A cultura tecnológica tem limites que negam algumas das mais
importantes qualidades do ser humano, esse ser humano que a História
testemunha, guarda e identifica. Trata-se de uma cultura que acorrenta, que
manipula, sobretudo porque oferece estímulos cada vez mais sofisticados e,
ao mesmo tempo, que seduzem os mais vulneráveis pela solidão em que a
sociedade tecno-consumista os lançou desde há pelo menos duas ou três
décadas.
O olhar deixou de ser analítico, com um sentido crítico e observador. A
desconfiança não parece ser uma característica da sociedade pós-moderna.
Levantou-se uma atitude acrítica e crédula, demasiado crédula quanto a tudo
que se recebe sem desejar, que é imposto parecendo dar liberdade de escolha.
A publicidade invadiu todos os meios de comunicação social, mais dominados
por máquinas electrónicas ligadas ao humano do que por pessoas identificadas
com normas eticamente aprováveis. O predomínio da mentalidade relativista e
minimalista criou as condições ideais para que o humano fosse cada vez menos
humano e o electrónico cada vez mais humanizado.
Toda a novidade encerra uma carga benéfica, mas nada nos garante que
também não venha imbuída de erros, deformantes ou minimizadores daquilo que
já foi concebido. A novidade não possui nem conduz sempre a um avanço, a um
progresso garantido. Mas possui sempre algo que diverge daquilo que existia
antes.
O novo é o diferente. O novo pode não ser o melhor, mas pelo menos é,
irrefutavelmente, a única coisa que pode ou pôde ser. Porque se assim não
fosse, o novo nunca teria lugar. O novo seria impossível. A coisa nova não é
imune à falha, porque ela própria antes de surgir resultou da imaginação que
constrói, que cresce, que prolifera numa minoria que contesta, que rejeita o
caminho seguido até então. Essa minoria opõe-se, de modo crítico primeiro,
de modo utópico depois, ao status quo vigente, à afasia generalizada, à
indolência geral.
Tudo o que nasce de novo resulta de uma insatisfação e de uma descrença
no mundo cultural em que se vive. Assim começou de modo tímido, em 1953, com
Wiener, Shannon e Turing o edifício que levaria, nos nossos dias, ao
ciberespaço e à cibercultura.
Esta revolução sem armas de guerra evoluiu para a grande Rede
Internética que globaliza e torna cada vez mais vastos os universos
individuais, quer no sentido do melhor, quer no sentido do pior, como o
identifica o filósofo Virilio em Cibermundo, a Política do Pior. Pessimista
em relação à cultura electrónica é também Simmel ao falar de «tragédia da
cultura» e ao associar a economia monetária ao poder científico-tecnológico.
Como escreveu Baudrillard, em 1997, «a Internet apenas simula um espaço
mental livre, um espaço de liberdade e de descoberta (…) É-se o interrogador
automático ao mesmo tempo que o respondedor automático da máquina (…) É isso
o êxtase da comunicação. Não há mais o outro, em face, nem destinação final.
O sistema gira assim, sem fim e sem finalidade (…)», recorda José Augusto
Mourão em O Mundo e os Modos de Comunicação (pp. 207-208, Coimbra, Minerva,
2005). As vastíssimas auto-estradas da informação percorridas no
mundializado espaço electrónico que está, cada vez mais ao alcance de todos,
é o tema geral em que se divide esta sua curiosa intervenção ensaística no
cibermundo internético.
O Mundo e os Modos de Comunicação é um livro sapiencial, que prende a
atenção e nos dá uma visão muito rigorosa da problemática do universo
tecnológico a que, desde a infância, somos progressivamente obrigados a
obedecer, sob pena de nos isolarmos do mundo humano, esse humano em busca de
uma máquina para sobreviver por já não saber viver com os outros, ou porque
as cidades são, cada vez mais, monstros sem alma, sem encontro, sem
descoberta da felicidade. «Um obscuro ambiente de fim de mundo envenena o
ar. Neste ambiente o corpo tornou-se um obstáculo à comunicação» escreve
José Augusto Mourão (p.10).
No corpo visível é preciso construir pontes que iludam a sua
visibilidade. A visibilidade tornou-se um domínio do preciosismo ilusório e
trágico. A carne desencarna-se como se fosse necessária a morte do vivo, com
toda a sua dinâmica adulterada e fria. Crescem virtuais linhas de escândalo
na cidade frenética do virtual e de um fantasmagórico em que a maravilha se
transforma num écran de luz intensa e com um som penetrante a escapar-se
volátil e esquelético, sem poesia, sem discurso de verdade onde se esconde
todo o conteúdo. Por isso, o autor de O Mundo e os Modos de Comunicação
insiste na ideia de que «a imagem do corpo entrou em crise» (p.12).
Estamos frente ao «homem electrónico [que] não tem essência carnal. O
corpo pós-humano é uma tecnologia, um écran, uma imagem projectada» (p.15).
O humano adquire uma dimensão que o ultrapassa através dos meios de
comunicação em que a tecnologia não disfarça a sua caricatura do mundo. A
máscara afivela-se sem que o tempo se aperceba que tudo está ao serviço da
mudança impenitente e ainda cheia de enigmas, a adensarem-se e fulminando
tudo quanto pertencia a um real contemporizador com as horas de um tempo
ainda não muito distante, as horas longas e férteis para aqueles espíritos
habituados a serem essencialmente livres, plenos de autonomia e a arbitrar
as decisões em que a democracia desempenhava uma função desinibidora e
actuante.
Estamos perante um livro que nos provoca, nos faz pensar. E, nos
arrepia quando o autor diz que «as redes dos computadores põem simplesmente
entre parêntesis a presença física dos participantes» (p.15). O Mundo e os
Modos de Comunicação é, afinal, e apesar de o autor não se enquadrar nos
adeptos das grandes auto-estradas electrónicas, uma grande auto-estrada da
angústia humana ante a perda previsível e irremediável de caminhos mais à
medida humana, mais à escala das emoções e dos comportamentos de risco,
aventura e sonho.
Questões em aberto são postas de modo incisivo e pragmático. É preciso
alertar aqueles que ainda lêem para questões discutíveis e de labirínticas
teias de pensamentos tanto recentes com antigos, tanto do mundo do romance
como do mundo da poesia ou do ensaísmo. Áreas tão estranhas como a teologia,
a ciência ou a tecnologia parecem imbricar-se, como se fossem temáticas
familiares umas às outras, mas também surgem como se fossem campos fechados,
que não se pudessem transpor, como se fossem compartimentos estranhos e
alienados da realidade.
Tudo se encaixa num já vastíssimo ciberespaço a estender os seus
tentáculos que avançam a uma velocidade impensável e a tender para o
infinito, o incorporal, o fim das coisas e o império das imagens que ninguém
conhece e que se volatilizam como se fossem um fumo rápido ou como se fossem
um vento que não deixa rasto.
Quando José Augusto Mourão escreve que «o ciberespaço significa a morte
dos objectos reais» (p.208) ou que «a idolatria moderna está aí: na
sobreavaliação de Imagens que substituem as coisas» (p.212) ou ainda que «o
sujeito da vivência virtual é desprovido de corpo» (p.212), tudo se torna
mais claro e evidente. A realidade natural é posta em causa pelo
ciberespaço. O sujeito humano perde a sua estrutura e integridade ética. O
virtual transforma a frescura e a transparência de cada coisa num simulacro
que respeita à imagem, sem vida natural, sem autenticidade.
No mundo virtual há uma aparência dominante. O real deixa de ter a
virtude de o ser. Num real de novas dimensões espaciais tudo cresce como num
esquema labiríntico e, ao mesmo tempo lógico, mas em que a emoção é um
estado deformado, «light», exclusivista e com os contornos do deprimente ou
com a atitude do consentimento, mesmo do aberrante. Como acentua José
Augusto Mourão, «a técnica está a mudar a nossa percepção do mundo. O nosso
verdadeiro lugar é o possível. A realidade é apenas uma das variações do
possível» (p.81).
Numa abrangência quase a atingir o quadro de paredes virtuais que nunca
cortam o caminho, o ciberespaço é um baluarte das novas correntes
materialistas/minimalistas. É ele que dá expansão às suas teses, que eleva a
ideia de que tudo vale sem diferenças e tudo começa a ser avaliado como se
cada valor tivesse o mesmo grau de legitimidade no contexto humano. O mundo
dos valores cristãos ocidentais está a ruir perante a onda avassaladora do
princípio do prazer como o valor máximo e o único indiscutível nesta
sociedade do consumo e da informação sem freios.
Ao admitir-se e ao aceitar-se a legitimidade de todos os valores
individualmente considerados, deixa de haver espaço para valores universais,
para a distinção entre bem e mal, entre justo e injusto, entre válido e
inválido. A civilização ocidental, ao condescender com os novos valores de
uma moda implacável, confrangedora e redundante deixa sossobrar os valores
intemporais da realidade humana. De facto, diz Mourão, «o processo de
multiplicação infinita de informação, o desaparecimento dos centros, o
apagamento progressivo das figuras de poder, dá lugar a uma ilusão de
liberdade e de autonomia (…). O ciberespaço não é a abolição das fronteiras
nem das muralhas da cidade, mas sim a invisibilidade de fronteiras e
muralhas, de valores e de poderes» (p.210).
A ambiguidade, as ambivalências, o anonimato, as tutelas do poder de
lobyes poderosos, a cultura encapotada por interesses obscuros, os
proteccionismos financeiros de redes incontroláveis dentro da rede
internética do ciberespaço, conduziram filósofos como, Baudrillard, E.
Subirats, Fiorese, P.Virilio, G. Simmel ou Serres, entre outros, a
colocar-se numa posição de desconfiança e crítica das novas tecnologias da
informação. Citando-os ao longo de O Mundo e os Meios de Comunicação, J. A.
Mourão trata esta temática com o rigor que exigem os estranhos rumos das
vastíssimas auto-estradas cibernéticas em construção há poucos anos e já com
tão inesperado êxito junto das sociedades ávidas de um «admirável mundo
novo». A urgência de encontrar uma saída para a angústia em que a informação
e o consumismo as tem mergulhado, vulnerabiliza-as e fá-las presa fácil da
avidez incontida e prepotente. A sociedade, após duas violentas guerras
mundiais, ficou fragilizada.
À mercê dos «deuses» de uma tecnologia desencarnada que a levou à
veneração, como um verdadeiro mito, do lazer, deixou-se conduzir a um lazer
fictício, repleto de imagens sedutoras como a velocidade, as fantasias
imagéticas, os robotizados planos de repouso, a idolatria do corpo que não
salvaguarda o lugar da carne física, separada do corpo se torna absurda.
No mundo dos cyborgs, dos bits, dos freaks, dos híbridos, dos blogs,
dos links, dos hipertextos, há pouco lugar para um corpo em movimento,
pronto à aventura, ao sonho, à palavra que permanece, à amizade que não se
reduz a um e-mail, ao amor que não se compadece com sexo à margem da
comunhão e da fidelidade. Crescimento, globalização, abolição das diferenças
na real desigualdade, são chavões que deturpam todos os sentidos úteis da
informatização social. Às massas, incapazes de se aperceberem das
assustadoras mudanças económicas e políticas das comunidades globalizantes,
só resta obedecer cegamente, submeter-se ao todo e deixar-se iludir conforme
os padrões dos novos tempos.
Em O Mundo e os Meios de Comunicação, José Augusto Mourão oferece-nos
uma visão que não deve ser omitida, esquecida ou desprezada pelos meios de
comunicação. Aqui se encontram afirmações a alimentar a polémica que a nova
cibercultura deveria escutar para não ser alvo de tantas limitações quando
diz ter como fio condutor os grandes espaços da liberdade.
Como escreve o autor deste valioso ensaio semiótico, «com o colapso da
realidade vs ficção, também a dualidade cartesiana espírito/corpo é
eclipsada pelo conceito de «cyborg» que mina o conceito de «humano».(…). Se
as fronteiras entre humano e artificial colapsam, todas as outras realidades
se dissolvem também e as suas partes tornam-se ininteligíveis, como prevê
Donna Haraday no seu “Manifest for Cyborg”» (p.15). E mais adiante: «Nunca
fomos tão frequentados por monstros. Estão aí a “nova carne”, o cyborg, o
pós-humano» (p.18).
Ler esta obra é receber um sinal de alerta sobre o ciberespaço. Não o
deixemos passar ao nosso lado.
Teresa Ferrer Passos