O tema do tempo, nas suas correlações com a vida e com
a morte, é o grande inspirador do romance fantástico Regresso das
Cinzas da autoria de Ray Bradbury, traduzido por Maria José Freire de
Andrade (Publicações Europa-América, Colecção Nébula, 2004). Trata-se de
uma obra escrita e retomada pelo autor, ao longo de cinquenta anos. Como
Bradbury nos informa no Epílogo, desde a infância viveu com emoção as
histórias que lhe eram contadas sobre os seus antepassados.
A narração de episódios da vida daqueles que já tinham
morrido, terão imbuido as perguntas da criança curiosa ao longo dos dias
ou dos serões da família vividos na velha Casa, onde passava férias. O
mistério da ausência confundia-se com o concretismo do modo como os mortos
da família eram, com frequência chamados ao convívio dos vivos. Quem diria
que tinham morrido?
Ray Bradbury nunca esqueceu a lição que esses tempos, a
afastarem-se cada vez mais da sua vida de adulto, lhe ofereceram. E talvez
o que mais ficou gravado nele foi a ideia de que só morre quem é
esquecido. Expressões como «memórias», «recordações», «tempo», aparecem
com ênfase ao longo deste romance. Vejamos alguns exemplos: «as memórias,
asas transparentes dobradas» (p.88); «o seu corpo jazia nas areias
egípcias, mas a sua mente circulava, tocava» (p.88); «iluminado pelo sol e
pelo luar da mente da Bisavó»(p.96); «Sem asas. Ela envia a sua
mente»(p.184).
A função dos mortos é, nesta obra de Ray Bradbury,
fundamental pela dinâmica que aqueles oferecem às sociedades. Porque eles
não estão imóveis, as suas mentes deambulam no meio dos vivos. Não são um
fardo, nem uma ideia a rejeitar, mas são uma forma de os vivos obterem,
pelo poder do pensamento memorialístico, uma verdadeira libertação.
Essas personagens deixam de ser estranhos. Passam mesmo
a ter uma realidade tão próxima dos vivos que quase já não se distinguem
deles. E Bradbury define a sua importância quando uma das suas personagens
afirma: «Nós somos os guardiães do Tempo(.)» (p.187). Ou: «Nós somos o
celeiro da recordação obscura (.)» (p.187). E ainda: «apenas a morte pode
libertar o mundo para que ele volte a viver»(p.188).
Mesmo assim, a personagem Timothy, tendo cohabitado com
eles devido ao estratagema imaginado pela paixão de Cecy, recusa o seu
mundo. Quer continuar a viver, apesar de saber que um dia morrerá,
responde Timothy à Bisavó. Então, o conselho da Bisavó, com os seus quatro
mil e quatrocentos anos, é cheio dessa sabedoria que o tempo longo foi
construindo: «A melhor coisa a fazer, Timothy, na tua nova sabedoria
(porque Timothy conhecera a sabedoria dos antigos) é viveres a tua vida ao
máximo, gozares cada momento, e deixares-te, daqui a muitos anos, com a
feliz consciência de que preencheste cada momento, cada hora, cada ano da
tua vida, e sabendo que és muito amado pela Família» (p.192).
A experiência de Timothy, conduzido ao «tempo muito
antes de existir alguém para escutar», tempo «vindo de nuvens vagabundas
que iam para lugar nenhum, para algum lugar, para qualquer lugar, e fazia
com que o sótão falasse sozinho, enquanto lançava sobre o seu soalho um
jardim japonês de areia e pó» (p.24).
Tempos imemoriais que o tempo apagara, através da alma
ou poder mental. É com esse poder espantoso que o amor de Cecy vence todas
as limitações. Cecy jazia morta, mas a força do seu desejo amoroso vence a
morte. A sua alma introduz-se na jovem Ann que não amava Timothy,
precisamente ele que por Ann se tinha apaixonado. Então, Cecy tudo tenta
para ser ela a corresponder à sua paixão. Ora responde por Ann, como se a
voz daquela que vivia fosse mais fraca do que a sua, ora há um desencontro
de vozes e torna-se impossível Cecy ser escutada por Timothy. O possível e
o impossível lado a lado, procurando interpenetrarem-se, a tentarem
contradizer-se e a aproximarem-se.
Este romance nasceu na infância do seu autor. A fase da
vida humana em que o real e o irreal convivem com o encontro daquilo que é
tão estranho e, ao mesmo tempo, tão evidente. Assim acontece em
Regresso das Cinzas quando Ray Bradbury nos relata um diálogo entre a
enfermeira e as crianças que corriam ruidosamente dentro do «barco»: «
- Meninos está na hora de ouvir uma história!».
E logo as crianças perguntam: « - Uma história
de fantasmas?». Ao que a enfermeira responde, concludente: «
- Vocês acreditam em fantasmas, certo?».
Em uníssono, respondem todas: «- Oh, sim!».
Ao entrar num mundo de descoberta, num mundo que vai
explorar pela primeira vez, a criança tende a encarar a realidade como uma
única. Não há escalas para o real. O sonho, o irreal, a ficção, funcionam
como fazendo de tal maneira parte da realidade, que dela não se separa. É
por isso que a criança, ao ouvir falar dos mortos, pergunta onde estão,
porque não estão ali, porque desapareceram.
À criança é acessível falar de mortos ou fantasmas ou
figuras míticas. Nada lhe parece ser estranho. Tem uma visão tão concreta
do mundo que a cerca, que tudo nele insere, sem recusar aquilo que
perturba os adultos, aquilo que estes rejeitam, porque é uma memória
negra, espectral, só possível em momentos-limite, momentos de rápida
duração. No nosso tempo está na moda os psicólogos aconselharem o domínio
total da emoção para se evitar sofrer, porque não se deve sofrer nem
sequer, parece, por aqueles que nos amaram e que nós amamos. Afinal, não
estarão a querer fazer-nos acreditar que não se deve sentir uma das mais
importantes facetas da vida humana?.
Regresso das Cinzas oferece uma outra
perspectiva do sentido da vida. É talvez uma chamada de atenção para
valores em vias de serem esquecidos na sociedade tecnológica em que nos
inserimos. Estamos, de facto, numa época em que se cultivam os mitos da
longevidade, da juventude e da saúde até ao exagero. Assim, as pessoas
tendem, por exemplo, a excluir os velhos, esquecendo que eles apenas
atravessam uma fase da sua vida, tal como atravessaram a fase da
juventude.
Refiramos, a propósito, o exemplo recente, em Portugal,
da classificação de «regiões de morte social» no que toca a regiões há
muitas décadas em estado de despovoamento por parte dos jovens que nelas
não encontram as mesmas condições das cidades do litoral ou do
estrangeiro. Agora, regiões onde predomina a velhice são de imediato
denominadas «regiões de morte social». Como se o predomínio da velhice
fosse motivo para tão drástico apelativo. Parece que os velhos se
identificam já com mortos, mortos indesejáveis, quem sabe se a deambularem
como fantasmas enfadonhos para o enojamento dos humanos.
O culto do hedonismo e do consumismo aterrorizam
facilmente aqueles que vêem nas faces enrugadas e nas pernas esqueléticas
a possibilidade das suas próprias representações futuras. Em Regresso
das Cinzas, Ray Bradbury dá um grito de alerta a esta sociedade global
em que os velhos são desprezados, olhados como um pesadelo e não como um
factor de ressurgimento junto dos jovens.
É urgente reabilitar os conceitos de vida em que a
dignidade humana seja prioritária. A qualidade de vida tem de abranger
novos e velhos. Uns e outros são desejáveis nas regiões onde os obstáculos
são enormes.
Como escreve Ray Bradbury, a «vida é uma visita rodeada
de sonhos»(p.161). O nascimento e a morte usufruem de um espantoso
paralelismo. A saúde e a doença vivem confrontando-se. A velhice e a
juventude completam-se, como se fossem partes de um único todo.
E se a vida tem um sentido, a velhice e a morte também
o têm. Escreve Ray Bradbury: «Os fins de tarde são amados porque
desaparecem. As flores são amadas porque se vão (.) no coração dos
bons-dias matinais e das gargalhadas da tarde, encontra-se a promessa do
adeus. No focinho cinzento de um cão velho, vemos um adeus. No rosto
cansado de um velho amigo lemos longas viagens sem regresso» (p.159). Esta
uma das passagens mais significantes deste romance em que a ficção
fantástica assume um dos seus pontos mais altos. Trata-se de uma escrita
plena de beleza poética e metafórica, em que o autor contribui para a
elevação e fortalecimento do sentido da vida, colocando-a sempre com o
contraponto da memória dos velhos e da sua sabedoria.
Aqui, as raízes da sabedoria dos antigos consolidam-se.
Mas, «com a passagem do tempo, um homem jovem surgiu na estrada, como
alguém emergindo de um sonho ou saindo das marés calmas de um mar
silencioso, e encontrou-se numa paisagem estranha, olhando para a Casa
abandonada, como se soubesse mas desconhecesse o que esta tinha, em
tempos, contido.» (p.195).
Em Regresso das Cinzas a leveza incerta e
incauta das horas e dos dias das crianças ganha o esplendor da recordação
de «um milhar de tardes» (p.14). Um «milhar de tardes» repetidas sem fim
por Tempos a passarem, sem que as sociedades demasiado apressadas dos
nossos dias, se voltem e vejam os tesouros ocultos nelas e a descobrir.