Viemos da água, somos água, e só seremos terra, pó, quando secarmos. Cabe-nos
não nos deixarmos minguar, secar, antes que o fio do tempo nos dite a morte. Compete-nos abrir as comportas da água interior, soltar o sangue, o sonho,
libertar o coração: "Milagre é o rio não findar mais. Milagre é o coração
começar sempre no peito de outra vida".
É esta verdade límpida que jorra das duas histórias de Mia Couto que aqui
apresentamos: "Mar me Quer" e "A Chuva Pasmada", dois livros ilustrados do
autor, sobre água, ou sangue, ou vida. Sobre a existência, a ancestralidade, a
continuidade do sonho. Sobre Mar, Rio, Chuva, um caminho líquido onde se possa
pôr a canoa da vida para nela se navegar. São duas estórias que vêm do Índico
tépido e exótico, bem vincado nos sítios e nas personagens ficcionadas, mas
que atinge a universalidade pelas sensações humanas que delas se desprendem.
Mia Couto nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. A sua bibliografia é
vastíssima, entre literatura Infantil, Crónicas, Contos, Romances e um livro
de Poesia.
"MAR ME QUER" é do ano de 2000, mas acaba de ver editada a 8ª edição, com um
total de 36 mil exemplares vendidos. Conta-nos a história de Zeca Perpétuo,
reformado do mar, profissão que herdou do seu pai, Agualberto, e do seu avô,
Celestiano, sempre presentes no enredo mágico. Dispensado de pescar e de
pensar, Zeca "encostava desejos" na vizinha. Dona Luarmina, a vizinha, é uma
"polposa e carnudona" mulata com um passado brumoso. Ambos, já na encosta da
vida, sentem que estão a envelhecer e que "Estamos morrendo a partir do
momento em que não mais nos apaixonamos".
Junta-os a cumplicidade da solidão. Matam o tempo partilhando as suas
memórias, dando "demãos de invenção nos seus relatos". Liga-os, também, o
mistério dos seus passados, segurado entre os dedos, segredos amargos como "um
fruto sem dentro": "Um segredo é uma laranja de um só gomo. A gente come
aquele gomo e fica a casca forrando o vazio". Decidem, então, desvendar-se um
ao outro, e um no outro, lançam o barco, sonham a viagem e deixam viajar o
mar. Zeca desabafa que é perseguido pelo grito de um assassinato, que o faz
odiar e matar gaivotas; também pelo remorso por uma promessa não cumprida que
fez ao seu pai Agualberto que se foi no mar, cego porque o azul dos olhos
deixou-o nas águas profundas onde perdeu a sua amada. Estes segredos
ensandecem-no com sonhos inquietos, onde se vê afogar-se em mar e sangue,
"talvez uma punição", ou a revelação que "trazemos oceanos circulando dentro
de nós" e que "há viagens que temos de fazer só no íntimo de nós".
Luarmina também tem segredos de mar, e chora: "A lágrima é o mar acarinhando a
sua alma. Essa aguinha somos nós regressando ao primeiro ventre". No final
confirma-se que "o coração é uma praia" e o milagre do amor é possível.
Luarmina é o segredo do mar do seu pai, a amada supostamente morta, e que
passa a ser o seu próprio mar, a sua esperança.
"A CHUVA PASMADA" acabou de ser editado. Traz-nos a estória surpreendente de
uma chuva suspensa no ar, que se recusa a emprenhar a terra árida. É um
cacimbo indeciso que enlouquece todos. Porém, é a loucura desta "inundação sem
chão" que faz com que as almas, até aí secas de sonhos e de segredos abafados,
se desvelem e procurem a água umas nas outras. A estória é contada na primeira
pessoa, por um narrador participante, em jeito de memória de adolescência de
uma criança que ia "amanhando conhecimentos sobre a vida e a morte". É ele que
observa as personagens nas suas mutações.
O avô velho que minguava, um "rio seco que fluía num sonho" de navegar até
chegar ao mar. Ficara assim depois da mulher, a sua água, morrer, pois
ligavam-se "como a aranha e o orvalho, um fazendo teia no outro". O pai, mais
velho que o avô, porque "a velhice não é uma idade, é uma desistência", estava
pasmado como a chuva, estancara-se junto à vida, sufocado pelo próprio umbigo.
A mãe, com segredos de "mulher e água", o amor pelo seu homem que não a
procurava, pois desistira dela como da vida. Mas "o amor não é a semente, é
semear" e ela consegue inundá-lo de sangue, de amor, provocando-lhe ciúme. A
tia com "propósitos de sombra", nunca casara, e via na indecisão da chuva um
castigo para a sua secura.
O avô, detentor da memória maior é o elo entre todos e obstina-se em fazer a
sua viagem. As pontes entre o céu e a terra são criadas e a chuva resolve
cair. Cumpre-se a intenção do avô: "ele queria o rio sobrando da terra,
vogando em nosso peito, trazendo diante de nós as nossas vidas de antes de
nós". Como ele sempre dissera: o rio e o coração, o que os une? O rio nunca
está feito, como não está o coração. Ambos são sempre nascentes, sempre
nascendo.". Se é verdade que quem tem um búzio tem o mar, quem bebe as palavras de Mia
tem-no também. E tem, não um mar que da concha ressoa ilusório, mas um mar
translúcido que lhe semeia a alma. Ser-se leitor de Mia Couto é ser-se
reiventado a cada palavra. Mia dá-nos o rio e a canoa. Nós próprios seremos os
remos.
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