por ler, pelo sabor de ler – e ia entendendo que ler é viagem, e viajava, lendo tudo. Descobri a literatura de ficção científica, ou chamada de antecipação, a de mistérios, a de aventuras. Lembro um ano em que li todo aquele que me pareceu infindavelmente longo Ivanhoé, de Walter Scoth, durante um mês inteiro, de férias. Mas lembro bem mais quando e qual foi o primeiro escritor que realmente foi para mim um Criador e que amei instantaneamente e ainda amo: Knut Hansum, o dinamarquês. Seu livro mais famoso é Os frutos da terra, deram a ele o prêmio Nobel, mas depois da Segunda Guerra o internaram num hospício, por ressentimentos: nesse hospício, muito lúcido, ele escreveu suas últimas e algumas das melhores obras. Se foi de estar aqui por volta dos 90 anos. Troquei o dinheiro que tinha para uma passagem de ônibus pelo Hansum, com um sapateiro que vendia livros usados. E fui para casa a pé, andando nas nuvens. Rita de Cácia: Você é considerado pela crítica um escritor universal, o que apresenta todos os gêneros. Ratifico essa que aborda desde o processo cíclico da vida, até uma literatura onírica, e tudo isso se escriturando de uma maneira altamente sensível, o que explica a citação de Jakobson “Essas palavras são ditas com espontaneidade, palavras translúcidas; é um arrebatamento da alma” corroborando com a citação do escritor Emil Staiger que afirma: “O lírico, na forma adjetiva, é visto como um estado de alma, uma disposição sentimental, exprimido por meio de palavras, (...) aparentemente sem nexo lógico”. É uma das marcas que me levaram a caracterizar O sereno uma narrativa lírica. O que você pensa a respeito de enquadrar sua obra O sereno na forma do gênero lírico? Vicente Franz Cecim: Não, evitemos isso: cuidado com as palavras: a palavra enquadrar é uma antipalavra: a Palavra que vale não se enquadra, ela é Vento de Vento, como diz Coélet no Eclesiastes, se bem traduzido: sim, mas a Palavra que realmente nos fala também é o Verbo gerador: ele abre, amplia, cria – não reduz – não enquadra. Então, não vamos fazer isso com um livro que foi todo sonhado, este O sereno, que transbordou de si mesmo e se lançou para além de todas as margens. Embora se passe, ele todo, numa única noite, numa margem, numa praia, diante da Água primordial. Não me desagrada que O sereno seja lido como um livro lírico, não me incomoda que nenhum dos livros de Andara seja lido também assim. Concordo com a frase citada de Jakobson. Me vejo imerso nela. Mas não sei se Andara se resume a ser lida como literatura lírica. Somente na hipótese de se vincular o Lírico ao Sublime. O Sublime, como o: Absolutamente Sem Fronteiras discerníveis. A citação acima que diz “aparentemente sem nexo lógico” é engraçada. Ela parece querer se desculpar, em nome do lirismo, por ele não mostrar um nexo lógico explícito. Não sei. Atualmente — se querendo ainda falar em Lógica mantendo o mesmo espírito de transcendência do que restou do Logos grego, do Logos como uma Manifestação do Sagrado, e no sentido do Uno de Plotino — acho que se deveria falar da lógica íntima do Caos, que nos gerou e que ainda nos é a Grande Desconhecida, porque Dela temos muito Medo – esse Kaos criador que contém um subsolo e um Centro, não-superficial, e que não se submete a uma mera ordenação superficial pelo temor humano – veja o dístico positivista na bandeira brasileira Ordem e Progresso, que persiste, mas não se realiza, em nossa bandeira. O Caos originário criador, seja ele algo realmente centrado em si, em Sua Imanência, e todos os nexos possíveis entre as coisas manifestas, as Visíveis, deverão ser percebidos nascendo dele. Mas só quando não o temermos mais. Quando entendermos e aceitarmos o quanto de Invisível contém o Visível. Isto, exatamente é o que está Celebrado em "K O escuro da semente", na edição portuguesa da Ver o Verso. Lá, todos os seres de espanto, tanto os que são nos seres e os que nos seres não-são, sabem disso. Não como um Conhecimento, que é sempre Acumulação, mas como um saber: O Saber, em que Ser & Saber, que agora no homem estão des-coincididos, voltassem a co-incidir no umanoh, na Unidade. Falam vozes de Andara e fala a Voz de Plotino. Está nas páginas 54 e 55, onde se lê: < ah está vindo, está vindo essa outra Voz, ouves ela vem é preciso, fosse preciso que ela viesse, e ela vem e pousando sua boca em nosso fogo: vês como ele agora mais se incendeia com essa Boca em Chamas, antes que as Cinzas venham ao amanhecer, ela nos diz - Porque lá nada é obscuro nem opaco, pois cada um é transparente a cada um e em tudo, pois a luz não é luz E cada um possui a todos dentro de si e vê em outro a todos, e tudo é tudo e cada um é tudo e cada um é tudo e o Fulgor é imenso, pois cada um deles é grande, pois também o pequeno é grande Lá, o sol é todos os sóis E cada sol é sol e todos os sóis e tendo vindo essa Voz: ó Clarão re lampa g o Ó Lâmina de Luz, ah nós, escuros reruns unisse Céu e Terra, ó terracéu a generosa A que assustando as aves: vês, como despertam e todas em revoada a nossa volta achando que um novo dia já nasce antes da hora > |
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ICONESCRITURA |
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Rita de Cácia: Um aparte, ou melhor, uma audácia. Você se considera um ser solitário?
Vicente Franz Cecim: Sim, um Solitário. De uma certa maneira nós todos somos. As ligações, as relações que se estabelecem por fora, no Exterior, são insuficientes para serem aceitas como O suficiente, pelo Ser. Mas já falamos disso: no fundo da Originalidade de cada um de nós, é onde nos encontramos, e cessam todas as solidões individuais. Imagino a Alegria transbordante de um encontro entre aqueles que eu não quis separar: Kafka, Beckett, Gombrowicz, Rulfo, Guimarães Rosa, Bruno Schulz, Giono, Cervantes, Swift, Conrad, Baltazar Gracian – uma Alegria comum a todos, pois, todos, unidos por suas originalidades pessoais. Rita de Cácia: Você parece ter um corpo e duas almas. Você sugou a alma de alguém? Vicente Franz Cecim: Um corpo e duas almas? Isso é interessante. Eu diria que uma delas é realmente a Alma, e a outra o Corpo, mas um corpo que se quer também Alma. Rita de Cácia: Suas narrativas podem ser comparadas às peças de piano tocadas a quatro mãos, sem perder, claro, a unicidade e a harmonia. Como o homem Vicente Franz Cecim domina o escritor para que o processo artístico vingue dessa forma tão singular e espontânea? Vicente Franz Cecim: O xamã se manifesta no homem, e, então, tudo se revela em Sonhos e tudo é vivido como o Sonho que no fundo é? Exercito normalmente essa espontaneidade em tudo, através dos dias mais comuns da minha vida. As palavras chaves aqui, são: Sinceridade e Inocência. Fora disso, o contra-fluxo é brutal. Parece uma vertigem invisível. Rita de Cácia: A professora de literatura Walkyria das Mercês diz que sua prosa é um poema lírico esparramado.O que você pode dizer a respeito desse parecer? Vicente Franz Cecim: Pode ser, assim pode ser: não prosa poética, mas “prosa que é um poema lírico todo de si derramado”. Ou como se diz em Andara: - O Vazio que transborda. Rita de Cácia: Às vezes, Vicente Franz Cecim mostra-se personagem de si mesmo. Um ser transfigurado em arte. Até os seus dedos já se ampliaram e compõem com o cigarro uma outra forma de mão. Há limites entre homem e escritor? Penso que não. Vicente Franz Cecim: Há uma distância imensa que vai da pata à mão humana. Mas para quê? Grande ato falho do homem consigo mesmo, isso de fumar. Comecei sem querer, e agora, por querer, parei. Estava morrendo para a morte. Agora vivo para a vida. Sartre, em O Ser e o Nada, diz que fumar é sublimar a vida. Pode ser, poeticamente, até ontologicamente, quem sabe, sim. Mas esse sublimar a vida, queimando, reduzindo a cinzas – o que é? Essa Negação? Será essa necessariamente a via por onde se atingirá o Sublime? Pela Dor? O Sublime não é um devaneio, é o mais alto grau da responsabilidade humana. É o que Busca o humano. Mesmo através das cinzas, tem que ser tocado, atravessando a Espessura da existência manifesta, a Visível. O homem se salva de dois modos: ou no mais Comum, ou no Sublime. Não vejo outra saída, ou outra Realidade no Sonho de Sermos. Rita de Cácia: Fim. Vicente Franz Cecim: Poderia ser um Fim, sim. Mas ainda não. Nesta re-visão, agora eu balbucio este adendo e prefiro terminar num começo: de algo um tanto surpreendente, que me cabe tão claramente o quanto ainda não O Sei. Estranhos rumores, coisas se movem. Talvez não devamos mais continuar nos distraindo com fantasmagorias como o Homem, o Ente, o Ser, o Não-Ser. Comecei a suspeitar disso desde que através de Andara me ocorreu a hipótese-clarão do que veio se apresentar como — o Humano — na linguagem de Andara, chamo a isso de: o umanoH — que é o que cria e é e não-é Tudo isso. E o Nada de que todo esse Isso é feito. Concebido. Engendrado. Pense tentando resistir à Vertigem: — É esse umanoH que, sem conflito algum, concebe as realidades de Homem, de Ente, de Ser e Não-Ser. Nenhuma dessas realidades consegue conceber inteiramente o Humano – ou o Andara umanoh – sem conflito com as outras. A progressão, ou regressão, homem-ente-ser parece ser sempre implicadamente ex-cludente. E quanto ao ser ou não-ser? O primeiro cogita o segundo, que o ignora inteiramente. Mas o Humano – o umanoh – inclui os dois – como se fossem Um ou Nenhum. Tanto fez, tanto faz. — Que extraordinária libertação nos vem desse entendimento umanoH. Dele, eu digo como o omem de areia no mais recente livro visível de Andara: - O Mel é beber a vida em sonhos. |
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Vicente Franz Cecim nasceu e vive em Belém do Pará, Amazônia, Brasil. Dos livros que integram “Viagem a Andara oO livro invisível" foram editados em Portugal: “Ó Serdespanto" (Íman, 2001) e "K O escuro da semente" ( Ver o Verso, 2005). Rita de Cácia é professora de literatura no Brasil. |
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