O mistério do tempo tem sido motivo de inspiração de romancistas, filósofos e cientistas. Alguns talvez «à procura do tempo perdido » como disse Marcel Proust no seu longo e estranho romance assim titulado; o filósofo Heidegger escreveria um longo ensaio sobre os enigmáticos e imbrincados sentidos do « ser e do tempo » , no século XX; e, Prigogine, Prémio Nobel da Química, publicou o ensaio O Nascimento do Tempo numa tentativa de descobrir se é o Homem a criar o tempo ou se este conceito existe realmente.
Neste dealbar do século XXI, o tempo continua a ser razão de acesas interrogações. Apesar das reflexões e das divagações sobre o seu sentido, as suas dimensões, a sua aparente ou real importância para os humanos, sempre confrontados com a sua complexidade e o seu abstraccionismo, o tempo continua a ser um dos alicerces temáticos da literatura de ficção científica. É que os comportamentos humanos imbuídos de tempo e de vida escapam às amarras com que somos por ele condicionados.
Numa época em que a tecnologia e a ciência espacial se intersectaram como nunca em épocas anteriores, tem prosperado no mundo civilizado (Ocidente, em especial) toda uma literatura fantástica e de inspiração científica que procura interpretar os sinais do tempo.
É uma literatura resplandescente nos Estados Unidos da América, em França, na Grã-Bretanha. Contudo, em Portugal, tal não se verifica. Aqueles leitores a quem a tecnologia/informática e a ciência são motivo de interrogações ou de curiosidade não dispõem senão desses romancistas estrangeiros se optam por este género de literatura. Para usufruir da inovação e da criatividade aí presentes, resta recorrer às traduções de maior ou menor qualidade.
De facto, em Portugal, falta essa descoberta dos valores do passado em confronto com os valores do presente, fortemente inspiradores dessa literatura cultivada por um H.G.Wells, um Philip K. Dick ou um Stephen Baxter.
Os escritores portugueses têm desprezado as temáticas de vertente filosófica e ignorado a vertente da ficção com inspiração científica. O gosto pelas conquistas da ciência não tem obtido a curiosidade suficiente para inspirar os romancistas.
A par disso estará o facto de o ensino continuar com metodologias de tipo erudito, continuar a separar os domínios da ciência daqueles que dizem respeito às letras, manter em polos quase antagónicos os dois saberes? A pluridisciplinaridade nos cursos do ensino superior não existe. Quem tira cursos de matemática não tem cadeiras de opção nas áreas ditas humanas e sociais. O divórcio entre as duas culturas, a científica/tecnológica e a literária/filosófica é, assim, muito acentuado.
Talvez por essa razão os escritores portugueses vivem num mundo à parte, sem que as inovações de natureza científica influenciem as suas obras. E, com a expressão num mundo à parte, queremos dizer que escrevem os seus romances como se a ciência, a tecnologia, as questões da mente e do pensamento, pouco tivessem a ver com eles.
Ora, não estará isto ligado ao facto de os nossos cientistas terem pouca audiência nos meios culturais? E, consequentemente, não comunicarem a sua mensagem a públicos que ultrapassem as suas universidades? Aliado a isso, tendo escassíssimos meios para desenvolver, em Portugal, uma avançada investigação científica, é rara a notabilização do cientista português e, assim, o seu prestígio é diminuto à escala nacional.
Por outro lado, não terão os políticos portugueses uma importante quota de responsabilidade ao considerarem pouco rentáveis os investimentos financeiros no cultivo das ciências exactas só porque não dão lucros? Não terão cultivado demais medidas imediatistas para resolver problemas a curto prazo e esquecendo os benefícios a médio e longo prazo? Porque não têm cultivado uma política de desenvolvimento e valorização das elites científicas? Será assim que nos vamos equiparar à maior parte dos países da União Europeia a que pertencemos? Será assim que querem criar investimentos produtivos? Não seremos capazes de inovar em vez de imitar sempre os outros como se as ideias estivessem condenadas a vir do exterior?
É urgente que se prepare uma sociedade voltada para a criatividade e não para a imitação. Não podemos continuar a seguir os passos do ensino de tipo jesuítico, mas antes aquele que nos levou à fundação da «Escola de Sagres», à dinâmica universidade que tivemos no século XV e às navegações que criaram as condições para uma revolução científica na Europa dos séculos XVI e XVII.
Temos estado parados «no reino da estupidez», ou seja, de costas voltadas para as problemáticas do ser e da existência, do finito e do infinito, da máquina e do sonho. Foi Fernando Pessoa quem, logo nos princípios do século XX, enveredou por uma poeticidade virada para a ciência e a tecnologia. Lembremos as obras que assinou com os heterónimos Ricardo Reis e Álvaro de Campos! Mas quem deu a esse seu sinal de alerta para as coisas da ciência mais do que uma efémera e vã continuidade?.
A literatura de ficção científica inspira-se precisamente nos novos rumos iniciados por uma humanidade em busca de si própria, procurando descobrir o «impossível», conquistar o espaço sideral das distâncias sem fim, conhecer os limites da genética humana, os largos caminhos da engenharia informática, os mistérios assombrosos da biologia embrionária ou da bio-física do cérebro.
É neste contexto de larga informação tecno-científica que nos é dado viver. E como todo esse manancial é subaproveitado! A nossa literatura vegeta em confronto com os escritores norte-americanos ou da Europa Ocidental. Só os ensaios de divulgação científica de alguns cientistas portugueses e as traduções de cientistas estrangeiros têm tentado colmatar uma lacuna inadmissível no Portugal de hoje.
A maioria dos romances portugueses que circulam nos espaços para livros dos nossos «shopping centers», particularmente nas fnacs dos macro-centros comerciais, caracteriza-se pela esterilidade não só nos aspectos formais da construção literária como também nos conteúdos demasiado repetitivos. É uma narrativa romanesca eivada de conteúdos estafados. São as temáticas dos fracassos de casais à beira do suicídio ou da depressão, em que o sexo deleita e mata. São as deambulações à volta da pedofilia ou da homossexualidade, é o gosto pelas atmosferas em que se instalam sempre relações afectivas instáveis, prontas para a ruptura. É a acentuação dos comportamentos excêntricos de uma moda que cultiva a beleza corporal, é o predomínio de toda a espécie de permissividade na sociedade laica, é a dessacralização do amor reduzido à sua face exclusivamente hedonista, é a recusa do sofrimento como motivo de valorização humana. É também a consequente perda de sentido para o aperfeiçoamento humano, o desprezo pelos comportamentos inseridos em tradições ancestrais, em suma, o desprezo pelos antepassados, pelos que estão velhos e já não produzem riqueza. É a ausência de curiosidade pela diversidade dos novos caminhos que se estão a construir no planeta Terra com base num conhecimento estruturado no saber tecnológico de fundamento científico.
Afinal, a literatura deveria ser o corolário e o contraponto da ciência e da tecnologia. Poder refutá-la, contradizê-la, alertá-la, ou divulgá-la. A literatura pode oferecer à ciência e à tecnologia a sua verdadeira dimensão de modo mais directo, de modo mais acessível para aqueles que desconhecem a específica linguagem da matemática. Não dando asas à imaginação também nesses domínios, a literatura sossobra e reduz-se nas suas possíveis escalas.
A capacidade do romancista em seleccionar aspectos mais revolucionários e benéficos ou, ao contrário, contraditórios e mesmo retrógrados, vai trazer à literatura uma nova atmosfera em que a renovação provocará o implementar de novas temáticas e de inovadoras técnicas. A sensibilidade, a emoção e a paixão do escritor ficam, a partir de agora, postas à prova. As ciências exactas só terão a ganhar. A literatura, como intérprete da sua importância, ganhará um novo alento e será um incentivo para aqueles que, de outro modo, nunca saberiam nada de ciência.
É nesta ambiência de «apagada e vil tristeza» (diria Camões) que a literatura portuguesa se arrasta sem visionarismo, sem o escape da imaginação para se alargar a outros espaços, que o mesmo é dizer, para outras temáticas e outras formas. Como se tem verificado em Portugal, persiste o lápis da desconfiança em contraste com o lápis da novidade que a cultura científica e tecnológica proporciona. Com estas palavras não queremos dizer que não continuasse a publicar-se a literatura dita clássica. Não obstante, seria um sinal de vitalidade cultural divergir do acto de todos escreverem sob a mesma sigla orquestrada pela mesma batuta orquestral.
A ficção científica tem leitores em Portugal. Os jovens preferem-na. É natural, se tivermos em linha de conta que a imaginação, a aventura, a diferença, a audácia mental, os seduz. E não estarão eles a recusar toda uma literatura de frustrados ou «vencidos da vida» ou de gramáticos em busca de Prémios Literários que se traduzem em largas remunerações monetárias que são recebidas quase sempre pelos mesmos?
Como escreve Stephen Baxter no seu notável romance The Time Ships ( Les Vaisseaux du Temps na tradução francesa), «percebi que era possível que o futuro não fosse um estado fixo, mas qualquer coisa de variável». Nós também pensamos assim.
Teresa Ferrer Passos*
Também assina com o heterónimo Teresa Bernardino. |